Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

15 abril, 2012

Vivo no meio dos vivos, conhecendo a grandeza do nada, a força extrema de uma respiração

   
No caminho da vida, perdemo-nos às vezes e damos por nós no meio de estranhos labirintos que conduzem ao nada. 

Andamos como loucos, dizendo palavras ocas, soltando gemidos, não olhando aos sorrisos, não quedando de receber os afectos. Andamos indiferentes, fechados, olhar vago, lábios cerrados, mãos secas. Andamos a caminho dos lugares escuros em que as respirações não se sentem, aqueles lugares frios em que a meiguice mais tépida não entra, aqueles lugares feitos de sombra e pecado avulso, de solidão e amargura.

Passa um homem curvado, olhos baixos, e murmura uma estranha loa num quase silêncio. Passa uma mulher de ancas vazias, seios tristes e nem vê os cavalos gloriosos, nem vê o calor das mãos estendidas, nem vê o olhar doce nem a ternura sabedora dos gatos que olham a luz.

Tempos estes de cinza em que há quem se perca da vida, tristes tempos, tristes.

Mas estas palavras vão para aquelas bravas pessoas que um dia descobrem a força para respirar o ar mais limpo, o ar que transporta a frescura mais sagrada, para estenderem a mão aos amigos, para as sensíveis e fortes pessoas que um dia resolvem percorrer os caminhos da verdura, os caminhos rente a casas brancas e límpidas, que um dia resolvem correr ao lado das crianças puras, dos cavalos ardentes, dos gatos, essas criaturas divinas, para as corajosas pessoas que um dia abrem os braços e o coração.

Estas palavras vão para aquelas pessoas que um dia resolvem mudar a sua vida e caminhar no sentido do tudo, da luz, da alegria, da liberdade, das aves que se lançam em pleno voo, do mar imenso, do amor. E estas palavras vão também para os que as aguardam de braços abertos, de coração expectante, de sorriso nos lábios e lágrimas de alegria à flor do olhar.


[Logo a seguir ao gato pensador, encontrarão um belo poema da Hélia Correia e, logo depois, William Tell aquece-nos o coração e abre a semana dedicada a Rossini]

Gato muito atento no caminho para o Jardim do Ginjal


                       Não sei perseverar assim, escrevia
                       o da meiga loucura. Perguntava
                       o que dizer, o que fazer, enquanto
                       não voltassem os mais apetecidos,
                       os grandemente antigos, esses sábios
                       que se engasgavam nos banquetes, querendo
                       beber muito e cantar, considerando
                       que a paciência não era qualidade,
                       esses enfurecimentos gloriosos
                       que diziam a Ilíada de cor,
                       e se esforçavam por adivinhar
                       para que rapariga olhara Sófocles
                       quando escreveu a sua Antigonê.
                       Que fazer sem a rápida alegria
                       que levanta o cavalo em plena guerra,
                       vivo no meio dos vivos, conhecendo
                       a grandeza do nada, a força extrema
                       de uma respiração.


                       ['Poema 13' de Hélia Correia in 'A Terceira Miséria']
                   

4 comentários:

  1. Cara UJM

    Bom momento de reflexão para estes tempos de cinza.
    Com palavras que nos falam daquilo que queremos calar.
    Palavras como recados carregadas de esperança.
    A dádiva, o afecto, o amor que é preciso entrelaçar.
    E ter a coragem de mudar.
    Abraço da
    Luísa sobe a calçada

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    1. Luísa que vem subindo a calçada,

      Por vezes deixo-me embalar pelo sonho, pela leveza da vida alegre e descontraída e esqueço-me que há pessoas que não têm muita sorte e esqueço-me, também, dos que assistem, impotentes, aos descaminhos daqueles que amam.

      Apeteceu-me escrever para estas pessoas.

      Mas há sempre esperança, acontecem reviravoltas felizes e atrás dos tempos, vêm tempos.

      Acredito sempre que há solução para tudo (enquanto houver vida) pelo que gosto de tentar transmitir essa vontade de acreditar na retoma do bom rumo na vida.

      Gostei de ler as suas palavras, que apontam justamente no mesmo sentido.

      Um abraço.

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  2. Chorei, amiga.
    Será que algumas pessoas, dessas que querem mudar de vida, vivê-la com alegria, o conseguirão? Como eu gostava que assim fosse! É muito difícil dar uma volta completa à vida. Há hábitos a perder, coisas a aprender, novas metas. Como eu gostaria que isso acontecesse.
    Gostei do poema da Hélia Correia.
    Obrigada por esta partilha, ou melhor, dádiva.
    Abraço grande
    Mary

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    1. Mary,

      Não vou aqui comentar as minhas palavras mas fico muito contente que tenha gostado de ler.

      Eu acredito, Mary, eu acredito mesmo que com muito incentivo, muito apoio, muito carinho, se vai lá. Acho que o segredo é o apoio, é a pessoa que vacila sentir que há quem acredite na sua recuperação, na sua felicidade, na sua vida nova, e também sentir que há pessoas que a amam e que ficarão muito infelizes se isso não acontecer. Se calhar estou a ser ingénua...

      Quanto ao poema que escolhi: a poesia é uma forma de expressão intemporal. Quem a escreve pensa numa coisa, quem a lê pensa outra e bate tudo certo.

      Um beijinho, Mary.

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