Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

11 abril, 2012

Levam o sangue cheio de letras, as patas floridas sobre a cabeça, correndo, pensando

 
Resoluta a jovem mulher vai estrada acima. Tal como ela, vou eu. Caminhando ao encontro da noite, ideias voando em volta, palavras em torno de um corpo que se apressa a entrar na noite.

E depois outra mulher aparece correndo, firme, correndo como uma égua de fibra, patas pisando o chão e flores nascendo do chão pisado pelas patas, o chão, a terra fertilizada pelo sangue desta e doutras mulheres. As mulheres correm, entram na noite, levam os seus ventres ao encontro da noite, das estrelas. E no seu corpo limpo e livre entra o luar, a maresia, as palavras que voam.

E eu olho o céu que escurece e olho as mulheres que correm na noite, que levam os seus sonhos fortes, que cantam as suas dores e alegrias, e tudo voa, tudo voa - é que as mulheres têm que ter o coração sempre livre. 

As mulheres correm na noite e o céu enche-se de estrelas, de flores, de crianças, de novos sorrisos, e ao lado das mulheres que correm, corre também a lembrança daqueles, daqueles tão queridos, nunca esquecidos, daqueles que para sempre, para sempre, viverão dentro do coração das mulheres livres que atravessam a noite porque há amores transparentes e intangíveis que não morrem.



[Abaixo encontrarão um excerto de um poema que venero (se é que faz sentido dizer que se venera um poema) e logo a seguir uma gravação que não tem grande qualidade mas que é fantástica, Jesye Norman interpreta Berlioz]

Subindo a estrada que sai do Ginjal, a caminho da Boca do Vento


                               Ouço: são elas que partem. E levam
                               o sangue cheio de letras, as patas floridas
                               sobre a cabeça, correndo, pensando.
                               Atiram-se para a noite com o sonho terrível
                               de um lenço vivo.
                               E vão batendo com as estrelas nas portas. E sobre
                               a cabeça branca, as patas lembrando
                               pela noite dentro.
                               O rosto sufocado, o som abrindo, muito
                               lembrado. E a cabeça correndo, e ouço:
                               são elas que partem, pensando.



[Excerto de 'Mulheres correndo, correndo pela noite' de Herberto Helder in 'Poesia toda 2']
       

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