Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

29 abril, 2012

Deita-te aqui - esta noite, dentro de mim


Ando por aqui, confiante, vadia, extasiada, sedenta. Tanto azul deixa-me assim, doida, com vontade de mais. 

Olho este rio hoje tão azul, o céu que se pôs tão azul... e até os navios são azuis. A aragem está fria e eu ando por aqui, pela beira do rio, e começo a sentir-me perdida no meio de tanto azul, sozinha.

Tanto azul não pode ser visto assim, por uma vadia, doida, mulher sedenta, especialmente num dia tão azul, tão frio.

E, então, sem que o espere, eis que sais tu do meio do azul. Vestido de azul, lento, confiante, sorridente. Olhas os veleiros, olhas o outro lado, olhas quem passa. 

Vens na minha direcção.

E eu cheia de frio, cheia de vontade de ti que assim me apareceste vindo do azul - mas sempre tímida, sempre menina, sempre sonhadora. Ao ver-te, doce e tu, sim, vadio, a encenação de vadia de beira de rio cai por terra.

Baixo os olhos, com medo que me vejas, mas com tanta vontade de ti. Páro, olho o rio, aflita, com suores frios. Mas tu avanças e aproximas-te. E eu perco a voz, perco a força, perco a razão.

E, então, passas-me o braço pelo ombro e aqueces-me e eu deixo que me aqueças, que me abraces e fecho os olhos, não quero saber de que azul saíste, não quero saber de nada, nem quem és, nem sequer o teu nome. Nada. Quero-te a ti, apenas a ti. 

E tu dizes-me: anda, vamos sentar-nos, vamos conversar aqui, envoltos em azul. E eu sento-me. Mas tremo. De frio, de pudor, de insegurança, de medo. E tu dizes-me: tremes tanto. Vamos para ali que vou agasalhar-te, vou cobrir-te de beijos, vou entrar em ti, minha menina linda.



[A seguir a este dia de azul e amor, encontrarão o belo poema de Maria do Rosário Pedreira e, logo a seguir, é altura de ficar com os olhos bem abertos: Placido Domingo avança para abrir a semana dedicada a Puccini.]



Na beira de um Tejo incrivelmente azul, desta vez do lado de Lisboa


                                 Deita-te aqui - esta noite, dentro de mim,
                                 está tanto frio. Se fores capaz, cobre-me de
                                 beijos: talvez assim eu possa esquecer para
                                 sempre quem me matou de amor, ou morrer
                                 de uma vez sem me lembrar. Isso, abraça-me

                                 também: onde os teus dedos tocarem há uma
                                 ferida que o tempo não consegue transportar.
                                 Mas fecho os olhos, se tu não te importares, e
                                 finjo que essa dor é uma mentira. Claro, o que

                                 quiseres está bem - tudo, ou qualquer coisa,
                                 ou mesmo nada serve, desde que o frio fique
                                 no laço das tuas mãos e não regresse ao corpo
                                 que te deixo agora sepultar. Não sentes frio, tu,

                                 dentro de mim? Nunca nevou de madrugada no
                                 teu quarto? Que país é o teu? Que idade tens?
                                 Não, prefiro não saber como te chamas.


                                 [Poema de Maria do Rosário Pedreira in 'Nenhum nome depois']

2 comentários:

  1. Amiga:
    Belo pedaço de prosa. Romântico, quase ardente, de um azul,em que apetece mergulhar.
    O Poema é lindo, como tudo o que sai do coração da Maria do Rosário.
    Beijinhos
    Mary

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    1. Mary,

      Gosto imenso da poesia da Maria do Rosário Pedreira. Cada poema é uma história, um estado de alma, envolve-nos.

      Talvez por isso a minha prosa saíu assim, envolta em romance e azul (a própria fotografia que escolhi me inspirou também).

      Ela disse que só lhe dá para escrever poesia quando está mal de amores. Como, felizmente para ela, está muito bem ... não temos tido poemas novos...

      Um beijinho, Mary.

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