Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

31 janeiro, 2012

Escolho sempre um nome que me soe amante

 
Como falar de ti? Impossível.

E não és um, és um de vários e a todos amo - amores distintos, mas amores intensos em qualquer dos casos. Estás ao meu lado, estás dentro de mim, saíste de mim, saíste de quem saíu de mim. Tens o nome do apóstolo, o nome de reis, o nome de todos os homens especiais na minha vida. 

Como é possível que tenham todos o mesmo nome? Mas assim é. Chegam-se a mim, partem de mim e o nome é sempre este. Joviais, lutadores, vencedores, apaziguadores, brilhantes, belos, bons, fortes e amigos, amantes, eternos amantes, há sempre um junto a mim. Desde há muito que há sempre mais que um no meu coração.

Junto ao oceano, junto ao rio, na montanha, na cidade, em dias de sol, em dias de névoa, em dias de tempestade ou quando o tempo renasce, nunca estou só e a minha companhia mais doce é sempre um ou mais que um de vós. 

Mas hoje é para um em particular que escrevo, hoje é a um em especial que desejo uma vida longa e feliz, uma vida inteira ao meu lado, for everMy love.



[Hoje temos prelúdios de Gershwin, ao piano, e é uma animação que o dia é de festa - desça um pouco mais, por favor.] 

No Ginjal, vendo o Tejo, Lisboa, um cacilheiro

                               
                                 Escolho sempre um nome que me soe amante
                                 retrato de homem nascido
                                 'em plena guerra', de esparsas relíquias
                                 incêndio e incendiador         dor e adaga dolorosa.

                                 Ora brilho com ele em marés vivas
                                 como a água na areia brilha assiduamente
                                 ora nos bebem os inimigos o sangue
                                 os pensamentos
                                 o desvão menos exposto do desejo.

                                 Mas ele brilha            João            em todo o corpo
                                 Fuma, o gladiador.
                                 Luta     amordaça     desfaz            refazemor

                                 Apocalipse segundo João.


                                ['Recanto 7' de Luís Neto Jorge in Poesia]

Gershwin - 3 Prelúdios



Nota: Não consegui descobrir o nome do pianista...

30 janeiro, 2012

Mulheres que caminham sozinhas no bosque à noite

 
Ao espelho, passa a sombra e o eyeliner nas pálpebras, aplica baton e une e desune os lábios para que a cor e o brilho melhor se espalhem, com um pincel macio espalha o rouge nas maçãs do rosto, a seguir solta o cabelo, escova-o, agita a cabeça para que melhor se solte, olha-se de frente, depois de lado, a seguir aplica perfume em spray na orla do pescoço, nos pulsos, calça as botas, vê-se no espelho de corpo inteiro, veste um casaco sobre o vestido justo, uma última mirada ao espelho, gosta, ensaia um sorriso, está tudo bem.

Fecha a porta, chama o elevador, sai para a rua. Passa da meia noite. Está frio, a respiração forma um halo à sua volta. Mãos nos bolsos, decidida, caminha pela noite. Sozinha avança na noite. Receia as sombras, teme os vultos, mas avança decidida. Aspira o ar frio, o peito treme de medo, que vai fazer desta vida? mas avança sozinha nesta noite que não foi feita para mulheres sozinhas.

Pensa que o sangue que sente escorrer do seu corpo é bem o espelho da inutilidade que é a sua vida actual. Um fio de sangue quente, inútil. Avança na noite, avança, avança em direcção ao nada. Uma mulher cheia de sementes inúteis atravessa a noite. Pintada, arranjada, perfumada - para ninguém, apenas para atravessar a noite.

Olha as árvores nuas, fantasmas que habitam a paisagem, passa por uma casa grande abandonada, e sente que esta noite desolada e fria não a rejeita e, então, avança, mais tranquila. Ninguém a vê, ninguém a quer, ninguém sentirá a sua falta se mergulhar no poço mais escuro de um bosque, na cova mais funda do mar. E avança sozinha na noite.

Vai em silêncio. Há muito que, à noite, em casa, num quarto silencioso e indiferente, começa por se despir de palavras, dobra-as direitas, arrumadas, sobre a cadeira ao lado da cama. E então despida de palavras, nua, começa a vestir as vestes da noite. Mulher silenciosa vestida para a noite. Mulher que penetra no mato mais solitário, silenciosa, o peito vazio, o sexo inútil, os olhos secos. Apenas o cabelo esvoaça. O cabelo esvoaça - e ao seu lado algumas indómitas palavras que, em silêncio, se levantaram da cadeira e que agora voam, transparentes, para zelar por ela, mulher sozinha atravessando a noite.



[Numa noite fria e triste, convido-vos, meus amigos, a que me acompanhem. Vou ali mais abaixo, a seguir à fotografia e ao belo poema de Ana Duarte, tentar aquecer a alma ao som de Gershwin.]

Alguém que caminha na noite


                      Mulheres que caminham sozinhas no bosque à noite
                      mulheres sonoras alagando de calor as copas dos arbustos
                      mordendo o pânico, iluminando o voo dos insectos
                      Das suas cabeleiras soltam-se pensamentos
                      como da folhagem inacessíveis aves nocturnas
                      Ah, essas mulheres atrás de quem se fecha a noite,
                      que cosem com um fio de sangue os caminhos
                      Em frente abre-se o peito das mulheres
                      na direcção do poço mais negro do bosque
                      abre-se o peito das mulheres
                      Despiram-se da voz na primeira encruzilhada
                      e todo o seu corpo é um seixo que enche a boca da noite,
                      uma pedra solta forçando a passagem entre os veios da noite,
                      uma contracção de semente que aperta a orla do bosque
                      - e a poeira ergue-se em torno dos seus pés como
                      a respiração da fera ao calor dos herbívoros


['Mulheres que caminham sozinhas no bosque à noite' de Ana Duarte in Criatura]
  

Gershwin - Bernstein ao piano interpreta Rhapsody in Blue



29 janeiro, 2012

Nada é perfeito como a tua noite

 
Andamos os dois junto ao Tejo, a tarde chega ao fim, a noite cai, as pessoas recolhem-se, os barcos regressam ao cais, algumas luzes acendem-se. Caminhamos em silêncio, uma ou outra palavra trocada, quase sussurrada . Em momentos assim, sagrados, todo o recolhimento é pouco.

As águas solenes do rio ficam prateadas, macias, a aragem faz apenas levantar ao de leve a seda líquida, subtis requebros de seda suave, quase branca. Olho, quase indiscreta, uma beleza assim não deve ser banalizada. 

Depois passa por nós uma mulher correndo, uma égua de trote cadenciado, cabelos voando, patas fortes batendo no caminho, é uma mulher alada, corre na noite, é uma mulher saída do poema de Herberto.

E nós continuamos, um último veleiro, recolhendo as velas, rasga o rio, uma visão quase mágica, um veleiro silencioso e digno.

E então eu digo-te baixinho - e tu encolhes os ombros porque tantas vezes já me ouviste dizer a mesma coisa -  que queria ser capaz de voar, primeiro rente ao rio, sentindo o cheiro da maresia, sulcando as águas de prata macia, depois elevando-me, longas asas brancas na noite mágica, abrindo o espaço com o meu voo, eu mulher nua, banhada de luar.



[Peço-vos que aceitem o meu convite e que venham voando, ao de leve, passando a fotografia, o belo poema de Bernardo Pinto de Almeida até que a sublime voz de Renée Fleming nos acompanhe, abrindo assim a semana que vou dedicar a Gershwin.]

Anoitecer no Tejo
(a Torre de Belém ao fundo)


                                         Nada é perfeito como a tua noite
                                         se outro sol nela se levanta
                                         quota parte de treva que anuncia
                                         a traço grosso o rosto claro instante.

                                         Olhos febris a boca estremecendo
                                         à simples sugestão da queimadura
                                         movimento subtil age os quadris
                                         do frémito possante que insinua.

                                         Barco fundeado no horizonte
                                         movimento do vento que se espanta
                                         se acaso luz feroz evidencia
                                         prata líquida de fuel flagrante.

                                        A noite inunda-te. A lua espelha no mar sua moldura
                                        pueril respiração do peito erguendo
                                        zona de sombra onde tudo diz
                                        que antes mesmo da nudez já estavas nua.


['Corto Maltese' de Bernardo Pinto de Almeida in '366 poemas que falam de amor']

  

George Gershwin - Renée Fleming interpreta Summertime (de Porgy and Bess)

   

nnee 
  

26 janeiro, 2012

Vejo na incerteza do vento um convite à partida

 
Ah meu amigo, se soubesses a vontade que tenho de partir. Chego-me aqui, à beira deste rio tomado pelo azul do céu e deixo-me ir, mas apenas, meu amigo, mas apenas em pensamento. Espero que venha o vento, quase fecho os olhos e penso que ele me leva, tomara que me levasse.

Ah meu amigo, aqui estou mesmo à beira deste rio, e olho os veleiros que por aqui passam, chego-me, abeiro-me, talvez algum me leve, talvez o vento me leve até junto das alvas velas, ah meu amigo, e talvez no veleiro eu vá para longe, quero tanto partir.

E os veleiros passam, adornam, tombados pelo vento, e eu aqui, meu amigo, e eu aqui a olhá-los. E o vento traz-me as vozes que vêm do mar e eu quero gritar levem-me, levem-me, mas não grito, e em silêncio ouço-me a chorar ai de mim que não vou, ai de mim que não faço senão ficar.



[Ah meus amigos, acabei de escrever e até eu parece que fiquei com um grito estrangulado no peito - que entre, pois, o violino até porque a semana de Paganini está a acabar.]

À beira Tejo homem contempla o Tejo
e um veleiro tombado pelo vento


                                      Sigo o curso do vento,
                                      desconheço-lhe a feição,
                                      vendo na sua incerteza um convite à partida.
                                      Gosto da forma como chega e se instala.
                                      Assim, folgado de maneiras ou delicadezas
                                      marca o vinco da presença,
                                      sem que ninguém o possa ignorar.
                                      Potenciando o nascimento de novas formas,
                                      apadrinhando transformações
                                      das que se julgavam intactas.


[Poema de Patrícia Aguiar in '190 minutos aqui', belo livrinho com ilustrações de Marisa Benjamim]
   

Paganini - Yehudi Menuhin no violino interpreta Moto Perpetuo

   

25 janeiro, 2012

E aí estaria o amor em estado de pura nudez


Dizes-me meias palavras que apenas eu percebo, fazes um meio sorriso que apenas eu vejo, inclinas a cabeça e eu vejo um gesto de carinho que mais ninguém vê.

E eu pisco-te o olho sem que mais ninguém veja, e deito-te a língua de fora quando mais ninguém está a olhar e roço a perna na tua e mais ninguém percebe.

Depois, à noite, na cama, os dois juntamos palavras nuas e acendemos o candeeiro para que a luz banhe a prova do nosso amor, um poema puro que é só nosso.



[As palavras são de cumplicidade e festa e pedem um capricho em violino - siga pois, a seguir ao Rui Caeiro, encontrará a cintilação de Paganini.]

Avistadas do Jardim do Ginjal, iluminadas pela luz da manhã,
velas brancas sobre uma mancha contínua de azul
(a ponte Vasco da Gama ao fundo)


                            Um poema de amor que ninguém            
                            tivesse feito e só um merecesse
                            e só o outro entendesse

                            E aí estaria ele o amor
                            em estado de pura nudez
                            litográfica à século das luzes


                            (Poema de Rui Caeiro in 'O quarto azul e outros poemas')

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Por me agradar sobremaneira, puxo aqui, ao palco dos poetas, o poema que, muito generosamente, o poeta abaixo mencionado aqui me deixou na caixa de comentários.


Margens


Eram margens que ali se viam

E que uma à outra se sentiam

Por baixo do ondular 
Do discreto mar…



Eram margens nas matinas se amando 

Escondidas em neblinas de azuis 

À luz de velas brancas 
Esquecidas no mar…




José Rodrigues Dias


(Nota ao autor: aparece um pouco desformatado e não consigo repor a formatação original. As minhas desculpas)

Paganini - Jascha Heifetz interpreta Caprice No. 24



24 janeiro, 2012

Eu volto o rosto para cheirar-te quando passas


- Vou fechar os olhos e vou descrever-te. 

- Está bem. Fecha-os bem. Cheira-me apenas. Descreve-me pelo meu cheiro.

- Tens uma blusa justa, decotada, por onde espreito o elevar dos teus seios macios, tens uma saia justa onde terminam umas pernas altas e torneadas, tens um casaco que disfarça as curvas do teu corpo, tens um cabelo comprido, com cheiro a alperce e a uvas, tens uma pele macia, muito doce, que cheira e sabe a mel.

- Acertaste em quase tudo mas agora diz de que cor é a blusa, de que cor é a saia, de que cor são os meus lábios.

- A blusa talvez seja azul mas debaixo da blusa é que a mim mais me interessa e era capaz agora de desenhar a curva dos teus seios; a saia talvez seja azul escura mas interessa-me mais o que sob ela se esconde; e os teus lábios são vermelhos, da cor do teu coração, e brilhantes como a saliva que agora me apetece.

- E o fogo que trago no meu corpo, de que cor é?  

- O fogo do teu corpo é da cor das chamas que trago no meu peito. 

- E porque lavra um incêndio dentro de ti?

- Porque o meu corpo é pasto para as chamas que se soltam do teu olhar e eu só sei de uma forma de o apagar.



[Não sei se os violinos de Paganini apagam ou amotinam este incêndio mas talvez aqui seja a única opção - desça um pouco mais, é logo a seguir ao poema de José Miguel Henriques.]



                                 eu volto o rosto para cheirar-te quando passas
                                 para decorar de ti algum contorno
                                 saber por fim que lume trazes
                                 junto ao corpo

                                 que incêndio apagas
                                 ou amotinas


                                [Lume de João Miguel Henriques in 'Isso passa']

Paganini - A Limburg Symphony Orchestra com Shlomo Mintz no violino interpretam o Concerto para violino

   



23 janeiro, 2012

Ninguém ama como eu as estrias do teu ventre, a primeira casa de dois filhos

 
Passas a tua mão pelo meu ventre e sorris. Dizes neste ninho viveram os meus dois passarinhos e eu passo a mão pelo teu rosto que sorri, nem parecem tuas estas palavras.

És um homem de poucas palavras, vejo-te a olhar os telhados e os pássaros que pousam nos beirais mas não dizes nada, vejo-te a olhar o rio e os barcos que passam, deixas que o teu olhar por lá fique, aquietado, mas não dizes nada. E eu não interrompo o teu olhar que precisa de silêncio.

Às vezes, à tarde, vais comigo até ao miradouro e ali ficamos a olhar as ruas, o elevador, as crianças, os repuxos em que os pombos se refrescam, abraças-me, uma ternura quente a vir de ti, sorris, e nadas dizes.

Mas hoje de manhã, na cama, viste-me despida. O sol entrava pela janela, abriste-a ainda mais, quiseste-me banhada pela luz, a pele branca, despida e tu olhavas-me sorrindo, e um pássaro pousou no parapeito e cantou e eu sorri e, então, tu vieste deitar-te ao pé de mim: deixa-me ver-te, deixa que a luz ilumine ainda mais o teu corpo, deixa-me ver as tuas estrias que parecem madrepérola, tão macias, deixa-me passar por estes finos sulcos os meus dedos, deixa-me que toque estes veios que a vida lavrou no teu corpo, minha mulher querida, mãe dos meus filhos, meu amor.

E então entraste docemente na casa que tanto amas, uma casa feita à tua medida. Meu amor.



[Por favor... que entrem os violinos! Paganini vem já aí, a seguir ao poema de Luís Filipe Parrado]


Cumplicidade e ternura numa doce tarde de inverno em Lisboa


               Não sou capaz de estranhas paixões
               e amo, como muitos, o vento forte
               que agita a roupa estendida nas cordas,
               as bicicletas ferrugentas
               de pneus furados
               esquecidas em garagens e arrecadações,
               a água fresca que mata a sede
               ao mais miserável dos homens.
               Mas se, como outros, amo os dias de intensa luz
               e o descuido dos pássaros no ar,
               ninguém ama como eu
               as estrias do teu ventre,
               a primeira casa de dois filhos.
               De todas as coisas prodigiosas que conheço
               são elas o que mais se parece
               com os rasgos abertos por um arado
               na terra crua deste mundo.



             ['O que mais amo' de Luís Filipe Parrado in Criatura]

Paganini - Mario Hossen ao violino interpreta La campanella





22 janeiro, 2012

O que vamos fazer amanhã neste caso de amor desesperado?

 
Trazes-me para jardins proibidos, olhas-me sombrio, desfazes-te em saudades, agarras-me, amas-me sem esperança, angustias-te, escondes-te aqui comigo para me dizeres palavras de amores impossíveis, para me falares de dias sem amanhãs, para disfarçares lágrimas angustiadas. 

Escadas que não levam a lado nenhum, árvores tombando rente ao rio, sombras, recantos obscuros e nós aqui, longe de todos, amantes improváveis. E tu nesta opressiva tristeza, o que vamos fazer amanhã entre as árvores e a solidão?, e seguras-me o braço, não vás, espera, não vás, não me deixes aqui à beira desta tentadora ravina.

E eu, femme infidèle, sorrio, sai do escuro, procuro a luz, chamo-te, e digo-te que o que conta são os momentos em que estamos juntos, que não os desgastemos com o que vem a seguir, que talvez amanhã estejamos apenas os dois sozinhos no mundo e que talvez isso nem fosse assim tão bom, que interessa?, que não gosto de tristezas, de culpas, de sonhos impossíveis, de lamentos românticos, de desesperos sussurrados. 

E digo-te que me vou embora e que apenas voltarei se me abraçares sem anseios, se me beijares sem receios, se me tiveres com a certeza e confiança de quem ama a sua própria mulher tal como eu te amo por inteiro como se fosses o único homem da minha vida.



[Uma história assim pede violinos e desde já aqui vos deixo o convite para que desçam um pouco mais. A seguir ao lamento de Vasco Graça Moura, encontrará a primeira peça desta semana dedicada a Paganini.]

No jardim do Ginjal, casal entre árvores


                            o que vamos fazer amanhã
                            neste caso de amor desesperado?
                            ouvir música romântica
                            ou trepar pelas paredes acima?

                            amarfanhar-nos numa cadeira
                            ou ficar fixamente diante
                            de um copo de vinho ou de uma ravina?
                            o que vamos fazer amanhã

                            que não seja um ajuste de contas?
                            o que vamos fazer amanhã
                            do que mais se sonhou ou morreu?
                            numa esquina talvez te atropelem,

                            num relvado talvez me fusilem
                            o teu corpo talvez seja meu,
                            mas que vamos fazer amanhã
                            entre as árvores e a solidão?
                         
                         
['Lamento por Diotima' de Vasco Graça Moura in Concerto Campestre]
  
                       

Paganini - Nathan Milstein interpreta Caprice nº 11

   


19 janeiro, 2012

Ao que veio de mim queria ir saudá-lo como se fosse um estrangeiro

   
Seguindo rente ao rio que, neste dia, estava coberto por um denso manto de nevoeiro, respirando as finíssimas gotículas de céu e rio, ouvindo os gritos de invisíveis pássaros, eis que vejo surgir, ao longe, dois vultos, dois vultos quase iguais. Foco o olhar, ajeito a máquina, e vejo que são dois homens que caminham lado a lado, conversando.

Fotografo-os sem que eles me vejam, e penso: quem sou eu que assim me escondo para colher pessoas como se colhesse flores, para chegar a casa e aqui as dispor junto a poemas, como se fizesse composições ou arranjos florais? Quem sou eu que deslizo, silente, fotografando o rio, o céu, os gatos, as pessoas, e os despojos? Quem sou eu que aqui ajeito palavras como estas depois de ler poemas, depois de os enfeitar com as minhas fotografias? Quem sou eu que depois ando na terra, afagando pedras e árvores? Eu que vivo, durante a semana, fechada numa torre de vidro sem janelas, vivendo uma vida executiva, desprovida de poesia e onde não entra o som dos pássaros, o cheiro da terra, a aragem do mar? Quem sou? Eu que que gosto de aqui estar, em silêncio, pela noite dentro ou a que precisa de trazer crianças ao colo, sorrisos no coração, abraços e beijos? Quem sou eu? Eu que amo as palavras, que me apaixono por uma frase, que me emociono com uma imagem, com um som? Ou a que vive rodeada de números, gráficos, regras, procedimentos, decisões racionais? Quem sou eu? Sou todas estas?

Penso que sim, sou todas estas e sou sobretudo a menina de longos cabelos que brilhavam ao sol, dourados, soltos ao vento ou amorosamente ajeitados em longas tranças, a menina que ria muito, que corria, que brincava e pregava partidas, que fazia muitas perguntas, que se aventurava por indevidos caminhos, e que lia, que lia, que lia muito. Eu, todas.



[Em dia de polifonia ou de ambiguidades ou de unidade na multiplicidade, sabe bem ouvir violinos, um concerto para dois violinos, vibrante como é a música de Vivaldi. Desça, é já a seguir ao poema.]

No Ginjal, rente ao Tejo, dois homens envoltos em nevoeiro



                      Ao que veio a mim queria saudá-lo
                      como se fosse um estrangeiro
                      e de entre o meio das pedras
                      aparecendo-me, rosto queimado de sol,
                      abraçá-lo e perguntar-lhe sem medo
                      que estradas havia percorrido. Sentando-me
                      com ele lado a lado, como se de mim
                      não viesse, saudando-o
                      como a um irmão sob o sol tímido
                      de um verão por florir, iria humilde
                      saber dele. Pois o próximo deve encontrar
                      o que lhe é próximo, o que celebra ir
                      junto do que quer celebrar. Assim
                      com o olhar quando na desmesura
                      de desejar a um outro reconhece em
                      outro olhar o idêntico, aquele que de sempre
                      o procurava. E indo a ele, ao que de mim veio,
                      oferecer-lhe onde pousar o corpo
                      sobre o linho, deixá-lo no repouso adormecer,
                      guardar-lhe o sono. Sabendo intimamente
                      que aos pés da esfinge
                      nada jamais é inútil.


['O silêncio' de Bernardo Pinto de Almeida in 'Negócios em Ítaca']

Vivaldi - Orchestra Perpetuum Mobile com os solistas Robert Kowalski e Marek ZwiebelI interpretam o Concerto para dois violinos

  
  

18 janeiro, 2012

Tocar-te o músculo, tal como a um livro de biblioteca

   
Não gosto de tristezas, não gosto mesmo nada. Não gosto de recordar ausências, de chorar distâncias. Muito menos quero comparar uma ausência a uma morte. Não está na minha natureza apegar-me ao passado, ficar retida na memória, refém de afectos desaparecidos.

Mas quero, hoje, aqui, uma vez mais, dizer que me lembro tanto de ti. Já não adormeço contigo, já não acordo contigo, já não vivo para ti, por ti. Mas não faz mal, ambos sabíamos que seria assim. Penso às vezes com pena nas pequeninas coisas: querias tanto que eu dissesse o teu nome e eu não o fazia. Mas era porque, se o dissesse, me sentiria carnalmente unida a ti, o teu nome dito pela minha voz, tu na minha boca, possuir-te-ia e não o queria pois sabia que um dia iria abandonar-te. E tu querias tanto que eu o dissesse, lembras-te?

Estás tão longe. As tuas palavras já não chegam até mim. Que pena tenho. Já não vou poder reparar esta minha falta. Às vezes penso que te vou ligar apenas para que me ouças dizer o teu nome. Meu querido, só para dizer o teu nome. Dizer o teu nome como se tocasse o teu corpo, com o desvelo de quem afaga um livro, o teu nome dito baixinho, com um amor só teu, um sussurro apenas.

Mas, olha, amor querido e longínquo, se eu não o fizer, porque não o vou fazer, não penses que morreste para mim. Não. Isso nunca acontecerá. Nunca serás apenas um corpo que ficou no meu passado, uma voz que se esbate com o tempo, um sorriso que desvanece na minha memória. Não. Estarás sempre bem vivo, digno, com o teu nome que tanto amo, com o teu sorriso que me oferecia violetas, que me olhava vendo a luz pousada em mim como se fosse uma borboleta colorida.



[Bem, nostalgias, amores do passado, elegias da memória - e tudo nos pede um Outono. Desça um pouco mais: logo a seguir ao poema, encontrará a música certa para emoções saudosas.]


Tocante pintura num muro do Ginjal, mesmo rente ao Tejo
                               

                                  Não nego que me sinto vencido
                                  pela tua distância,
                                  uma pedra e um pouco de gelo no sangue,
                                  uma violeta na primavera desta morte em flor.
                                  A aflição não passa,
                                  ainda que eu permaneça na defensiva, dia após dia,
                                  na retaguarda do teu afecto.

                                 Tocar-te o músculo, tal como a um livro de biblioteca.
                                  Mas agora, o que se mantém vivo e fresco
                                  no teu estojo de ossos? Assim, dizem,
                                  se retira aos nossos restos, ainda que dignos,
                                  o nervo e a tentação do teu nome.

                                  Não dizer o teu nome, nunca. Não pode dar-se
                                  tesouro eterno assim a mãos que me recusaram.
                                  Quanto mais morres, mais difícil é dizer-te,

                                  mais fácil é dizer apenas... corpo.



['Pequena elegia da memória' de David Teles Pereira in Criatura]

                                

Vivaldi - Combatimento Consort Amsterdam com Jaap van Zweden na condução e como solista interpretam As Quatro Estações - Outono

   


17 janeiro, 2012

E no entanto chega luz, uma estranha, inesperada luz


É noite. Está prestes a acabar o meu dia. A sala está quase às escuras e eu, aqui, a escrever nesta pequena mesa redonda, quase envolta em escuridão, um pequeno ponto de luz sobre mim, e esta folha de vidro em que escrevo que também emana luz e escrever é tão bom para mim, escrever envolta em palavras das quais sai uma luz dedicada, cuja sereníssima claridade me abre para o universo.

Passo as mãos pelas teclas, afago as letras, sorrio com as palavras que se desenham aqui à minha frente, sei que daqui a pouco deixarão de me pertencer, sairão aqui deste meu ninho, vão fazer-se ao mundo, voarão, e irão depois pousar, simples, silenciosas, na casa de outras pessoas, nas vossas casas. 

Quando me vou deitar, apago primeiro a luz do pequeno candeeiro para que a luz azulada que sai do meu computador ilumine este recanto em que me recolho. E penso que são as palavras, as minhas e a dos meus amigos cujas casas eu visito à noite, que por aqui andam, iluminando a minha vida.

E amanhã, quando o dia nascer, e esta mesa estiver inundada da luz que vem dos lados do rio, eu sairei de casa e, andando na rua, sentirei uma leve aragem no rosto e saberei que são as minhas palavras ainda rondando a minha casa, ainda não totalmente libertas de mim.

Mas eu passo e ignoro-as, quero que percebam que já não me pertencem, que já são mais dos meus amigos que minhas e que podem, elas próprias, livres, vir a dar à luz outras palavras(*).




[Neste inverno suave, pensemos no verão e ouçamos a música feliz de Vivaldi; desça um pouco mais - depois do poema belíssimo (como sempre) de Pedro Tamen poderá ouvir cordas vibrantes plenas de luz]

No Ginjal, entrada onde há um arco que dá para umas escadas e para uma entrada de luz



                               E no entanto chega luz,
                               uma estranha, inesperada luz,
                               à catacumba onde estou vida
                               por força destas mãos.
                               Da matéria que afago à minha frente
                               irrompe ou brota uma solar,
                               uma ardente e sereníssima claridade,
                               de que me valho ao ver o universo,
                               vendo e vivendo os dias que passaram
                               e os que em nascer persistem.


                               (Poema 47. Pedro Tamen in 'o livro do sapateiro')
 

Crédito: Expressão inspirada nas palavras de J. Rodrigues Dias ao escrever num comentário que há palavras que têm o dom da maternidade.
  

Vivaldi - The Trondheim Soloists (Trondheimsolistene) com Mari Silje Samuelsen no violino interpretam As Quatro Estações - Verão

   

  

16 janeiro, 2012

Trouxe as palavras, colocou-as sobre a mesa e começou a abri-las devagar


Nasceu filho de Simão e Ana de Sá. Temperamental, aventureiro, apaixonado, poeta. Soldado, guerreiro, boémio, desterrado. Amores e desamores, homem de muitas vidas.

E agora aqui está, elevado, tudo vendo, sonhando, voando com as palavras. Quem passa apressado pode pensá-lo distante mas, quem se detenha, verá como sorri ao de leve, verá o afecto que tem pelos que aqui passam, geração após geração.

Quando, pela manhã, as pessoas aqui chegam, já ele, marido amoroso, dispõe as palavras sobre a calçada: ruas de Lisboa, Tejo, gaivotas, cais, navios, bravos lusitanos, céu azul, ninfas. 

Depois a manhã vai passando e ele, terno namorado, tira dos bolsos flores, ramos de violetas, pássaros, e palavras que dispõe com carinho nos bancos, na escadaria das igrejas, nas mesas que põe com o cuidado de quem vai servir a refeição: amor, beijos, abraços, mãos dadas, amor que arde, encantos, recantos, tarde, música, pão, vinho. Cá em baixo as pessoas vão passando, colhendo as palavras espalhadas com tanta gentileza e ele sorrindo, lá em cima, sempre dispondo carinhosamente as palavras.

E a noite quase cai e ele, quase cansado, olha com compaixão os que descem a rua do alecrim e correm para os cacilheiros, olha com compaixão os pobres que estendem cartões para passar a noite nos cantos mais abrigados, as mulheres que descem para o cais do sodré, até às vielas de s.paulo, para os bares da noite, e as mães cansadas carregadas de sacos, e os homens apressados com livros, e, então, com o desvelo de quem põe uma cama de lavado, dispõe as palavras com cuidado: noite, paixão, calor, desejo, e frio, solidão, pobreza, afecto, desafecto, lágrima, grito, prazer, desgosto. E ajeita as palavras como se fosse a dobra do lençol, e passa-lhes a mão para sentir o toque dos adjectivos como quem sente o algodão limpo e branco, e pensa para escolher os melhores verbos e é como se escolhesse um saquinho de cheiros para pôr debaixo da almofada.

E vem de novo a manhã e ele guarda dentro de si o silêncio prestes a findar, sente com prazer a frescura da noite que se esvai, aspira o cheiro do pão acabado de fazer, olha as estrelas prestes a desaparecerem, e olha com ternura as primeiras pessoas que correm para os autocarros, as mulheres das limpezas, cansadas logo pela manhã, pouco dormiram e vêm de tão longe, e deixaram a família há tanto tempo, e ganham tão pouco e ele, homem do mundo, de muitas vidas, apetece-lhe sair do pedestal e dar-lhes as palavras à mão, oferecer-lhes palavras como quem oferece uma jóia, tomem, estas são as minhas palavras, este é o meu sangue, tomem-no, tomem as minhas palavras e devagarinho, apenas num sentido murmúrio começa a dispor as palavras como quem abre janelas, e diz: mulher, homem, filho, futuro, coragem, fortaleza, trabalho, esforço, luta, procura, descoberta, Portugal, povo.



[Não podemos ficar assim, apenas colhendo palavras - não, temos também que colher pétalas de música. Antecipemos a primavera e fiquemos com Vivaldi, logo ali a seguir à poesia de Maria do Rosário Pedreira]


Largo de Camões, Lisboa


                Trouxe as palavras e colocou-as sobre a mesa.
                Trouxe-as dentro das mãos fechadas (alguns disseram
                que apenas escondia as feridas do silêncio).

                 Pousou-as na mesa e começou a abri-las devagar,
                 tão devagar como passa o tempo quando o tempo
                 não passa. E depois distribuiu-as pelos outros,
                 multiplicou se em dedos, em palavras (alguém disse
                 que chegariam a todos, ultrapassariam os séculos e
                 teriam a duração do tempo quando o tempo perdura).

                 Ceou com todos pão que não levedara e o vinho áspero
                 das videiras magras do monte que os ventos dizimavam.
                 Quando se ergueu, havia ainda palavras sobre a mesa,
                 coisas por dizer no resto do pão que alguém deixara,
                 feridas fundas nas mãos que fechou em silêncio e devagar.

                 Perto dali uma figueira florescia. À espera.


['A Última Ceia' de Maria do Rosário Pedreira in 'A casa e o cheiro dos livros')
             

Vivaldi - A Heartland Festival Orchestra conduzida por David Commanday e com Lara St. John no violino interpretam As Quatro Estações - Primavera

   

   

15 janeiro, 2012

Duas vezes o meu corpo esteve com o teu, outras mais do que podes pensar


E então percebo que passou mais de um ano. Tanto tempo sem ti, meu longínquo amor, meu amor sempre tão presente. Por aqui ando, sob este espesso manto de névoa, nada se vê, apenas vultos, apenas a imagem imaginada, o rio talvez esteja ali, as paredes gastas talvez se escondam aqui atrás de mim.

Do nada vem um grito, deve ser uma gaivota atravessando os ares, parece um grito de saudade, de mágoa, talvez mergulhe como louca, tentando afogar a tristeza.

Caminho no vazio, pensando naquelas duas tardes douradas em que um espelho reflectiu os nossos sorrisos, pensando em ti meu amor de doce sorriso, meu amado de olhos frementes de amor, meu amor de palavras ditas com uma ternura quente na voz. Foram só duas vezes que o meu corpo esteve com o teu? Talvez. Mas eu acho que foram muitas, muitas, porque o teu corpo ficou dentro de mim, os teus afagos continuam presos às minhas pernas, o teu olhar continua colado aos meus seios, o teu coração bate no meu peito. 

Não te procurei mais, nem quero mais ouvir a tua voz, nem voltar a ver o teu sorriso querido e espero que me compreendas. É que tudo seria tão pouco e eu quero guardar-te inteiro dentro de mim, feliz, sorridente, como te gravei sob a minha pele.

Meu amor. E assim, por aqui, sob mil véus de seda branca, continuo a caminhar e, na dobra do rio, vou sorrir, porque sei que assim gostavas de me ver, sorrindo, eu a tua menina sorrindo, cheia de luz, só tua, meu amor.



[Para acompanhar palavras de saudade, nada como a música vibrante de Vivaldi que hoje abre esta semana. Logo abaixo do poema evocativo de Helder Moura Pereira, encontrará o belíssimo Inverno]

No Ginjal, este sábado, sob um denso manto de névoa, homem olha o Tejo

                                Ainda existem as ruas onde por acaso
                          nos encontrávamos? Tantos dias correram
                          num ano, viam-me em dias de mais
                          desejo apressar os passos, olhar para
                          o relógio, pôr falhando os discos
                          nas capas. Parecia ter sido só
                          uma despedida de um dia para o outro, agora
                          se escrevo é porque és apenas uma imagem
                          da memória, pouco faltará para que
                          guarde de ti um risco, um embaraço.
                          E sempre chegarei a tactear o rosto,
                          fingir que me lembro de alguns sinais,
                          das poucas palavras necessárias para que
                          eu aceitasse, duas vezes o meu corpo
                         esteve com o teu, outras mais do que
                         podes pensar. Na volta de uma esquina
                         não reparo, tropeço, encontro, o último
                         sorriso começo a nascer.


["Ainda existem as ruas onde por acaso" de Helder Moura Pereira in '366 Poemas que falam de amor', antologia organizada por Vasco Graça Moura]

  

Vivaldi - The Trondheim Soloists (Trondheimsolistene) com Mari Silje Samuelsen no violino interpretam As Quatro Estações - Inverno

 


  

12 janeiro, 2012

(...) regressar a deus como quem regressa aos homens

 
Mulher vestida de olhares, mulher de pele beijada, mulher que caminhas alheada dos que te olham e desejam. Mulher que te deitas e deixas que se deitem sobre ti e tu sempre alheada, mulher de coxas verdejantes, carnes que, atrás, se desembrulharam da sua nudez. E tu, mulher, mais doce, mais pura, melhor que muitas outras mulheres, avanças como se dormisses e não vês se é noite, se é dia, e deslizas e nem sabes se descalça, se desnuda, se vestida apenas dos olhares que a ti se colam. O cabelo cobre-te os ombros e nem sabes se é o cabelo que se soltou, se é o xaile que à tua pele se colou.

Ora corres as saias como cortinas, ora levantas as saias para que o sol te lamba, mulher desejada pelos homens e pelos deuses. Regressas, pois, a casa e vais limpa e pura, estrelas dentro da cabeça, ventos varrendo-te o corpo, desejável, tão desejada, sempre distante, sempre presente.

Regressas, pois, a casa e, uma vez chegada, ajoelhar-te-ás junto à imagem de um deus que é irmão de todos os homens e a esse deus te entregarás inteira, consciente, cheia de luz.



[Uma mulher assim, que desliza desnuda, deve ser guiada pela música dos deuses - deslize também até ali mais abaixo e verá qual a música e qual a sublime voz que guiam esta mulher]




                         Chegava coberta de migalhas como quem chega do pão.
                         Nessas noites em que escolhia muito bem os dedos
                         o penteado do xaile.

                         Chegava e chavam.lhe espinheira
                         por vir assim tão colada aos pés descalça
                         até aos ombros.

                         Nessas noites em que corria as saias e aprendia depressa
                         a desembaraçar-se dos olhos
                         a desembrulhar as coxas para a neve verdejante
                         a regressar a deus
                         como quem regresssa aos homens.


                         ['Cântico Cereal' de Catarina Nunes de Almeida in Bailias]

Rachmaninov - Dame Kiri Te Kanawa interpreta "Vocalise"

11 janeiro, 2012

Desce lento, vivendo cada espaço que ocupa com a segurança de não lhe retornar

  
Este homem que aqui vai rumo ao lugar longínquo e secreto onde o sol se põe, caminha com segurança, não sabe exactamente para onde vai, sabe apenas que vai em frente, e gosta de estar a ir.

Este homem não tem medo. Não sabe onde vai dar este caminho nem isso o preocupa. Ele sabe que a cada momento que passa, um outro nasce, enquanto um outro fica para trás. A sua vida vai ficando em cada um desses momentos. E assim é o percurso da vida.

Um dia virá em que este homem não poderá mais caminhar. Mas esse dia está para além do esconderijo do sol, muito além, apenas a ele chegará no final do percurso, quando anoitecer dentro do seu peito. Até lá, o homem avança com absoluta serenidade, olhando o céu que se adensa de luz, respirando o ar puro que vem do fundo do mar, sentindo a felicidade suprema que é andar em liberdade, a caminho da luz.

Enquanto anda, vai pensando: quem me fez assim? quem me dá toda esta minha força? mas, não obtendo a resposta, continua com o mesmo vigor. Ele é um homem feliz, consciente da sua condição, um homem livre que caminha pelos seus próprios pés.



[Esta luz quente pede uma música de grande beleza. Desça um pouco mais e encontrará, nesta semana que dedico a Rachmaninov, um momento de grande harmonia.]

Caminhando rente ao Tejo, em Belém


                                     Desce lento,
                                     vivendo cada espaço que ocupa
                                     com a segurança de não lhe retornar.
                                     Pisando a calçada íngreme
                                     com apreço,
                                     direccionando o olhar
                                     com precisão.
                                     Seleccionando os sentimentos
                                     com aguçada verdade.
                                     Mantendo-se à superfície,
                                     olhando as oscilações
                                     com bravura reenviada de outras paragens
                                     em encomenda sem remetente.


[Poema de Patrícia Aguiar in '190 minutos aqui', livro com ilustrações de Marisa Benjamim]
 

Rachmaninov - A NHK Symphony Orchestra conduzida por André Previn interpreta a Sinfonia Nº2 (Mvt.3)

Exercito-me, o calor da sua mão não me distrai do que estamos a fazer

 
O rectângulo em que vou escrever está em branco. Sei que vou escrever, sei que as palavras vão encontrar aqui o seu caminho. Saíram talvez das mãos de Maria Gabriela, caíram talvez das nuvens onde se costumam alojar, que sei eu.

Exercito-me primeiro, copio um pequeno texto, talvez seja um poema, copio as palavras que um dia povoaram o mundo de Maria Gabriela.

Ela sentava-se, a mão dada a um homem de quem não conhecia a voz nem a escrita, a quem ela batia e cortejava e que, sempre, na sua infinita misericórdia, a guiava pelas linhas da escrita.

Assim estou eu, pois, sentada, guiada pelos poetas, amparada pelos homens e pelas mulheres que ajoelham perante o indizível poder das palavras. Hoje é Maria Gabriela que aqui está comigo, mulher da terra, da voz rente ao corpo, mulher que amassava palavras com a gentileza de quem amassa pão. Maria Gabriela sorri, junto a mim. Ela conhece-me bem: sabe que eu também enfio as mãos na terra, mexo nas flores, ajeito as árvores, ela sabe que eu sofro se um ramo de árvore se parte, ela sabe que eu conheço bem as margens deste rio. Há pouco, segurou-me agora a mão e disse-me, olha aquele ramo ali no rio, caíu de uma árvore, e ali está tão belo, livre, vogando nas águas transparentes, olha a beleza que está naquilo que amamos, olha a beleza daquilo que se liberta, daquilo que é livre e vai, olha.

Olho e deslumbro-me perante a beleza tão límpida de algo tão improvável. E as palavras encostam-se a mim, espreitam as águas do rio, e eu estendo os meus braços, acolho-as a todas, dou-lhes a mão, e elas, livres, felizes, andam à minha volta.

E agora que aqui estou sentada, chegam-se a mim, dançam, meninas alegres, e dispõem-se sózinhas dentro deste rectângulo que, assim, com elas, deixa de estar em branco.



[Ah, meus amigos, o que eu gosto de escrever sobre palavras e o que eu gosto da escrita irmã de Maria Gabriela - tomem-nas nas vossas mãos e desçam com elas até ali mais abaixo, toquem-lhes enquanto ouvirem o Romance de Rachmaninov]

No Tejo, junto ao Ginjal


Olha para mim e diz-me que posso principiar a escrever.
Eu agradeço-lhe a misericórdia e sento-me diante dele
perscrutando a túnica, o branco do livro e o branco livre.
Não consigo imaginar-lhe o tom da voz, nem o perfil da sua escrita.
Esse corpo duro é impenetrável e há-de repelir-me definitivamente.
Ando à volta, cortejo-o, bato-lhe no rosto.
Ele toma-me a mão sem se zangar, inabalável na sua misericórdia.
Abre um dos seus livros e os dois copiamos o que lá está escrito,
como se fosse um texto por escrever.
Exercito-me, o calor da sua mão não me distrai do que estamos a fazer.
Cravo os olhos nos seus e sei que não chegarei mesmo a pronunciar-lhes a cor.
Sinto-me poderosa e, ao mesmo tempo, com vontade de dormir.
Adormeço sobre a sua mão, mas no sono continuo a sentir-lhe o ímpeto
e à procura do lugar para onde ela se dirige


[Excerto de 'O Livro das Comunidades' de Maria Gabriela Llansol]

09 janeiro, 2012

(...) quando me olhas de olhos como estrelas, minha vida.


Ando ao longo da muralha, passeio pelos cais, vejo os belos veleiros que passam neste rio tão amado. Depois recolho-me no meu mundo. Aqui, neste grande armazém, construo mastros. Para aqui trago os troncos que deixo envelhecer. Depois escolho-os, passo as mãos pela madeira envelhecida, aparo-a, sinto o aroma doce e quente da madeira. Afago estes troncos macios que são tão fortes. Faço mastros, os melhores mastros. Velas nem vê-las.

Fico aqui até ser noite. Os gatos entram e aconchegam-se uns nos outros, está-se tão bem aqui. Tiro da grande arca as folhas, os compassos, as réguas, as canetas, as limas, as goivas, os meus instrumentos, os óleos, o meu tesouro. Faço medições, faço cálculos, faço desenhos. Depois saio, descanso a olhar no rio, deixo-me levar pelo voo gracioso e livre das gaivotas. Regresso, recomeço. Vou para a madeira, meço-a, ajeito-a.

E então, alguns dias, quando a lua ilumina as águas, não é o som dos gatos que eu ouço: és tu, minha amada, és tu que vens até mim. Trazes-me pão, vinho e sentas-te comigo na mesa junto à porta de onde se vê o céu e as estrelas.

Depois, levas-me pela mão, eu fecho a arca, tapo o céu e deitamo-nos rente ao rio, iluminados apenas pelos teus olhos que brilham como estrelas.



[As palavras que abaixo lerão no belíssimo poema de Pedro Tamen pedem que uma música tocante, pedem uma harmonia que brilhe; siga, pois, até mais abaixo para ouvir o Vocalise de Rachmaninov]


Avistado do Ginjal, veleiro no Tejo, bem de frente para Lisboa
(bem visíveis as Torres das Amoreiras)


                               Impenitente criador de mastros,
                               quanto a velas nem vê-las
                               - mais que de fugida
                               quando me olhas de olhos nas estrelas,
                               minha vida.

                               Dos astros
                               desço então à hora parca
                               que o destino nos deu:
                               e fecho a arca,
                               e tapo o céu.



[Poema de Pedro Tamen a publicar no próximo livro que, presumivelmente se chamará Rua de Nenhures - publicado entretanto na Revista Relâmpago]