Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

12 abril, 2012

Menos derramada a letra, estende-se harmoniosa, secreta, invernosamente fraterna


Há tantas, tantas coisas que eu não posso fazer ou evitar. Nem vou exemplificar porque seria fastidioso (e porque não gosto de falar do que não gosto). 

Mas há coisas que estão ao meu alcance. E, de entre essas, há as que me apetecem, as que me dão prazer. E, estas, apetece-me aqui exemplificar.

Tu que me lês aí no sossego da tua quietude, escuta, quero agora falar ao teu ouvido. Baixinho, vou dizer muito baixinho ao teu ouvido.

Eu gosto de fotografar o rio à noite no sítio em que o cais se ilumina. O rio fica de um azul irreal, as luzes aquecem a cor laranja dos barcos e do cais e eu, em silêncio, dentro de mim, mergulho neste mar de cores alucinadas e, em silêncio, misturo as cores, puxo por elas, deixo que me animem e dou por mim a dançar dentro de mim.

Escuta: achas que sou doida, alienada, não achas? Mas não sou, sou apenas uma mulher pássaro que gosta de voar rente ao rio nas noites floridas de cores luminosas. Achas que eu não sou uma mulher igual a todas as outras melhores, não achas? Pois, aí tens razão: ninguém é igual a ninguém. Eu sou aquela mulher que aqui, na noite reconfortante, se senta a escrever palavras que se põem umas em cima de outras, formando degraus que as levam até ao céu para daí, então, se irem depor, humildes, sob o teu olhar incrédulo.

Eu gosto de flores às cores, de pássaros brancos, de palavras alegres, de gestos coloridos, de afectos quentes e gosto, ah, gosto tanto, de te contar estas coisas pequenas, simples, graciosas. Eu gosto, gosto mesmo tanto, de pintar com cores vibrantes palavras que se derramam em  ternura por ti, palavras secretas que falam de harmonia, palavras que ajeito aqui, como se bordasse, um bordado colorido e afectuoso para te oferecer, a ti que me lês, a ti que me vais guardando, carinhosamente, dentro de ti.  

Escuta: gostas das minhas palavras que voam desde lá em baixo, onde o rio azul cobalto se pinta de branco ou de cor de laranja até aqui à minha varanda, depois até à ponta dos meus dedos e depois até aí ao teu colo  quente, à tua boca que sorri? Estás a sorrir? Estás, não estás...? 

Conta-me. Diz-me um segredo, diz...Diz que sorris com as minhas palavras, diz que te apetece vir mergulhar comigo neste rio brutalmente azul, diz que te apetece atravessar esta noite fresca e luminosa, voando ao meu lado e ao lado das outras gaivotas, diz que gostavas mesmo de pousar ao meu lado nos muros com cheiro a maresia e luzes íntimas como estrelas, diz, diz, diz ao meu ouvido. Diz, eu gostava tanto de ouvir.


[Abaixo da fotografia, um poema sobre um certo mar vermelho e, logo a seguir, uma nuit d'ivresse, a fechar a semana dedicada a Berlioz]


Noite no Cais do Ginjal - as cores em festa na beira do rio


                               No pavilhão da orelha
                               descanso o vento,
                               ao mar vermelho
                               pinto-o de branco
                               enquanto pressinto
                               quase um rebento,
                               uma flor, um unguento,
                               suportando, amáveis,
                               o peso do que sou.

                               Menos derramada
                               a letra, estende-se
                               harmoniosamente, secreta
                               invernosamente
                               fraterna. Espectral,
                               desenha a escada
                               suavemente proporcional
                               aos limites do nocivo.


                               ['Mar Vermelho' de Ana Marques Gastão in Adornos]

6 comentários:

  1. E o rio põe-se a jeito, todo mimoso, enfeitando-se de cores e luzes numa miríade estonteante, deixando-se captar e capturar pela mulher pássaro. E a nós, ela leva-nos a voar nas suas palavras que escorrem como mel, qual feiticeira, uma Circe segredando encantamentos ao nosso ouvido. E nós sorrimos sim, sorrimos pela magia que nos transmite, completamente rendidos...

    Boa noite, Mulher Pássaro.

    :)

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    1. Olá Olinda,

      Eu hoje estou em dia de ficar toda contente, toda 'babada' mesmo, por sentir que as minhas palavras tocam alguém. A gente está aqui em casa a escrever, o coração nas mãos, e não sabe se alguém gosta do que lê ou se, simplesmente, pensa: 'esta é maluca todos os dias...'

      Por isso, muito obrigada, Olinda. As suas palavras são importantes para mim.

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  2. Amiga:
    Misturei os dois postes. No do Plácido, tem resposta aos dois.
    Beijinho
    Mary

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  3. Querida UJM

    Os seus textos são lindíssimos. Mas este é dos mais belos e emocionantes. Escreve como bem diz, com o coração nas mãos, sentimo-lo, interpela o leitor e convida-o a tomar parte numa viagem intimista com um valor poético incomensurável.

    Eu é que agradeço estes momentos de leitura que aqui nos oferece, nos quais se sente o pulsar da vida.

    Um bom resto de domingo.

    Bj

    Olinda

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    1. Olá Olinda,

      Às vezes gostava de escrever e estar no meio das pessoas que me lêem, gostava de sentir o olhar das pessoas enquanto lessem as palavras que eu fosse escrevendo.

      Obrigada pela presença e pelo seu olhar sobre as minhas palavras.

      Um beijinho.

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