Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

10 abril, 2012

O sol e o dia agora estão lá onde o teu sorriso mora e não aqui

 
E, num dia que parecia um dia normal, atravessaste a parede. 

Levavas flores na mão, levavas um sorriso no rosto, tudo parecia normal e, no entanto, saiste do teu caminho - que era o nosso caminho - e atravessaste a parede, furaste o fino tecido, a transparente teia, que separa o caminho normal de um outro caminho para onde passam aqueles que procuram, mais cedo, a claridade branca, a luz sem mácula, o silêncio mais puro.

E eu fiquei aqui, vendo-te partir, fiquei aqui onde as paredes são gastas, nesta rua tantas vezes percorrida, aqui junto ao rio. Fiquei aqui perdida, eu e a maresia, eu e as gaivotas que vão e vêm e a nada se prendem. 

Foste-te. Foste-te sem me avisar.

Levaste contigo o sorriso, as flores, o jardim, o céu, e até o rio agora parece querer ir atrás de ti, e os veleiros enrolam as velas e passam silentes, como se quisessem seguir-te.

E eu olho as casas ocas, as gaivotas mudas, estes caminhos agora tão vazios, tão vazios, e não sei como continuar a percorrê-los sem ti. 

Diz-me que voltas, diz-me que voltas, diz. Ou diz que me esperas, ou diz que guardas as flores frescas para me dares quando eu chegar, ou diz que vais estar a sorrir quando me vires. Diz. Diz. 



[Abaixo da fotografia o poema de Sophia e porque a tristeza me incomoda, tento espantá-la com a Sinfonia Fantástica de Berlioz, logo a seguir. Mas não sei se consigo.]

As misteriosas paredes do Ginjal que engolem gatos e mulheres - mesmo rente ao Tejo


                             O sol e o dia brilham mas sem ti
                             Talvez não sejam mais o sol e o dia.
                             O sol e o dia agora
                             estão lá onde o teu sorriso mora
                             e não aqui.

                             Como quem colhe flores tu serena
                             vais colhendo sem chorar a nossa pena
                             Olhas por nós sem mágoa nem saudade
                             e o céu azul, a luz, as primaveras
                             habitam na perfeita claridade
                             em que nos esperas.


                             [Poema de Sophia de Mello Breyner Andresen in 'No tempo dividido']

4 comentários:

  1. Amiga:
    Que coisa estranha! Comecei a ler o seu texto, feliz com a história de Eva.
    À medida que o lia, apoderou-se de mim, uma tristeza enorme. Fez-me impressão a história, a imagem da mulher.
    Quando vi que também estava triste, compreendi. A sua tristeza reflectiu-se no texto e em mim.
    Li Sophia e a tristeza continuou, mansa, mas persistente e funda.
    Vou experimentar Berlioz. Se não passar, vou ouvir a "Canção de Solveig" de Grieg. Costuma resultar.
    Beijinho
    Mary

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    1. Mary,

      Eu sou um bocado primária ou transparente, nem sei bem (ou as duas coisas): se não estou grande coisa, isso transmite-se logo. Estava com dores nas costas, depois li aquele poema da Sophia e lembrei-me de alguém que partiu há pouco tempo e dos outros que têm partido e daqueles de quem a vida nos afasta e nem se sabe, às vezes, porquê e toda eu estava numa tristeza. Mas como sou assim, extrovertida e primária, exteriorizo e fico pronta para partir para outra. Por isso, saí daqui, fui para o UJM e a Eva estava jururuca, triste, sombria, o estado de espírito com que eu ia mas, logo depois, para trás das costas e para a frente é que é caminho e, nas linhas de baixo já estava inspirada para escrever sobre um belo festim. É o meu lado de Eva...

      Obrigada pela solidariedade e compreensão, Mary.

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  2. Cara UJM:
    Mais uma foto num momento feliz, digo eu... ,mas tantas ilusões!

    Quanta incerteza, quanto desconhecimento do mundo dos outros, das casas desventradas, dos muros rasgados - inconvenientes da civilização, contratempos da vida transformada em tarefa e pressa desigual na cidade de todos !

    Abraço da
    Luísa sobe a calçada

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    1. Luísa subindo a calçada,

      Momentos que não compreendemos, afastamentos imprevistos, incompreensíveis, casas que se desfeiam, que se desfazem, pessoas que vão. E nós passando por tudo e por todos e sem tempo, tem toda a razão, sem tempo. Mas tento ir fixando instantes, quer na fotografia, quer na ideia para depois, aqui, ir dando conta do que vejo.

      Palavras e imagens atiradas ao vento mas, enfim, há sempre pessoas que as recolhem com carinho e isso já é motivação bastante.

      Obrigada, Luísa.

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