Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

11 janeiro, 2012

Exercito-me, o calor da sua mão não me distrai do que estamos a fazer

 
O rectângulo em que vou escrever está em branco. Sei que vou escrever, sei que as palavras vão encontrar aqui o seu caminho. Saíram talvez das mãos de Maria Gabriela, caíram talvez das nuvens onde se costumam alojar, que sei eu.

Exercito-me primeiro, copio um pequeno texto, talvez seja um poema, copio as palavras que um dia povoaram o mundo de Maria Gabriela.

Ela sentava-se, a mão dada a um homem de quem não conhecia a voz nem a escrita, a quem ela batia e cortejava e que, sempre, na sua infinita misericórdia, a guiava pelas linhas da escrita.

Assim estou eu, pois, sentada, guiada pelos poetas, amparada pelos homens e pelas mulheres que ajoelham perante o indizível poder das palavras. Hoje é Maria Gabriela que aqui está comigo, mulher da terra, da voz rente ao corpo, mulher que amassava palavras com a gentileza de quem amassa pão. Maria Gabriela sorri, junto a mim. Ela conhece-me bem: sabe que eu também enfio as mãos na terra, mexo nas flores, ajeito as árvores, ela sabe que eu sofro se um ramo de árvore se parte, ela sabe que eu conheço bem as margens deste rio. Há pouco, segurou-me agora a mão e disse-me, olha aquele ramo ali no rio, caíu de uma árvore, e ali está tão belo, livre, vogando nas águas transparentes, olha a beleza que está naquilo que amamos, olha a beleza daquilo que se liberta, daquilo que é livre e vai, olha.

Olho e deslumbro-me perante a beleza tão límpida de algo tão improvável. E as palavras encostam-se a mim, espreitam as águas do rio, e eu estendo os meus braços, acolho-as a todas, dou-lhes a mão, e elas, livres, felizes, andam à minha volta.

E agora que aqui estou sentada, chegam-se a mim, dançam, meninas alegres, e dispõem-se sózinhas dentro deste rectângulo que, assim, com elas, deixa de estar em branco.



[Ah, meus amigos, o que eu gosto de escrever sobre palavras e o que eu gosto da escrita irmã de Maria Gabriela - tomem-nas nas vossas mãos e desçam com elas até ali mais abaixo, toquem-lhes enquanto ouvirem o Romance de Rachmaninov]

No Tejo, junto ao Ginjal


Olha para mim e diz-me que posso principiar a escrever.
Eu agradeço-lhe a misericórdia e sento-me diante dele
perscrutando a túnica, o branco do livro e o branco livre.
Não consigo imaginar-lhe o tom da voz, nem o perfil da sua escrita.
Esse corpo duro é impenetrável e há-de repelir-me definitivamente.
Ando à volta, cortejo-o, bato-lhe no rosto.
Ele toma-me a mão sem se zangar, inabalável na sua misericórdia.
Abre um dos seus livros e os dois copiamos o que lá está escrito,
como se fosse um texto por escrever.
Exercito-me, o calor da sua mão não me distrai do que estamos a fazer.
Cravo os olhos nos seus e sei que não chegarei mesmo a pronunciar-lhes a cor.
Sinto-me poderosa e, ao mesmo tempo, com vontade de dormir.
Adormeço sobre a sua mão, mas no sono continuo a sentir-lhe o ímpeto
e à procura do lugar para onde ela se dirige


[Excerto de 'O Livro das Comunidades' de Maria Gabriela Llansol]

2 comentários:

  1. Ai, que belo texto o seu e que belo texto o de Maria Gabriela Llansol. Fiquei tão emocionada ao lê-los, eu que há dias ando com as palavras da escritora no pensamento e no coração. Gostei tanto de as encontar aqui também.

    Um abraço

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    1. Agora que finalmente consegui voltar a aceder aos comentários, volto aqui para lhe agradecer. Tenho visto que, de facto, também tem andado com as palavras de Maria Gabriela ao colo.

      São uma coisa, as palavras daquela mulher...

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