Ando ao longo da muralha, passeio pelos cais, vejo os belos veleiros que passam neste rio tão amado. Depois recolho-me no meu mundo. Aqui, neste grande armazém, construo mastros. Para aqui trago os troncos que deixo envelhecer. Depois escolho-os, passo as mãos pela madeira envelhecida, aparo-a, sinto o aroma doce e quente da madeira. Afago estes troncos macios que são tão fortes. Faço mastros, os melhores mastros. Velas nem vê-las.
Fico aqui até ser noite. Os gatos entram e aconchegam-se uns nos outros, está-se tão bem aqui. Tiro da grande arca as folhas, os compassos, as réguas, as canetas, as limas, as goivas, os meus instrumentos, os óleos, o meu tesouro. Faço medições, faço cálculos, faço desenhos. Depois saio, descanso a olhar no rio, deixo-me levar pelo voo gracioso e livre das gaivotas. Regresso, recomeço. Vou para a madeira, meço-a, ajeito-a.
E então, alguns dias, quando a lua ilumina as águas, não é o som dos gatos que eu ouço: és tu, minha amada, és tu que vens até mim. Trazes-me pão, vinho e sentas-te comigo na mesa junto à porta de onde se vê o céu e as estrelas.
Depois, levas-me pela mão, eu fecho a arca, tapo o céu e deitamo-nos rente ao rio, iluminados apenas pelos teus olhos que brilham como estrelas.
[As palavras que abaixo lerão no belíssimo poema de Pedro Tamen pedem que uma música tocante, pedem uma harmonia que brilhe; siga, pois, até mais abaixo para ouvir o Vocalise de Rachmaninov]
Avistado do Ginjal, veleiro no Tejo, bem de frente para Lisboa (bem visíveis as Torres das Amoreiras) |
Impenitente criador de mastros,
quanto a velas nem vê-las
- mais que de fugida
quando me olhas de olhos nas estrelas,
minha vida.
Dos astros
desço então à hora parca
que o destino nos deu:
e fecho a arca,
e tapo o céu.
[Poema de Pedro Tamen a publicar no próximo livro que, presumivelmente se chamará Rua de Nenhures - publicado entretanto na Revista Relâmpago]
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