Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

30 janeiro, 2012

Mulheres que caminham sozinhas no bosque à noite

 
Ao espelho, passa a sombra e o eyeliner nas pálpebras, aplica baton e une e desune os lábios para que a cor e o brilho melhor se espalhem, com um pincel macio espalha o rouge nas maçãs do rosto, a seguir solta o cabelo, escova-o, agita a cabeça para que melhor se solte, olha-se de frente, depois de lado, a seguir aplica perfume em spray na orla do pescoço, nos pulsos, calça as botas, vê-se no espelho de corpo inteiro, veste um casaco sobre o vestido justo, uma última mirada ao espelho, gosta, ensaia um sorriso, está tudo bem.

Fecha a porta, chama o elevador, sai para a rua. Passa da meia noite. Está frio, a respiração forma um halo à sua volta. Mãos nos bolsos, decidida, caminha pela noite. Sozinha avança na noite. Receia as sombras, teme os vultos, mas avança decidida. Aspira o ar frio, o peito treme de medo, que vai fazer desta vida? mas avança sozinha nesta noite que não foi feita para mulheres sozinhas.

Pensa que o sangue que sente escorrer do seu corpo é bem o espelho da inutilidade que é a sua vida actual. Um fio de sangue quente, inútil. Avança na noite, avança, avança em direcção ao nada. Uma mulher cheia de sementes inúteis atravessa a noite. Pintada, arranjada, perfumada - para ninguém, apenas para atravessar a noite.

Olha as árvores nuas, fantasmas que habitam a paisagem, passa por uma casa grande abandonada, e sente que esta noite desolada e fria não a rejeita e, então, avança, mais tranquila. Ninguém a vê, ninguém a quer, ninguém sentirá a sua falta se mergulhar no poço mais escuro de um bosque, na cova mais funda do mar. E avança sozinha na noite.

Vai em silêncio. Há muito que, à noite, em casa, num quarto silencioso e indiferente, começa por se despir de palavras, dobra-as direitas, arrumadas, sobre a cadeira ao lado da cama. E então despida de palavras, nua, começa a vestir as vestes da noite. Mulher silenciosa vestida para a noite. Mulher que penetra no mato mais solitário, silenciosa, o peito vazio, o sexo inútil, os olhos secos. Apenas o cabelo esvoaça. O cabelo esvoaça - e ao seu lado algumas indómitas palavras que, em silêncio, se levantaram da cadeira e que agora voam, transparentes, para zelar por ela, mulher sozinha atravessando a noite.



[Numa noite fria e triste, convido-vos, meus amigos, a que me acompanhem. Vou ali mais abaixo, a seguir à fotografia e ao belo poema de Ana Duarte, tentar aquecer a alma ao som de Gershwin.]

Alguém que caminha na noite


                      Mulheres que caminham sozinhas no bosque à noite
                      mulheres sonoras alagando de calor as copas dos arbustos
                      mordendo o pânico, iluminando o voo dos insectos
                      Das suas cabeleiras soltam-se pensamentos
                      como da folhagem inacessíveis aves nocturnas
                      Ah, essas mulheres atrás de quem se fecha a noite,
                      que cosem com um fio de sangue os caminhos
                      Em frente abre-se o peito das mulheres
                      na direcção do poço mais negro do bosque
                      abre-se o peito das mulheres
                      Despiram-se da voz na primeira encruzilhada
                      e todo o seu corpo é um seixo que enche a boca da noite,
                      uma pedra solta forçando a passagem entre os veios da noite,
                      uma contracção de semente que aperta a orla do bosque
                      - e a poeira ergue-se em torno dos seus pés como
                      a respiração da fera ao calor dos herbívoros


['Mulheres que caminham sozinhas no bosque à noite' de Ana Duarte in Criatura]
  

2 comentários:

  1. Cara Amiga:

    Gostei do poema, do som e da sua (UJM) interpretação. Agradeço-lhe.

    Em mim provocou a seguinte reacção, simples, que aqui partilho:


    Pedras soltas

    Somos pedras soltas
    Que rolamos nas noites sem madrugada
    Ao sabor do escuro, a olhar nada,
    Fugidias almas mortas…

    Somos pedras soltas
    Que sem luz vagueamos sem destino
    Com a mágoa negra no peito
    Do ainda não feito…

    Somos pedras soltas
    À procura de mestres de palavra sabida
    E de ser gente, gente de atino,
    No caminho da luz escondida…

    José Rodrigues Dias, 2012-01-31

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  2. Caro José Rodrigues Dias,

    Quando abro os comentários e dou com uma coisa como esta fico sempre sem respirar, suspensa, fico emocionada. E muito contente, também. Nem sei como agradecer, nem como dizer-lhe que acho uma coisa fantástica, saírem-lhe assim poemas, com esta facilidade.

    Estava com vontade de o puxar para cima mas acho que devo deixar onde está para que o use, 'em primeira mão', no Traçados. Claro que, se assim o entender, pode usar a fotografia.

    E obrigada - se bem que dizer 'obrigada' me soa a coisa pouca face ao agrado tão grande que isto me desperta.

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