Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

19 janeiro, 2012

Ao que veio de mim queria ir saudá-lo como se fosse um estrangeiro

   
Seguindo rente ao rio que, neste dia, estava coberto por um denso manto de nevoeiro, respirando as finíssimas gotículas de céu e rio, ouvindo os gritos de invisíveis pássaros, eis que vejo surgir, ao longe, dois vultos, dois vultos quase iguais. Foco o olhar, ajeito a máquina, e vejo que são dois homens que caminham lado a lado, conversando.

Fotografo-os sem que eles me vejam, e penso: quem sou eu que assim me escondo para colher pessoas como se colhesse flores, para chegar a casa e aqui as dispor junto a poemas, como se fizesse composições ou arranjos florais? Quem sou eu que deslizo, silente, fotografando o rio, o céu, os gatos, as pessoas, e os despojos? Quem sou eu que aqui ajeito palavras como estas depois de ler poemas, depois de os enfeitar com as minhas fotografias? Quem sou eu que depois ando na terra, afagando pedras e árvores? Eu que vivo, durante a semana, fechada numa torre de vidro sem janelas, vivendo uma vida executiva, desprovida de poesia e onde não entra o som dos pássaros, o cheiro da terra, a aragem do mar? Quem sou? Eu que que gosto de aqui estar, em silêncio, pela noite dentro ou a que precisa de trazer crianças ao colo, sorrisos no coração, abraços e beijos? Quem sou eu? Eu que amo as palavras, que me apaixono por uma frase, que me emociono com uma imagem, com um som? Ou a que vive rodeada de números, gráficos, regras, procedimentos, decisões racionais? Quem sou eu? Sou todas estas?

Penso que sim, sou todas estas e sou sobretudo a menina de longos cabelos que brilhavam ao sol, dourados, soltos ao vento ou amorosamente ajeitados em longas tranças, a menina que ria muito, que corria, que brincava e pregava partidas, que fazia muitas perguntas, que se aventurava por indevidos caminhos, e que lia, que lia, que lia muito. Eu, todas.



[Em dia de polifonia ou de ambiguidades ou de unidade na multiplicidade, sabe bem ouvir violinos, um concerto para dois violinos, vibrante como é a música de Vivaldi. Desça, é já a seguir ao poema.]

No Ginjal, rente ao Tejo, dois homens envoltos em nevoeiro



                      Ao que veio a mim queria saudá-lo
                      como se fosse um estrangeiro
                      e de entre o meio das pedras
                      aparecendo-me, rosto queimado de sol,
                      abraçá-lo e perguntar-lhe sem medo
                      que estradas havia percorrido. Sentando-me
                      com ele lado a lado, como se de mim
                      não viesse, saudando-o
                      como a um irmão sob o sol tímido
                      de um verão por florir, iria humilde
                      saber dele. Pois o próximo deve encontrar
                      o que lhe é próximo, o que celebra ir
                      junto do que quer celebrar. Assim
                      com o olhar quando na desmesura
                      de desejar a um outro reconhece em
                      outro olhar o idêntico, aquele que de sempre
                      o procurava. E indo a ele, ao que de mim veio,
                      oferecer-lhe onde pousar o corpo
                      sobre o linho, deixá-lo no repouso adormecer,
                      guardar-lhe o sono. Sabendo intimamente
                      que aos pés da esfinge
                      nada jamais é inútil.


['O silêncio' de Bernardo Pinto de Almeida in 'Negócios em Ítaca']

4 comentários:

  1. ERA UMA VEZ21 janeiro, 2012

    Hoje vagueio vagueio apenas
    à procura de paz e de um abraço
    mais um de tantos que nestes dias me ofereceram
    Perdi-me dos lugares de sempre
    e sem destino
    percorri os cais desabitados

    Hoje
    preciso de silêncios consentidos
    da quietude dos rios da minha vida
    de amigos desconhecidos
    sei lá eu do que preciso...

    tropecei com poetas por aqui
    até o Helder que conheci menino
    e cresceu com a minha irmã
    que já perdi também...

    perdoa Tá o desabafo
    ontem disse adeus à minha MÃE...

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    1. Querida era uma Vez,

      Que triste notícia, que triste. Daqui lhe envio um sentido abraço, um beijinho de compreensão, deve ser uma dor grande, uma ausência muito difícil, é perder a raíz, é ficar solto na vida.

      Tenho a sorte de ter a minha e é assunto em que não quero nem pensar.

      Que siga em frente guardando a saudade com todo o carinho mas sendo alegre para a homenagear, para ser como ela devia ser quando era nova e cheia de vida, para ser uma mãe cheia de força para os seus filhos e uma avó maravilhosa para as suas amorosas crianças.

      Um grande abraço, querida Amiga.

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  2. Olá, UJM

    Com as questões que se coloca descreve-se tão bem! E digo isto porque se vê esta sua multiplicidade naquilo que nos oferece no Ginjal, no UJM, no seu blog de fotografias,e também no blog de contos infantis,(é isso, não é? neste momento não está visível)

    Um talento multifacetado que me faz lembrar Fernando Pessoa com os seus vários 'eus'. Pode crer que é o que eu penso. Já tinha reparado no intimismo do Ginjal, na forma pública do UJM e na perfeição de tudo o que produz.

    A fotografia do post é lindíssima e ilustra muito bem o tema. O dinamismo e a musicalidade da sua prosa deixa pouco espaço ao poema. Mas voltarei para o reler.

    Bj

    Olinda

    Espero-a amanhã ou seja, já é hoje, no Xaile de Seda. Há lá encontro marcado... :)

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    1. Olá Olinda,

      Já lá estive e vou lá voltar para lhe dar os parabéns, que hoje é dia grande no Xaile.

      No Um Jeito Manso abri ontem à noite (ou melhor, de madrugada que é quando tenho mais tempo para estas aventuras) uma janela para os blogues que visito e, como lá explico, resolvi renomeá-los. Ao seu chamei Colar de Pérolas não apenas porque o acho uma elegância (... adoro colares de pérolas!) como os pequenos textos ou poemas que lá publica são verdadeiras pérolas.

      Tem razão. Todos ou quase todos os dias alimento os 3 blogues que refere e também tenho o das Historinhas da Tá (que é como sou conhecida junto dos pequeninos) mas como, por enquanto, quase apenas um dos meus três o vê com regularidade - e não se cansa de não ver material novo, vai navegando por ali abaixo à procura dos que gosta - tenho deixado este para trás. O tempo não me dá para tudo, deito-me tardíssimo (e tenho que me levantar cedo), mas adoro escrever, adoro música, fotografia, etc, e o tempo não estica à medida dos meus gostos.

      Um beijinho, Olinda e até já nos festejos do Xaile com Pérolas.

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