Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

13 março, 2013

É nas linhas das mãos que os deuses escrevem os mais belos romances


Dedicado a MAP


Vejo os nomes gravados na pedra, declarações de amor, de amores, vários nomes, vários romances, muitas vidas sobrepostas. Pessoas apaixonadas passam pela grande muralha e comprometem-se para o futuro: amores eternos, ali escavados, mais gravados que no papel. E o tempo vai erodindo a muralha e vai erodindo as vidas e os nomes ali continuam. Para sempre.

Uma pessoa ama outra pessoa e ama tanto que tem que o partilhar com o mundo e tem que jurar a eternidade do amor. O valor da palavra gravada na pedra. Um valor eterno, julgam.

Nunca o fiz, não acredito em amores eternos nem sei o que é a eternidade. Nos amores não gosto de me comprometer. Mas já vi o meu nome talhado na madeira e, também, escrito numa parede. Foi alguém que muito me amava que o fez. Louco, louco, desafiava-me, esse. Eu ria, mas queria lá eu saber das letras do meu nome ali gravadas aos olhos do mundo. E já vi tantas vezes o meu corpo descrito em palavras, as minhas mãos, os meus seios, a minha boca, os meus olhos, o meu cabelo, eu ali gravada no papel. Esse era o poeta. Poemas e canções e a sua voz que me cantava. Mas isso, para mim, de pouco valia. Ingrata, talvez.

É que, para mim, o que vale é um sorriso que me desafie, um olhar que me seduza, uma mão que se afoite, uma palavra que me desequilibre, para mim o que vale são os pequenos momentos, os mais efémeros, a beleza inquieta da incerteza. Só isso quero. Mais nada.

Ah, e uma mão que me afaste o cabelo da testa quando o vento sopra com mais força, uma mão que toque o meu coração e o amor que há dentro dele, uma mão que afague a minha mão, que me agarre, que me tente, que me ampare, que me provoque. Uma mão que desenhe romances na minha mão, que desça as linhas das minhas mãos como quem desce um rio. E que comigo percorra as linhas que sobem das minhas mãos até aos meus sonhos. Alguém que me deixe voar e que olhe por mim enquanto voo.



[Abaixo de mais um belo poema de Maria do Rosário Pedreira, uma nova grande interpretação de Mischa Maisky, desta vez tocando Tchaikovsky]

Amores gravado na pedra na grande muralha do Ginjal



                                     Tardávamos diante das palavras, como se os olhos
                                     fossem cegar sobre as páginas que não acabávamos
                                     de ler só para fazer durar o engano, o livro, o tempo
                                     de todas as leituras. Guardávamos silêncio

                                     à cabeceira. E cruzávamos de noite os dedos
                                     à procura da luz que emanasse de um seio, da onda
                                     do cabelo sobre a orelha, dos ombros, da cintura,
                                     do começo dos lábios. Normalmente achávamos apenas
                                     a sombra da roupa na curva dos joelhos, a penumbra
                                     entre os nossos corpos quietos e deitados.

                                     É nas linhas das mãos que os deuses escrevem
                                     os mais belos romances. Nas nossas, porém, somente
                                     elaboraram um divertimento, um esboço, um rascunho,
                                     nem sequer literatura.



                                    [Poema de Maria do Rosário Pedreira in 'poesia reunida']


/\



Quando as palavras 
Se ouvem
Se escrevem
Claras
No eco sensível 
De si mesmas
Grita-se bem alto
O Amor
Como se apenas 
Se murmurasse.


[De Joaquim Castilho num comentário abaixo]


4 comentários:

  1. Olá,

    Foi muito 'engraçado' descobrir que o MAP da dedicatória afinal não era o Manuel António Pina...

    Tem sido um prazer imenso ler a Poesia Reunida da MRP.
    Todos os dias descubro um poema que me 'toca' por uma ou outra razão...

    É sempre um prazer imenso ler o que escreve inspirada nos nossos poetas...

    Muito obrigada por tudo!!!

    Antonieta

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    1. Olá Antonieta,

      Só depois de ter escrito as suas iniciais é que me dei conta da coincidência e depois hesitei pois poderia parecer que estava a dedicar o post ao Manuel António Pina e parecer despropositado. Mas, ainda assim, deixei ficar pois, se são as suas iniciais, porque as não haveria de usar (e, se são as mesmas do Poeta que eu tanto admiro, tanto melhor).

      Claro que gostei muito deste poema que, certamente já deveria ter lido, mas do qual não me lembrava. E tem graça, pois, a 'cena' das linhas da mão. A vida escrita nas linhas da mão, escrita, rasurado, emendada. Gosto da ideia, gosto mais do que pensar que nascemos já com o destino traçado.

      Agradeço-lhe o ter-me lembrado este poema, tal como agradeço Os Poetas e tantas outras preciosas indicações.

      Muito obrigada. Um dia radioso!

      Beijinhos.

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  2. JOAQUIM CASTILHO14 março, 2013

    Olá UJM!

    Permita-me uma singela e pobre homenagem à minha poetisa predilecta Maria do Rosário Pedreira, tão ocupada que anda na descoberta de novos autores , que não tem tempo de construir os seus poemas e se esquece dos seus fieis leitores. Os poemas que vai fazendo para muitos dos nossos melhores intérpretes da música ligeira não chegam para colmatar a falta dos grandes poemas dos livros que tão espaçadamente vai publicando. Aqui está para ela:

    Quando as palavras
    Se ouvem
    Se escrevem
    Claras
    No eco sensível
    De si mesmas
    Grita-se bem alto
    O Amor
    Como se apenas
    Se murmurasse.


    Um abraço


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    1. Olá Joaquim,

      A sua poesia já está junto à poesia daquela que tanto admira(mos).

      Partilhamos esse gosto. Maria do Rosário Pedreira é uma Poetisa que escreve muito bem mas que, mais do que isso, conta histórias nos seus poemas, mas conta-as com uma sensibilidade musical que nos prende. Eu já tinha os livrinhos (o diminutivo tem a ver com o tamanho deles) individuais mas agora tenho a poesia reunida e parece que, aqui, os leio pela primeira vez, acompanhando o percurso afectivo da sua autora. Pode ser que ande a escrever para a gaveta e que, um dia destes, tenhamos uma surpresa.

      Um abraço!

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