Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

26 março, 2013

é possível que se sustente o corpo na confluência destes templos


Repara, meu amigo, como tudo é uma ilusão. O que é pesado pode ser muito leve, o que é distante pode estar, afinal, muito próximo. O que é fixo pode ser móvel, o que é adquirido pode escapar. O que é tão belo pode passar despercebido. 

Um dia um arquitecto, um artista, concebeu uma parede com uma abertura pela qual escorresse água e através da qual se poderia ver o rio. Alguém desenhou e plantou um pequeno jardim. Alguém desenhou uma ponte como um suave véu deslizando sobre as águas. Todos e nenhum podem ter imaginado que quem por ali passasse poderia descobrir que, baixando-se um pouco, poderia ver a conjugação perfeita de todas estas ideias generosas.

E, no entanto, meu amigo, quem passa apressado ou distraído geralmente não presta atenção ao que não é óbvio, passando, pois, por esta vida sem ver toda a imensa beleza que está à sua disposição.

Para ver, ver mesmo, é preciso estar disponível para ver, é preciso ter curiosidade, é preciso ter o olhar limpo, ver tudo como se fosse a primeira vez, olhar com emoção, sentir carinho pelo que os outros fizeram - seja o simples desenho de uma parede, seja a inocente ideia de ali colocar água a correr. E, para ver, é também preciso sentir verdadeira devoção e agradecimento pela natureza, sempre tão bela, sempre um altar perante o qual se sente vontade de ajoelhar.

Para sentir a felicidade de viver é preciso querer ser feliz, meu amigo e, sim, podes dizer-me que isto parece uma redundância que eu confirmarei, sim, é mesmo, mas é muito verdade. E é preciso sentir aquele bem-estar feito de leveza, sentir que o corpo e a alma convergem na adoração de um templo efémero, idealizado, invisível feito pelos deuses e feito pelos homens.

Dirás, meu amigo que és tão descrente, que foram os deuses que fizeram tudo, que tudo dão, que tudo tiram e, na tua insignificância anulas-te, menorizas o que te cerca, menorizas a importância da tua vontade. Mas não o faças porque, meu amigo, a beleza que te cerca está em ti, és tu que tens que a ver.

Muita conversa, dirás, eu sei, meu amigo, eu sei que é o que pensas. Mas faz este exercício, meu amigo: liberta-te do peso dos deuses, do destino, do tempo, do passado. Vive. Vive, meu amigo, vive. E sente a suprema beleza e a dócil leveza do que te rodeia, das pequenas e quase imperceptíveis coisas que te rodeiam. 



[Abaixo da janela aberta ao rio, poderemos sentir a leveza das belas palavras de André Tomé e, logo abaixo, um outro momento de beleza e leveza. Uma vez mais, uma grande interpretação de Julia Fischer, desta vez tocando Brahms]




Um jardim, a Ponte Vasco da Gama e o Tejo
vistos através de um muro com uma pequena queda de água



                                       uma rocha uma casa
                                       um ponto
                                       é possível que se sustente o corpo
                                       na confluência destes templos
                                       é possível também
                                       que prevaleça a alma
                                       se do que se observa
                                       se libertar o peso de carregar
                                       os deuses nas coisas.



                                       ['Leveza' de André Tomé in Insula]


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