O homem espera que a luz se ponha. Espera pacientemente. Ninguém o espera, tem tempo. Em silêncio aguarda que a noite comece a descer o seu manso véu.
E, então, as cores quentes do sol começam a recuar, os azuis regressam, frios, sombrios. A beira do rio é, nessa altura, um retiro, um refúgio, um templo íntimo e sagrado. O homem aparece então, suave, desliza com delicadeza. Talvez seja alguém que se perdeu de si mesmo, talvez venha guiado por alguma estrela, talvez procure apenas uma palavra oculta.
O homem senta-se e olha o infinito ou talvez espere uma visão que venha de dentro das águas, que venha nas asas de uma gaivota, talvez espere apenas a palavra que nem sabe se está dentro de si ou no coração de um pássaro branco e esguio ou se vem trazida pela subtil aragem que sobe do rio.
O homem está em silêncio, ouve a sua própria respiração, sente a sua pulsação, segue o seu instinto, e procura o seu destino que um dia se perdeu. O homem olha em silêncio as águas que escurecem, espera que venha um reflexo, uma imagem, uma palavra, um poema, um sentido, um sentido qualquer.
O homem que aqui está, digno, tão digno, sem destino, procurando palavras com sentido, respira então com uma lentidão plena de leveza, olha o céu que também escureceu, olha o céu com devoto agradecimento e, em silêncio, pensa que encontrou, aqui, hoje, o princípio do seu caminho.
[Gostava, meus Amigos, que descessem até às palavras de Manuel Alegre, belas palavras sobre 'aquele que se perdeu' e que, depois, logo a seguir, se detivessem num momento de pura magia: Renée Fleming interpretando Berlioz.]
Cai o dia junto ao Tejo, o cais é então lugar de retiro e meditação |
Aquele que se perdeu
aquele que se perdeu guiado por uma estrela
aquele que se perdeu no seu caminho
ou dentro de si mesmo
aquele que se perdeu em busca da palavra
ou talvez do destino e do sentido
ou apenas
do reflexo mágico do ritmo e da revelação
aquele que se perdeu e já não sabe como recuperar
a pulsação e o instinto
não mais que o breve instante de um lampejo
algo como a visão de uma visão
imagem reflectida sobre as águas
ou talvez sobre a página
por onde vai
aquele que se perdeu.
['Aquele que se perdeu' de Manuel Alegre in 'Nada está escrito'
Amiga:
ResponderEliminarTenho de ir comprar depressa o livro do Manuel Alegre. Gosto de poetas, mas este, é mesmo o "meu poeta". Desde os primeiros livros, ainda clandestinos, que o admiro. Com "Pedro o Soldado" embarquei para Àfrica e vi "Nabuangongo". Como ele, perdi amigos, com ele revi Águeda, a terra do meu avô, a terra de que tenho o nome.
Estes versos, deram-me uma fome de de ler, mastigar, sentir, o livro todo!
Quem mais poderia escrever: "Eu podia chamar-te Pátria minha, dar-te o mais lindo nome português..." Ou a "Canção com lágrimas", ou "As canções com lágrimas",ou, ou, ou....
Beijinhos jeitinho. Boa noite. Eu vou ler Alegre.
Maria
Mary,
EliminarManuel Alegre é um poeta que tem a poesia dentro dele, escreve poesia, respira poesia e diz muito bem poesia. Todos os seus poemas têm uma musicalidade que nos agita a alma.
Um beijinho, Mary!
Amiga:
ResponderEliminarTenho um disco, ainda de vinil, dele. De tanto o ouvir, está gasto.
Sabe se já há, algum CD?
Aquela voz, entra-nos pelos poros todos.
Beijinho
Mary
Não sei. Hei-de ver quando for à FNAC.
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