Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

18 abril, 2012

Até que as chuvas lhe molharam os olhos e deles saíram rios que foram desaguar ao grande mar do princípio

 
Repara. 

Há um muro branco de topo arredondado, é um muro macio, sem arestas agressivas, uma superfície onde o sol se reflecte, ou por onde escorre a chuva. É um muro que apetece afagar, um muro por onde o tempo passa com enorme dignidade.

Quando aqui venho, gosto de ver o mundo para além dele. Este muro branco marca uma fronteira entre o mundo real e o mundo quase excessivamente belo que se vê a seguir a ele.

E vejo então um chão macio, húmido, cheiroso a terra molhada, e vejo árvores muito verdes, árvores que tombam, belas, cortinas verdes que escondem a paisagem e albergam pequenos pássaros.

E, logo a seguir, o terreno debruça-se e rende-se a este rio majestoso, largo como um mar e, então, vejo o rio ora azul, ora verde, ora escuro, conforme o tempo que nele se reflecte, o rio belíssimo que atrai as gaivotas que dançam voando, que gritam enquanto mergulham ou, então, que olham a paisagem com um olhar embevecido como nós.

E, logo a seguir ao rio, vejo a visão da beleza suprema: Lisboa, a magnífica, a luminosa, que se estende ao longo do rio, que tem colinas suaves cheias de casas e ruas e jardins e um castelo e igrejas e que tem uma cor que é uma mistura de ternuras.

Daqui vemos como o tempo passa, renovando-se, árvores despidas, árvores verdejantes, frio e chuva e vento e sol, mas vai passando, vai passando o tempo em direcção a um destino que apenas podemos imaginar. Será um qualquer deus quem desenhou tanta perfeição? E que por aqui ainda paira, afagando quem por aqui passa? Será?

E, tal como eu, por entre a vegetação, há por vezes, outras pessoas que se sentem devedoras por poderem receber tanta graça. Essas pessoas, tal como eu, deslizam em silêncio, como gatos, e as lágrimas quase afloram ao olhar e essas pessoas que por aqui andam em estado de sentida devoção, quase ajoelhando perante tanta pureza, perante tanta beleza, uma beleza tão pura como se estivéssemos ainda no princípio de todas as coisas.


[Há um pequeno jardim verde que se avizinha do rio e, a seguir, há um belo poema de Ruy Belo. A seguir duas vozes fazem uma festa a partir da música de Rossini] 


O Tejo avistado por detrás da cortina verde do jardim do Ginjal


                                O senhor deus é espectador desse homem
                                Encheu-lhe o regaço de dias e soprou-lhe
                                nos olhos o tempo suave das árvores
                                Deu-lhe e tirou-lhe uma por uma
                                cada uma das quatro estações
                                A primavera veio e ele árvore singular
                                à beira do tempo plantada
                                vestiu-se de palavras
                                E foi a folha verde que deus passou
                                pela terra desolada e ressequida
                                Quando as palavras o deixaram de cobrir
                                ficaram-lhe dois dos olhos por onde
                                o senhor olha finitamente a sua obra
                                Até que as chuvas lhe molharam os olhos
                                e deles saíram rios que foram desaguar
                                ao grande mar do princípio


['A multiplicação do cedro' de Ruy Belo, Cidadão de longe e de ninguém, in Antologia Poética]                           

3 comentários:

  1. Amiga,
    Lisboa é uma cidade que desperta paixões.
    Quando se vem de avião e ela aparece, é um deslumbramento total. Vista da ponte 25 de Abril, é um entrelaçado de casas, árvores, montes, ruelas, que comove e encanta. Da Vasco da Gama, em dias de neblina, lembra um quadro de Sisley.
    Do deu Ginjal, vista frente a frente, a maravilha do rio, os monumentos, a Baixa Pombalina, feita a compasso, as ruas que sobem até aos miradouros, os jardins, as árvores, Lisboa é apaixonante.
    "Por isso, Ginjal e Lisboa, a love affair" tem todo o sentido.
    Beijinho
    Mary

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  2. Amiga,
    Com o entusiasmo, esqueci-me de dizer ainda.
    Só um Deus poderia fazê-la assim.
    A poesia diz tudo.
    Beijinho
    Mary

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    1. É isso mesmo, Mary: Lisboa e o Ginjal, tête a tête, separados por um rio mas bem de frente, para se verem, para se anarem. E eu gosto tanto de ambos. O Ginjal é pouco mais que uma rua degradada mas é em cima do rio e dali vê-se Lisboa como de nenhum outro lugar. E Lisboa, adoro, Lisboa, é uma beleza...

      Das minhas janelas vejo Lisboa, o rio, a Vasco da Gama e ainda há pouco estive a fotografar. Mil vezes as mesmas fotografias - diz-me o meu marido. Mas são as nuvens que são diferentes, é a cor do rio, é um barco no meio da neblina, é a cor do sol sobre Lisboa. Uma coisa maravilhosa.

      Um beijinho, Mary e obrigada por partilhar este seu encantamento por Lisboa.

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