Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

23 janeiro, 2012

Ninguém ama como eu as estrias do teu ventre, a primeira casa de dois filhos

 
Passas a tua mão pelo meu ventre e sorris. Dizes neste ninho viveram os meus dois passarinhos e eu passo a mão pelo teu rosto que sorri, nem parecem tuas estas palavras.

És um homem de poucas palavras, vejo-te a olhar os telhados e os pássaros que pousam nos beirais mas não dizes nada, vejo-te a olhar o rio e os barcos que passam, deixas que o teu olhar por lá fique, aquietado, mas não dizes nada. E eu não interrompo o teu olhar que precisa de silêncio.

Às vezes, à tarde, vais comigo até ao miradouro e ali ficamos a olhar as ruas, o elevador, as crianças, os repuxos em que os pombos se refrescam, abraças-me, uma ternura quente a vir de ti, sorris, e nadas dizes.

Mas hoje de manhã, na cama, viste-me despida. O sol entrava pela janela, abriste-a ainda mais, quiseste-me banhada pela luz, a pele branca, despida e tu olhavas-me sorrindo, e um pássaro pousou no parapeito e cantou e eu sorri e, então, tu vieste deitar-te ao pé de mim: deixa-me ver-te, deixa que a luz ilumine ainda mais o teu corpo, deixa-me ver as tuas estrias que parecem madrepérola, tão macias, deixa-me passar por estes finos sulcos os meus dedos, deixa-me que toque estes veios que a vida lavrou no teu corpo, minha mulher querida, mãe dos meus filhos, meu amor.

E então entraste docemente na casa que tanto amas, uma casa feita à tua medida. Meu amor.



[Por favor... que entrem os violinos! Paganini vem já aí, a seguir ao poema de Luís Filipe Parrado]


Cumplicidade e ternura numa doce tarde de inverno em Lisboa


               Não sou capaz de estranhas paixões
               e amo, como muitos, o vento forte
               que agita a roupa estendida nas cordas,
               as bicicletas ferrugentas
               de pneus furados
               esquecidas em garagens e arrecadações,
               a água fresca que mata a sede
               ao mais miserável dos homens.
               Mas se, como outros, amo os dias de intensa luz
               e o descuido dos pássaros no ar,
               ninguém ama como eu
               as estrias do teu ventre,
               a primeira casa de dois filhos.
               De todas as coisas prodigiosas que conheço
               são elas o que mais se parece
               com os rasgos abertos por um arado
               na terra crua deste mundo.



             ['O que mais amo' de Luís Filipe Parrado in Criatura]

2 comentários:

  1. Um hino ao Amor!
    E para quê mais palavras,
    se o silêncio então tudo diz,
    com Paganini ao fundo…

    J. Rodrigues Dias

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  2. Muito obrigada pela compreensão. É isso mesmo, um hino ao amor total, na simplicidade das coisas.

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