Nasceu filho de Simão e Ana de Sá. Temperamental, aventureiro, apaixonado, poeta. Soldado, guerreiro, boémio, desterrado. Amores e desamores, homem de muitas vidas.
E agora aqui está, elevado, tudo vendo, sonhando, voando com as palavras. Quem passa apressado pode pensá-lo distante mas, quem se detenha, verá como sorri ao de leve, verá o afecto que tem pelos que aqui passam, geração após geração.
Quando, pela manhã, as pessoas aqui chegam, já ele, marido amoroso, dispõe as palavras sobre a calçada: ruas de Lisboa, Tejo, gaivotas, cais, navios, bravos lusitanos, céu azul, ninfas.
Depois a manhã vai passando e ele, terno namorado, tira dos bolsos flores, ramos de violetas, pássaros, e palavras que dispõe com carinho nos bancos, na escadaria das igrejas, nas mesas que põe com o cuidado de quem vai servir a refeição: amor, beijos, abraços, mãos dadas, amor que arde, encantos, recantos, tarde, música, pão, vinho. Cá em baixo as pessoas vão passando, colhendo as palavras espalhadas com tanta gentileza e ele sorrindo, lá em cima, sempre dispondo carinhosamente as palavras.
E a noite quase cai e ele, quase cansado, olha com compaixão os que descem a rua do alecrim e correm para os cacilheiros, olha com compaixão os pobres que estendem cartões para passar a noite nos cantos mais abrigados, as mulheres que descem para o cais do sodré, até às vielas de s.paulo, para os bares da noite, e as mães cansadas carregadas de sacos, e os homens apressados com livros, e, então, com o desvelo de quem põe uma cama de lavado, dispõe as palavras com cuidado: noite, paixão, calor, desejo, e frio, solidão, pobreza, afecto, desafecto, lágrima, grito, prazer, desgosto. E ajeita as palavras como se fosse a dobra do lençol, e passa-lhes a mão para sentir o toque dos adjectivos como quem sente o algodão limpo e branco, e pensa para escolher os melhores verbos e é como se escolhesse um saquinho de cheiros para pôr debaixo da almofada.
E vem de novo a manhã e ele guarda dentro de si o silêncio prestes a findar, sente com prazer a frescura da noite que se esvai, aspira o cheiro do pão acabado de fazer, olha as estrelas prestes a desaparecerem, e olha com ternura as primeiras pessoas que correm para os autocarros, as mulheres das limpezas, cansadas logo pela manhã, pouco dormiram e vêm de tão longe, e deixaram a família há tanto tempo, e ganham tão pouco e ele, homem do mundo, de muitas vidas, apetece-lhe sair do pedestal e dar-lhes as palavras à mão, oferecer-lhes palavras como quem oferece uma jóia, tomem, estas são as minhas palavras, este é o meu sangue, tomem-no, tomem as minhas palavras e devagarinho, apenas num sentido murmúrio começa a dispor as palavras como quem abre janelas, e diz: mulher, homem, filho, futuro, coragem, fortaleza, trabalho, esforço, luta, procura, descoberta, Portugal, povo.
[Não podemos ficar assim, apenas colhendo palavras - não, temos também que colher pétalas de música. Antecipemos a primavera e fiquemos com Vivaldi, logo ali a seguir à poesia de Maria do Rosário Pedreira]
Largo de Camões, Lisboa |
Trouxe as palavras e colocou-as sobre a mesa.
Trouxe-as dentro das mãos fechadas (alguns disseram
que apenas escondia as feridas do silêncio).
Pousou-as na mesa e começou a abri-las devagar,
tão devagar como passa o tempo quando o tempo
não passa. E depois distribuiu-as pelos outros,
multiplicou se em dedos, em palavras (alguém disse
que chegariam a todos, ultrapassariam os séculos e
teriam a duração do tempo quando o tempo perdura).
Ceou com todos pão que não levedara e o vinho áspero
das videiras magras do monte que os ventos dizimavam.
Quando se ergueu, havia ainda palavras sobre a mesa,
coisas por dizer no resto do pão que alguém deixara,
feridas fundas nas mãos que fechou em silêncio e devagar.
Perto dali uma figueira florescia. À espera.
['A Última Ceia' de Maria do Rosário Pedreira in 'A casa e o cheiro dos livros')
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