Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

07 março, 2013

como um hirsuto fauno que modela uma delgada argila


Debruças-te sobre mim, roças a tua barba sobre a minha pele nua e eu queixo-me, ai..., e tu ris, ai fauno doido, que me arranhas, e depois, com as mãos, percorres a minha mão, dedo por dedo, e depois já os percorres com a boca e depois sobes pelo braço e eu fecho os olhos. Fauno lascivo, suspiro, e tu nem me ouves e segues, agora a axila e cheiras e sorris e dizes que cheira tão bem e continuas e percorres o pescoço com as mãos, as duas mãos, sentes o perímetro, e eu, indefesa, não digo nada e depois segues pelo colo e cheiras, cheiras tão bem, e eu sorrio, e depois percorres os seios, um e outro e os dois e eu deixo, porque não haveria de deixar?, e depois beijas e lambes e depois voltas a usar as mãos e é como se avaliasses o volume, a curva e a luz e a sombra e depois afastas-te e estudas a perspectiva e dizes-me que esconda o rosto e eu escondo, depois voltas ao meu corpo e amacias o ventre e modelas as ancas e eu deixo, gosto, e já nem sei se respiro se suspiro se transpiro e depois afastas-te e abres a janela, deixas que a aragem faça dançar as cortinas, depois afastas as cortinas e deixas que a sombra dos ramos nus da grande árvore se desenhe no meu corpo nu e o vento agita os ramos que se agitam no meu corpo e o meu corpo é um pássaro e é árvore e depois tu prossegues e afastas-me as pernas e vês o melhor ângulo, a melhor posição e eu deixo que tu me estudes, me mexas, me ajeites, que me modeles e sou argila, e sou carne, e sou desejo, e sou uma tentação que se deixa tentar, e sou uma mulher que ama e se deixa amar.

Depois, mais tarde, quando a aragem se aquieta e o sol tardio percorre, guloso, o meu corpo rendido, afastas-te de novo e enfias as mãos no barro molhado, quente, macio, e eu olho e não sei se sou a que nasce das tuas mãos sujas, se sou a que se entrega ao teu olhar na cama desfeita.



[Abaixo da árvore cuja sombra percorre o corpo da mulher que é verso nas mãos de Vasco Graça Moura, uma brilhante grande interpretação de Martha Argerich que se faz acompanhar de um grande violoncelista, Maisky, tocando Schumann]


Muralha na Boca do Vento sobre o Ginjal


                                            como um hirsuto fauno que modela
                                            uma delgada argila (e encurva, estira
                                            inflecte, aperta, encrespa, intui, remira
                                            o contorno lascivo que revela

                                            a axila, a coxa, o torso, a face e nela
                                            o sono ou o sorriso em que respira)
                                            quer a pressão dos dedos se refira
                                            ao que outro em tempos fez de uma costela,

                                            mas que à figura táctil acrescente
                                            um touro, um cisne, a sombra de um falcão,
                                            as folhas de hera, a concha, ou a serpente

                                            para o retorno eterno e tem à mão
                                            os mitos que refaz à nossa frente
                                            em forma de mulher e tentação



['josé rodrigues no atelier da árvore' de Vasco Graça Moura in 'visto da margem sul do rio o porto', 
uma antologia poética, 
um livro belíssimo com fotografias de Maria Manuela Graça Moura e aguarelas de António Cruz 
da Editora Modo de Ler]

2 comentários:

  1. Muito bom!
    Dos sentidos, o tacto...

    bfs
    Abraço

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  2. Dos sentidos, todos: visão, audição, paladar, olfacto e, claro, tacto. Todos muito importantes, em cada momento um mais que outro. Mas se puderem coexistir, em cocktail, tanto melhor.

    Um bfs para si também e um abraço!

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