Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

18 janeiro, 2012

Tocar-te o músculo, tal como a um livro de biblioteca

   
Não gosto de tristezas, não gosto mesmo nada. Não gosto de recordar ausências, de chorar distâncias. Muito menos quero comparar uma ausência a uma morte. Não está na minha natureza apegar-me ao passado, ficar retida na memória, refém de afectos desaparecidos.

Mas quero, hoje, aqui, uma vez mais, dizer que me lembro tanto de ti. Já não adormeço contigo, já não acordo contigo, já não vivo para ti, por ti. Mas não faz mal, ambos sabíamos que seria assim. Penso às vezes com pena nas pequeninas coisas: querias tanto que eu dissesse o teu nome e eu não o fazia. Mas era porque, se o dissesse, me sentiria carnalmente unida a ti, o teu nome dito pela minha voz, tu na minha boca, possuir-te-ia e não o queria pois sabia que um dia iria abandonar-te. E tu querias tanto que eu o dissesse, lembras-te?

Estás tão longe. As tuas palavras já não chegam até mim. Que pena tenho. Já não vou poder reparar esta minha falta. Às vezes penso que te vou ligar apenas para que me ouças dizer o teu nome. Meu querido, só para dizer o teu nome. Dizer o teu nome como se tocasse o teu corpo, com o desvelo de quem afaga um livro, o teu nome dito baixinho, com um amor só teu, um sussurro apenas.

Mas, olha, amor querido e longínquo, se eu não o fizer, porque não o vou fazer, não penses que morreste para mim. Não. Isso nunca acontecerá. Nunca serás apenas um corpo que ficou no meu passado, uma voz que se esbate com o tempo, um sorriso que desvanece na minha memória. Não. Estarás sempre bem vivo, digno, com o teu nome que tanto amo, com o teu sorriso que me oferecia violetas, que me olhava vendo a luz pousada em mim como se fosse uma borboleta colorida.



[Bem, nostalgias, amores do passado, elegias da memória - e tudo nos pede um Outono. Desça um pouco mais: logo a seguir ao poema, encontrará a música certa para emoções saudosas.]


Tocante pintura num muro do Ginjal, mesmo rente ao Tejo
                               

                                  Não nego que me sinto vencido
                                  pela tua distância,
                                  uma pedra e um pouco de gelo no sangue,
                                  uma violeta na primavera desta morte em flor.
                                  A aflição não passa,
                                  ainda que eu permaneça na defensiva, dia após dia,
                                  na retaguarda do teu afecto.

                                 Tocar-te o músculo, tal como a um livro de biblioteca.
                                  Mas agora, o que se mantém vivo e fresco
                                  no teu estojo de ossos? Assim, dizem,
                                  se retira aos nossos restos, ainda que dignos,
                                  o nervo e a tentação do teu nome.

                                  Não dizer o teu nome, nunca. Não pode dar-se
                                  tesouro eterno assim a mãos que me recusaram.
                                  Quanto mais morres, mais difícil é dizer-te,

                                  mais fácil é dizer apenas... corpo.



['Pequena elegia da memória' de David Teles Pereira in Criatura]

                                

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