Resoluta a jovem mulher vai estrada acima. Tal como ela, vou eu. Caminhando ao encontro da noite, ideias voando em volta, palavras em torno de um corpo que se apressa a entrar na noite.
E depois outra mulher aparece correndo, firme, correndo como uma égua de fibra, patas pisando o chão e flores nascendo do chão pisado pelas patas, o chão, a terra fertilizada pelo sangue desta e doutras mulheres. As mulheres correm, entram na noite, levam os seus ventres ao encontro da noite, das estrelas. E no seu corpo limpo e livre entra o luar, a maresia, as palavras que voam.
E eu olho o céu que escurece e olho as mulheres que correm na noite, que levam os seus sonhos fortes, que cantam as suas dores e alegrias, e tudo voa, tudo voa - é que as mulheres têm que ter o coração sempre livre.
As mulheres correm na noite e o céu enche-se de estrelas, de flores, de crianças, de novos sorrisos, e ao lado das mulheres que correm, corre também a lembrança daqueles, daqueles tão queridos, nunca esquecidos, daqueles que para sempre, para sempre, viverão dentro do coração das mulheres livres que atravessam a noite porque há amores transparentes e intangíveis que não morrem.
[Abaixo encontrarão um excerto de um poema que venero (se é que faz sentido dizer que se venera um poema) e logo a seguir uma gravação que não tem grande qualidade mas que é fantástica, Jesye Norman interpreta Berlioz]
Subindo a estrada que sai do Ginjal, a caminho da Boca do Vento |
Ouço: são elas que partem. E levam
o sangue cheio de letras, as patas floridas
sobre a cabeça, correndo, pensando.
Atiram-se para a noite com o sonho terrível
de um lenço vivo.
E vão batendo com as estrelas nas portas. E sobre
a cabeça branca, as patas lembrando
pela noite dentro.
O rosto sufocado, o som abrindo, muito
lembrado. E a cabeça correndo, e ouço:
são elas que partem, pensando.
[Excerto de 'Mulheres correndo, correndo pela noite' de Herberto Helder in 'Poesia toda 2']
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