Andamos os dois junto ao Tejo, a tarde chega ao fim, a noite cai, as pessoas recolhem-se, os barcos regressam ao cais, algumas luzes acendem-se. Caminhamos em silêncio, uma ou outra palavra trocada, quase sussurrada . Em momentos assim, sagrados, todo o recolhimento é pouco.
As águas solenes do rio ficam prateadas, macias, a aragem faz apenas levantar ao de leve a seda líquida, subtis requebros de seda suave, quase branca. Olho, quase indiscreta, uma beleza assim não deve ser banalizada.
Depois passa por nós uma mulher correndo, uma égua de trote cadenciado, cabelos voando, patas fortes batendo no caminho, é uma mulher alada, corre na noite, é uma mulher saída do poema de Herberto.
E nós continuamos, um último veleiro, recolhendo as velas, rasga o rio, uma visão quase mágica, um veleiro silencioso e digno.
E então eu digo-te baixinho - e tu encolhes os ombros porque tantas vezes já me ouviste dizer a mesma coisa - que queria ser capaz de voar, primeiro rente ao rio, sentindo o cheiro da maresia, sulcando as águas de prata macia, depois elevando-me, longas asas brancas na noite mágica, abrindo o espaço com o meu voo, eu mulher nua, banhada de luar.
[Peço-vos que aceitem o meu convite e que venham voando, ao de leve, passando a fotografia, o belo poema de Bernardo Pinto de Almeida até que a sublime voz de Renée Fleming nos acompanhe, abrindo assim a semana que vou dedicar a Gershwin.]
Anoitecer no Tejo (a Torre de Belém ao fundo) |
Nada é perfeito como a tua noite
se outro sol nela se levanta
quota parte de treva que anuncia
a traço grosso o rosto claro instante.
Olhos febris a boca estremecendo
à simples sugestão da queimadura
movimento subtil age os quadris
do frémito possante que insinua.
Barco fundeado no horizonte
movimento do vento que se espanta
se acaso luz feroz evidencia
prata líquida de fuel flagrante.
A noite inunda-te. A lua espelha no mar sua moldura
pueril respiração do peito erguendo
zona de sombra onde tudo diz
que antes mesmo da nudez já estavas nua.
['Corto Maltese' de Bernardo Pinto de Almeida in '366 poemas que falam de amor']
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