Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

30 novembro, 2012

Até ausente soube cercar a terra inteira com seu abraço


Nestes dias de pesado desalento e de medos no horizonte, atravessamos as cidades como cães sem dono. O frio arrepia-nos o pêlo, cosemo-nos às paredes, uns esfaimados, outros protegendo a medo o pouco que têm, olhamo-nos uns aos outros com olhos aflitos. O que vai ser de nós?, murmuramos quase sem voz.

Pensávamos que os mostrengos estavam no meio do mar, temíamos o escuro das profundezas e as tempestades que desciam dos céus para se abaterem sobre nós. 

Aflitos, desprotegidos, percebemos agora que, afinal, desgraçadamente, os mostrengos estão no meio de nós. Aqueles que pensávamos que eram os nossos timoneiros são afinal os verdadeiros monstros, terríveis monstros. Sobre nós abate-se agora a sua impiedosa fúria. Devastam a terra, destroem as embarcações, assaltam-nos, violentam-nos, agridem os velhos, expulsam os jovens. De olhar implacável, sorriso fixo, dentes afiados, sugam o nosso sangue, desprezam-nos, vendem-nos. Somos nada a seus olhos.

Indefesos, os mais fracos encostam-se agora uns aos outros, sem forças, sem lágrimas, apenas medo. Muito medo, um medo cobarde, um medo envergonhado. O medo da fome e da solidão.

Tempos houve em que havia nesta terra gente com visão, com determinação. Nessa altura, fazíamo-nos ao mundo, éramos ousados, galgávamos vales, atravessávamos horizontes, percorríamos os contornos do mundo. Nada nos detinha. Procurávamos o futuro e, pondo a vida em risco, lutávamos pelos mais jovens, pelos mais velhos, pela riqueza, pelo país que sempre amámos.

Mas, entre os que atravessam as ruas ganindo, chorando, tremendo de frio e medo, há alguns, não muitos mas os suficientes, os que não desistem, os que ainda lutam, os que ainda se mantêm de pé, sentindo o sangue quente a correr-lhes nas veias. 

Um dia virá! Um dia virá! Um dia virá!, dizem baixinho, tentando animar os outros. E juntos lá vão.

Acreditam que um dia virá.

Um dia virá! Um dia virá! Um dia virá!



[Abaixo da caravela de pedra que carrega um povo inteiro, encontra-se um poema da Mensagem, no dia em que passam 77 anos desde que Fernando Pessoa passou a observar-nos de longe. Logo a seguir ao poema, uma música muito límpida. É Froberger que se despede.]



O Padrão das Descobertas avistado do Ginjal




                             Dançam, nem sabem que a alma ousada
                             do morto ainda comanda a armada,
                             pulso sem corpo ao leme a guiar
                             as naus no resto do fim do espaço:
                             que até ausente soube cercar
                             a terra inteira com seu abraço.

                             Violou a Terra. Mas eles não
                             o sabem, e dançam na solidão;
                             e sombras disformes e descompostas,
                             indo perder-se nos horizontes,
                             galgam do vale pelas encostas
                             dos mudos montes.



                             ['Fernão de Magalhães - 2ª parte' de Fernando Pessoa in Mensagem]


Johann Jacob Froberger: Yan Snimschikov interpreta Toccata II


28 novembro, 2012

O meu nome fantástico e secreto que só os anjos do vento reconhecem


Hoje é um desses dias. Não me reconheço em grande parte dos que me cercam. Sou diferente. Pareço idêntica, tenho duas pernas, dois braços, na aparência falo a mesma língua, aparentemente percebo o que querem, o que fazem.

Mas só eu sei como me sinto tão distante. Andam às voltas, não saem do mesmo sítio apesar de andarem sempre à pressa, dizem coisas que não interessam ou que não fazem sentido, interessam-se muito por coisas efémeras e irrelevantes, interessam-se mais por coisas do que pelos outros a quem não ouvem nem conhecem. Aquietam-se quando se deveriam revoltar, acatam quando deveriam desobedecer, vergam-se quando se deveriam erguer.

Parecendo igual, em dias assim sinto-me uma estranha.

Em dias assim, vendo que não consigo mudar o mundo, busco a noite. Entro pela noite dentro, procuro as águas, mergulho nas ondas, uma e outra e outra e eu submersa, tentando purificar-me, libertar-me.

Então, quando o silêncio invade o meu peito, por momentos ouço o meu nome, o meu nome soprado, cantado, sussurrado.

Não estranho. Sei quem assim chama por mim, quem assim tenta embalar-me. São os anjos, os anjos de grandes asas, os que habitam os meus grandes espaços. E fico tranquila, os anjos sabem o meu nome, reconhecem-me. Talvez apareçam para me tranquilizar, talvez saibam que, em dias assim, me sinto melhor sozinha no meio da noite, debaixo das águas tingidas com o negrume da noite, tocada pelo seu sopro mágico, do que no meio de gente que me é tão estranha, tão estranha, meu deus. 

Em dias como o de hoje não quero voltar aos dias áridos cheios de gente assim, tenho medo de me ver cercada por quem não saiba sequer o meu nome, medo que os meus anjos me abandonem. Oh deus.



[Abaixo da gaivota solitária, um belo poema de Sophia e, logo a seguir, a música de Froberger para nos tirar daqui.]



Em Cacilhas, gaivota caminha pensativamente pela beira do cais,
acompanhada apenas pelo seu próprio reflexo  



                                    No mar passa de onda em onda repetido
                                    o meu nome fantástico e secreto
                                    que só os anjos do vento reconhecem
                                    quando os encontro e perco de repente


[Poema de Sophia de Mello Breyner Andresen in 'No tempo dividido']

:.:.:


DISTÂNCIA

Distância
É a estrada longa que nos resta
Quando o tempo se estende
Para além da esperança
E os rostos se diluem em névoa.
Procuramos
Estranhos recantos
Lugares de Primavera
No peso agreste da memória.



SILÊNCIOS

Encontrar o silêncio
quando os dias se rasgam
de gritos ácidos
e os ouvidos se enchem
de bandos loucos de palavras vãs.
Encontrar o silêncio
onde a Paz se acolhe
e o vazio se enche
de sombras brancas.
Silêncio,
quando a angústia se esvai
e o olhar voa
como chama matutina.
Encontrar o Silêncio e morar nele
até que nos encontremos
e um sorriso se abra em nós.


GUNDULA STEGLITZ

(em comentário abaixo)

.:.:.



PARA TI

Caso não saibas
minha querida Tá
hoje
escreveste um poema (e ai de quem disser que não)

esvaziaste de tédio a tua alma
organizaste desencantos espaços e memórias
e retomada a tua arrumação
cobriste a tristeza com asas de anjo...

(não ouvi nem discursos nem mentiras
recuso...não quero...não quis)
e quanto a ti
gosto bem mais de sentir zangada... furiosa... mas feliz


Era uma Vez

(em comentário abaixo)

Johann Jacob Froberger - Jeannette Sorrell interpreta Tombeau pour Blancrocher


26 novembro, 2012

Pode sê-lo de si mesma e tornar-se vazia


Dias de chumbo? Dias de pesada névoa em que não se vê um palmo à nossa frente? Em que mal sabemos para onde vamos?

Dias de nevoeiro, e todos à espera de um D. Sebastião que tarda em chegar? Um país sem rei, sem roque? Em que nem homem ao leme temos? Em que andamos à deriva entregues a um bando de piratas que tomaram de assalto esta nau que por aqui vai deslizando à deriva? 

Por aqui vou, sozinha, neste cais sem navios. Vagueio em silêncio junto a armazéns de beira de água que eram de pescado, agora fechados, degradados, sem serventia. Há quanto tempo não atracam aqui barcos de pesca? Há muito pois há muito que o país se modernizou. 

Metáforas.

A imagem é branca porque a névoa é branca e branca é a página em que escrevo. 

Mas, logo que publique o que estou a escrever, o fundo tornar-se-á de outra cor e tudo mudará de figura. Assim são estes tempos, travestidos, manipulados, virtuais.

Seja.

Metáforas, ainda.

Mas eu sou como a gaivota que atravessa o tule da neblina, fura a espessura do ambiente, e, elevando-se nos ares, solta gritos desvairados. Não desiste e, mesmo que os velhos do Restelo a apontem e digam, enlouqueceu, ela continua, grandes asas brancas bem abertas, solitária, livre. Procura o caminho da luz.

E a luz está lá, esperando que a descubram.

Metáforas. Metáforas. Só metáforas.

(Infelizmente não matam a fome a ninguém. Mas, enfim, ao menos distraem-nos, não é?)




[Sob o manto de névoa, um poema de Fernando Guimarães dedicado a Vasco Graça Moura e, logo a seguir um Capricho de Froberger. Perfeito para um dia assim.]



Avistado de um cais deserto, no Ginjal, cacilheiro atravessa a neblina,
Lisboa difusa lá por trás



                                         Pode sê-lo de si mesma e tornar-se
                                         vazia. O que dela é nosso
                                         veio a ser a sua perda? Ninguém
                                         a pronuncia. Sabemos que só existe
                                         numa página agora branca, quase
                                         transparente. Recebe o sentido
                                         do que se não exprime sequer, e fica
                                         assim: para lhe pertencerem
                                         todas as palavras.



['Metáfora' de Fernando Guimarães in 'a vista desarmada, o tempo largo', antologia, poetas em homenagem a Vasco Graça Moura

Johann Jacob Froberger - Bob van Asperen interpreta Capriccio III


Os gritos a meio da noite das amantes a meio da loucura


Chove neste Outono triste e lacrimoso. Chove sem parar. Mesmo quando parece abrandar, cai ainda e é uma chuva miúda, uma morrinha, uma tristeza que se cola a nós. E anoitece tão cedo. Parece que cada vez mais cedo. Ou será impressão minha? É outono e no outono 'cai a folha' dizia o meu tio no dia em que velávamos a minha avó. Mas também ele já cá não está, partiu não muito depois, num inverno muito triste. Mas não é disso que quero falar.

É, pois, no Outono que cai a folha. 

E eu vejo as belas folhas cor de cobre, cor de fogo, molhadas no chão. Fotografo-as tentando guardar na minha memória uma beleza que me parece tão efémera, restos de uma vida cuja beleza se prolonga mesmo quando de rastos, pelo chão.

Foi num outono distante que eu passeei com um novo amor que me deixava louca, passeávamos num jardim atapetado de folhas cor de fogo e eu perdia a cabeça, esquecia tudo, tudo, louca de amor.

Foi num outono que eu percorri os dias e as noites descobrindo que a paixão é mais forte, mais destemperada que o amor, que a paixão avassala o corpo e a alma. Mergulhávamos nas sombras, procurávamos os recantos, tudo para que a intimidade se descobrisse, tudo para que a intimidade se resguardasse dos outros, não de nós. Outras vezes, limitavamo-nos a dar as mãos na penumbra dos cafés; mas atrás das mãos dadas vinham os beijos e vinha, sempre, a ternura imensa que nascia da troca de olhares. Um dia um homem que estava noutra mesa levantou-se e veio deixar-nos uma folha e disse, desculpem, não pude deixar de vos observar, isto é para vocês. Era um poema e ele era um poeta conhecido. Outra vez, estávamos também num local público mas a tentação e o amor e a paixão eram grandes demais para que nos lembrássemos de a conter e um senhor de alguma idade passou por nós, sorrindo, e disse, e havia carinho na sua voz, é verdade aquilo que se diz: que o namoro é poesia e o casamento é prosa. Era outono e chovia muito. Há muitos anos. 

Agora é também outono e ainda nos damos as mãos, ainda nos beijamos e a ternura ainda nasce dos nossos olhares. E eu ainda vivo rodeada de poesia.



[Já aqui abaixo das folhas de um outono bem molhado, um belo poema de Fernando Assis Pacheco e, logo a seguir, abrimos a semana com um novo compositor, mais um do século XVII, mais um compositor barroco, desta vez o alemão Johann Jakob Froberger]


Outono, com folhas no chão e chuva




                                  Eu vi o Outono desprender suas folhas,
                                  cair no regaço de mulheres muito loucas.
                                  Cem duzentas pessoas num café cheio de fumo
                                  na cidade de Heidelberg pronta para a neve
                                  saboreavam tepidamente a sua ignorância.

                                  Eu vi as amantes ensandecerem
                                  com esse peso de Outono. Perderam as forças
                                  com o Outono masculino e sangrento.
                                  Os gritos a meio da noite
                                  das amantes a meio da loucura voavam
                                  como facas para o meu peito.

                                  Alguns poetas li-os melhor no Outono,
                                  certos amores só poderia tê-los,
                                  como tive, nos dias doces da vindima.
 

                                  ['Peso de Outono' de Fernando Assis Pacheco in "A Musa Irregular"]

Johann Jacob Froberger - Gustav Leonhardt interpreta um excerto da Suite No.2



Excepcionalmente escolho um vídeo em que não se vê o intérprete mas, do que vi, há poucas gravações 'ao vivo' de músicas deste compositor.

Agradeço ao Leitor que tão amavelmente me deu a conhecer este compositor que assim me descreveu: compositor do Sec. XVII, Johann Jakob Froberger, foi apresentado como eventual “inventor” da suite orquestral e o primeiro grande cultor da música sem palavras o que não seria comum ou mesmo quase inexistente antes dele.

Muito obrigada. Gostei.

22 novembro, 2012

Portugal não é pátria mas país



Deste rio partiam, antes, grandes homens em pequenas embarcações. Grande e desconhecido era o mundo, mas grande era também o sonho e a ambição. Partiam e enfrentavam as ondas, as marés, os ventos, os rochedos, os medos, os ameaçadores medos. Lá iam. E vinham as carências, as doenças, a morte. Mas os grandes homens em pequenas embarcações não se apequenavam. Levantavam a cabeça, entregavam o peito às intempéries e lá iam, mãos rijas, pernas fortes, lá iam cruzando os mundos.

Há tanto tempo foi isso. Terão sido mesmo portugueses? Éramos tão diferentes assim?

O homem que, de torso nu, de pé no cais, tira o peixe da água, vê os veleiros que regressam de tão longínqua odisseia e pensa que tomara que o peixe morda o isco para ter comida para o jantar.

Para bem dele não se lembra de perguntar: onde a pimenta e o açafrão? onde o ouro? onde? onde os outros mundos? onde o futuro? onde a coragem, a bravura, a ambição da nossa gente? onde? onde os grandes portugueses? 

O homem espera o peixe que tarda e pensa ah se o peixe não vem, que comida ponho em cima da mesa? 

Mas depois, cansado de esperar, solta um sentido lamento, ah rio que não te fazes ao mar, ah português que não te agigantas...!



[E, por lamento, logo abaixo do belo poema de Ruy Belo, temos o Lamento de Dido. É Purcell que se vai despedindo aqui no Ginjal]



No cais do Ginjal, sobre o Tejo, de frente para Lisboa



                                           Plantados como árvores no chão
                                           ao alto ergueis os vossos troncos nus
                                           e o fruto que produz a vossa mão
                                           vem do trabalho e transparece à luz

                                           Nenhum passado vale o dia-a-dia
                                           Sonho só o que vós me consentis
                                           Verdade a que de vós só irradia
                                             - Portugal não é pátria mas país



                                          ['Aos homens do cais' de Ruy Belo in Homem de palavra(s)]


Henry Purcell - Xenia Meijer interpreta o Lamento de Dido da ópera Dido e Aeneas


21 novembro, 2012

E vêm chorar em mim o coração traído, a música perdida em distracções urgentes, umas palavras que ninguém falou.


Os dedos sobre o teclado, os olhos semicerrados, as palavras descendo sozinhas, pingos de cera, mornos, e a chama ardendo devagar, ou a límpida chuva escorrendo na janela, ou as lágrimas de quem me lê. A solidão que gera a solidão. A melancolia que é uma tristeza às vezes doce, outras uma teia que envolve devagarinho. E as palavras escorrendo, devagar, sozinhas. Não são minhas. Não. São de quem as lê. São palavras que contam a história de quem está aí, mãos talvez no regaço, mãos acariciando um gato que não vejo, mãos que imaginam como é macia a penugem de um pássaro colorido que se vê da janela (aí onde agora é primavera e onde os pássaros são tão maravilhosamente festivos). Ou mãos talvez também pousadas sobre o teclado. As minhas mãos e as vossas, juntas. As minhas que escrevem, as vossas que recebem o que escrevo. O calor das minhas palavras junto ao calor do vosso olhar. E eu sinto que o vosso calor é doce, que o vosso olhar é doce, tão cúmplice.

De quem são, pois, estas palavras que vão aparecendo escritas, e eu sem as ver, nascendo sozinhas vindas do meu coração, procurando o vosso olhar? São minhas ou vossas? 

São vossas. Tomem-nas. As minhas palavras são um abraço apertado a todos quantos me lêem. Obrigada.



[Abaixo do homem que olha o mundo de frente, há um belo poema de Jorge de Sena. Logo a seguir há uma música muito bela. Talvez seja boa ideia receberem o meu abraço e lerem o poema ao som do Te Deum de Purcell mas, claro, é uma opção vossa]


No Ginjal, de frente para Lisboa




                              Por que entristeço ao ler o que de meus
                              versos escrevem, se não é de mim
                              que escrevem?

                              Será que chora em mim o que meus versos foram
                              antes de ser meus?
                              Por que pergunto, se já sei por quê?

                              Escuto longamente, leio, espero,
                              e o poema é voz de toda a gente, todos eles, que,
                              não se tendo ouvido, não a sabem sua.
                              E vêm chorar em mim o coração traído,
                              a música perdida em distracções urgentes,
                              umas palavras que ninguém falou.

                              Não entristeço, pois. Apenas sou pergunta,
                              e, sendo eu, me esqueço ao perguntar.



['Tendo lido uma carta acerca de um seu livro de poemas, que oferecera' de Jorge de Sena in 'Antologia Poética']


Henry Purcell - O Choir of Clare College, Cambridge, dirigido por Timothy Brown , interpreta o Te Deum


20 novembro, 2012

Tornou-se tão cansado o seu olhar


Ando em círculos. Exausta, sem esperança. Quando era pequena, andava assim, à volta. À volta, à volta, até que ficava almareada. Almareada era uma palavra que diziam as minhas avós, pára de andar à volta, menina, olha que ficas almareada. Quase caía, então, enjoada, como se tivesse vindo de andar no mar. Assim fico ainda hoje. Às voltas, aturdida, desanimada. Um dia, outro dia, e já lá vai mais uma semana, já passou mais outra?, e já passou outro mês e já estamos quase no natal, já, não gosto que o tempo corra tão rápido assim, tenho ainda tanto mundo para viver. Presa nas invisíveis teias, presa por invisíveis grades. Um dia, outro dia, uma volta, outra volta, sempre, sempre, e cada vez mais triste o meu olhar.

Palavras soltas, frases talvez sem sentido. 

Onde a coerência?, perguntarão. Tantas vezes alegre, tantas vezes vadia e agora, aqui, parada, triste, uma solidão silenciosa no olhar. Não saberei responder. Os olhos fecham-se, as cortinas correm-se. 

Mas não és livre? Quem te impede? Queres ir, vai.Vai. Dirão. Mas eu fico. Presa. Presa a tudo. Podem as grades estar por trás, eu à frente, livre, que não me sinto livre. Cansado o meu olhar. Quero partir, ir para o mar, voar, escrever frases com ondas fortes, atravessar vendavais, rasgar as velas de um veleiro que me leve, ir. Mas não vou. 

Por aqui me fico, saudades de quando a vontade era imensa. Quero chorar, mas os meus olhos apenas já só sabem olhar o vazio. Olho com olhos tristes quem por aqui passa e sonho que o meu coração ainda bate.

Mas não sei se bate. Talvez tenha parado um destes dias, numa destas voltas. 



[Logo depois da pequena pantera triste, um belo poema de Ana Luísa Amaral. E, para ver se espantamos a tristeza, um momento de baile. É Henry Purcell que aqui vem para voltear com delicada alegria]


Pequena pantera no Ginjal


No Jardin des Plantes, Paris


                                      Tornou-se tão cansado o seu olhar,
                                       ao romper grades, que retém só nada.
                                       Como se nesse olhar fossem mil grades
                                       e, além de mil grades, nenhum mundo.

                                       Passeia, branda, em passo intenso e leve,
                                       movido em roda do mais curto círculo:
                                       dança de força circulando um centro
                                       onde, aturdida: uma vontade imensa.

                                       às vezes, a cortina da pupila
                                       rasga-se no silêncio. Entra então
                                       uma imagem, que, em tensa calma, os membros
                                       atravessa - e cessa em coração.



                                        ['A Pantera, de Rainer Maria Rilke' de Ana Luísa Amaral in Vozes]

Henry Purcell - Hornpipe (de Abdelazer), aqui como banda sonora do filme Pride and Prejudice


19 novembro, 2012

Penso nos lugares aonde não mais voltarei


Houve um dia, era verão, um verão muito quente e estávamos em Milão. Fomos para fora da cidade, era um restaurante no campo, chão de terra e, para nos proteger do sol, havia uns paus com lençóis atados. Quando soprava a aragem, os panos brancos ondulavam. A comida era muito boa, toda a gente ria, toda a gente falava muito alto. Não parecia verdade.

Houve um cinema ao ar livre num bairro de Luanda. Tanto calor, as noites tão quentes. Eu, muito jovem, blusa sem ombros, o cabelo entrançado, um grupo de jovens em passeio. És mais bonita que a Julie Christie, dito ao ouvido, o perfume dele a entrar em mim, a pele do meu ombro tão sensível, e ele debruçado sobre mim.Via-se a baía iluminada. Havia grandes bananeiras ou palmeiras. Em baixo, contra a baía, um grande écran onde se projectava o Dr. Jivago.

Houve uma serra frondosa, um teleférico, um medo, porque me vim eu meter aqui?, tão alto, passávamos a rasar as copas das árvores enormes, verde muito escuro, e neve, a neve muito branca sobre cedros muito escuros, um frio muito puro, depois passávamos por cima das longas árvores, e subíamos lá muito para o alto, tão alto, tão alto. Estávamos numa montanha perto de Zurique e o silêncio e a beleza estavam muito perto da pureza de uma religião imaculada.

Houve uma casa de campo, talvez perto de Billigham, uma guest house, de um conforto quase inimaginável. O campo à volta era muito verde. Pastavam umas vacas nessa pradaria e tudo era tão perfeito que parecia quase a fingir. A lareira, a comida, todo o ambiente. E a cama era muito macia, com muitas almofadas, e tudo, tudo, era tão macio, tão acolhedor, tão bom que dava vontade ficar lá para o resto da vida.

E outros. Tantos. 

Lugares onde não vou voltar. Quando os abandonei não percebi que tinha estado a viver momentos únicos, momentos que poderia reviver apenas no silêncio da minha memória. Não lhes disse adeus, nunca direi.



[Abaixo da gaivota que pensa nos locais onde não voltará, mais um belo poema de um poeta quase residente, Luís Filipe Castro Mendes. E, logo a seguir, abre-se a semana com um novo compositor, Henry Purcell. E que estreia...!]


Gaivota melancólica à beira do Tejo, no Ginjal



                                               Penso nos lugares aonde não mais voltarei:
                                               não para dizer que neles se encerrou
                                               o que deles ou através deles eu poderia ter sido.
                                               Apenas para lembrar
                                               que nunca lhes poderei dizer adeus.


['O paradoxo do viajante' de Luís Filipe Castro Mendes in Lendas da Índia]


Henry Purcell: a Royal Opera na interpretação de Dido and Aeneas



Elenco

Lucy Crowe
Sarah Connolly
Lucas Meachum
Anita Watson
Sara Fulgoni
Eri Nakamura
Pumeza Matshikiza
Yestyn Davies
Ji-Min Park


15 novembro, 2012

Se te inflama a ideia de seres duas vezes nascido


Caminhas, meu louco amigo, sobre as águas, sobre um fio de espuma, sobre um rasto de luz e, quem te ouça falar, pensará que és imortal, que toda esta vida e a outra e a outra cá andarás, eterno, imperecível, imaterial.

Elevas-te sobre o azul, atravessas o espaço, desafias a normalidade. Andar sobre os caminhos assentes na terra não é para ti, meu doido amigo.

Gosto tanto de ver assim, sonhador, sem limites.

A vida para ti não acabará nunca, que os anjos loucos são eternos. 

Mas, apesar disso, meu amigo, traz sempre contigo a lira, e traz também a memória das palavras dos poetas. Assim apetrechado, poderás enganar as sombras, as dores, a finitude. Talvez não te levem, talvez parem, talvez se deixem ficar a ouvir-te, voando sobre as águas, subindo nos ares, e dizendo, com voz ciciada e doce, toda a poesia deste mundo.



[O homem que voa sobre as águas precede o poema de Natália Correia e, logo a seguir, mais um maravilhoso momento de música dançada e cantada. Rameau ainda.]



No Tejo, junto ao Ginjal, caminhando sobre um fio de ar e espuma



                                  Caminhando sobre o fio da lâmina,
                                  forçoso é que desças ao sepulcro.
                                  Mas se te inflama a ideia
                                  de seres duas vezes nascido
                                  arma-te de lira
                                  para enterneceres as sombras.


                                  [Poema de Natália Correia in 'O sol nas noites e o luar nos dias', II]


Jean-Philippe Rameau - Extractos de 'Hippolyte et Aricie' com direcção musical de William Christie e coreografia de Trisha Brown




Aricie: Sophie Karthäuser
Phedre: Karolina Blixt
L'Amour, Une matelote, Une chasseresse, Une Pretresse: Emmanuelle de Negri
Un suivant de l'Amour: Ed Lyon


14 novembro, 2012

e então era a volúpia das palmeiras esguias


Espreguiças-te, minha gata. Vá, faz lá outra vez, quero ver-te, toda essa doce volúpia num só gesto, vá lá, espreguiça-te. 

Mas espera, ainda não, espera, deixa que sopre uma aragem para que o teu perfume de gata chegue até mim. 

Agarra o cabelo, chega-te para trás, aspira o maresia com o teu nariz de gata petulante, boceja que eu quero sonhar com a tua boca quente e húmida assim, aberta, minha gata. 

A luz azul que vem do rio ilumina o teu corpo e as sombras afastam-se, silenciosas, vencidas. És uma mulher solar e eu quero ver-te assim, oferecendo-te ao sol que te aquece o corpo.

Podes sorrir sabendo que estou aqui a olhar-te, a imaginar os teus olhos semi-cerrados ao sol, e as tuas pernas que eu gosto de ver a dançar agora expectantes, e a tua saia que se levanta com o ventinho que vem do sul. 

Ah como eu quero tanto esse corpo, como eu sonho tanto com esse teu corpo carnudo, voluptuoso. Todo o dia pensei em ti, todo o dia ansiei pelo momento em que ia chegar aqui e, sorrateiro, iria esconder-me aqui, atrás desta palmeira, aqui, tão perto de ti, minha gata gostosa, aqui eu, o teu homem cheio de saudades e de vontade de ti.

Vira-te agora, minha gata, vem devagar, vem, ronceira, lânguida, vem roçar-te no teu gato, vem devagar.



[Depois da gataria, mais um belo poema de Vasco Graça Moura e, logo a seguir, de novo, uma bem disposta peça musical de Rameau]



Em Cacilhas, sobre o Tejo, de frente para Lisboa, a bela



                                        ah, as grandes
                                        sombras da música
                                        estirando-se na tarde!
                                        tu dançavas nos meus sonhos

                                        e elevavas o corpo
                                        num rodopio de perfumes
                                        e então era a volúpia
                                        das palmeiras esguias

                                        sob o vento
                                        fazendo a luz oscilar
                                        em ziguezagues
                                        sobre as minhas pálpebras

                                        e era o puro movimento,
                                        uma cadência do ser
                                        a modelar-te o corpo
                                        entre citrinos


                                        ['rodopio' de Vasco Graça Moura in Poesia Reunida , vol 2]

Jean-Philippe Rameau - Stéphanie dOustrac (Argie), François Piolino (Manto), René Schirrer (Anselme), Les Arts Florissants, William Christie interpretam Les Paladins - Récitatif et Air en trio


13 novembro, 2012

A haste mais alta da melancolia


E, aos poucos - tanta a desolação, tamanhas as ausências - as palavras vão perdendo o sangue e, anémicas, arrastam-se ao longo das paredes, escorrem, as sílabas hesitantes, abúlicas, as letras soltas, desamparadas, uma lenta agonia.

Era verão e estava calor e o sol dourava as flores, dourava os dias, dourava os olhares. A isso chamávamos alegria.

Agora que o outono tombou, suave, sobre os dias, o silêncio cobre as vozes. E as súplicas morrem na garganta, os olhos calam o desânimo, os beijos não chegam a nascer. A isto chamamos melancolia.

E na haste mais alta da melancolia esconde-se a promessa dúbia de um outro dia, longínquo dia, tão longínquo.



[Bom. Para ver se espanto esta melancolia toda, logo abaixo do poema de Eugénio, a música é uma alegria, Rameau dançante e animado]



Muro no Ginjal


                                                   Colhe
                                                   todo o oiro do dia
                                                   na haste mais alta
                                                   da melancolia


                                                   ['Despedida' de Eugénio de Andrade in Antologia Breve]

Jean-Philippe Rameau - Concerto N° 3 (Tambourin), Il Giardino Armonico



(Não consegui descobrir quem são os intérpretes)

11 novembro, 2012

Momentos antes de ruírem, o anjo desolado pensa


Voam muito alto os anjos. Não os vejo. Transparentes e longínquos, apenas sinto o seu sopro morno, o silêncio do seu longo olhar.

As casas estão vazias, as paredes gastas e as salas frias guardam as almas distantes de quem, em tempos, por aqui viveu. Os vivos agora já não se aventuram dentro de tão arruinado casario. Habitadas por gatos vadios e ariscas gaivotas, estas casas já não acolhem o calor dos corpos, os sorrisos da vida. 

Crianças, amantes, mães e filhos, irmãos, amigos passam ao largo. Passam rente ao rio, olham as distantes fronteiras. Mas não entram. Não se deve despertar quem espera, em silêncio, o sossego da solidão e do desamparo. Não entro também.

E se, ao passar, ouço, vindo de lá, um ténue murmúrio ou sinto uma suave aragem, sei que é um dos desolados anjos que por lá esvoaça, talvez amorosamente enlaçando algum dos mais tristes espíritos que por lá se demora.



[Abaixo do azul do Ginjal, um poema de Carlos de Oliveira e, logo a seguir, para ver se alegro os anjos e as casas desamparadas, abro a semana que vou dedicar a Jean-Philippe Rameau, com Les Indes Galandes, uma festa de cor e música]



O casario do Ginjal rente a um Tejo muito azul
(a Ponte Vasco da Gama unindo o céu e o rio)



                                  Casas desidratadas
                                  no alto forno; e olhando-as
                                  momentos antes de ruírem,
                                  o anjo desolado
                                  pensa: entre detritos
                                  sem nenhum cerne ou água,
                                  como anunciar
                                  outra vez o milagre das salas;
                                  dos quartos; crescendo cisco
                                  a cisco, filho a filho?
                                  as máquinas estranhas,
                                  os motores com sede, nem sequer
                                  beberam o espírito das minhas casas;
                                  evaporaram-no apenas.



[Poema IX de 'Descrição da Guerra em Guernica' de Carlos de Oliveira in Antologia Pessoal da Pesia Portuguesa de Eugénio de Andrade]

*


O que é uma ruína?
Pode ser o resto de uma casa,
O resto de um amor, de uma paixão.
Pode ser um pobre velho que se fina,
Pode ser um pássaro sem asa,
Pode ser o fim de uma ilusão.


['Ruína' da Leitora Maria num comentário aqui abaixo]


*


...também podes ser tu
e o teu olhar vazio de projectos
e a decadência dos afectos
a fazer o seu caminho
brandamente
a dar cabo da gente
(um luxo descabido
para quem não vive eternamente)

na ruína
já não há carinho
apenas pedras
e galhos desgarrados
tentativas
restos
ausência de desejo
musgo a nascer teimosamente nos telhados


e de súbito (imagine-se)
no meio do nada
um trevo
uma luz
um beijo...



[Poema da Leitora Era uma Vez num comentário aqui abaixo]


Jean-Philippe Rameau - Les Arts Florissants de William Christie interpretam Les Sauvages de Les Indes Galantes


08 novembro, 2012

Partes, o céu demora-se a entardecer e a lassidão flutua


Ah meu amor que te foste. Ah meu amor. Saberias a falta que me ias fazer quando partiste? Imagino que não, mas imagino isso apenas para me poupar. Sofrerei menos se pensar que te foste, levado pelo vento, pelo acaso, sem sequer imaginares que eu iria ficar aqui, assim, cheia de sombra no olhar, cheia de restos de amor nas mãos, cheia de tristeza. Ah quanta tristeza, meu amor.

E o silêncio, e a noite que desce sobre mim, e a solidão colada à minha pele tão fria?

Saio para o dia que anoitece e detenho-me a olhar o imenso espaço vazio que se abre à minha frente. E não te vejo meu amor, nem a tua silhueta transparente, nenhum vulto, nenhum, nada, nem ouço a tua voz. E queria tanto ouvir o meu nome dito por ti. Queria tanto que aqui estivesses ao meu lado, que falta me fazes, que falta, meu amor. 

Apenas a nossa gata, que gostava tanto de ti e que agora chora suaves lamentos todas as noites, me olha. Grandes olhos verdes, límpidos, tristes. Ela e eu, as duas com tantas saudades, meu amor, as duas olhando o vazio, esperando por ti que não vens.

Vem, vem, vem. Estamos aqui em silêncio, cheias de frio, sozinhas, lágrimas pesadas e quentes caindo num chão desamparado, desamparadas as duas, esperando por ti. Vem, vem, meu amor.



[Abaixo da gata triste, um poema igualmente triste de Soledade Santos e, logo abaixo, o Te Deum de Lully]



Uma gata triste no Ginjal



                                         Partes, o céu demora-se
                                         a entardecer e a lassidão flutua
                                         como as volutas do incenso a arder.
                                         Saio à varanda, regresso
                                         aos gestos que me fixam
                                         e a gata no telhado
                                         seguindo-me com o olhar.
                                         Estamos bem assim, eu sozinha
                                         no azul da quase noite, ela em cima
                                         no fulgor do dia que se esvai.


['Azul da quase noite' de Soledade Santos in 'Sob os teus pés a terra']

Jean-Baptiste Lully - Les Cris de Paris interpretam Te Deum


07 novembro, 2012

E o céu. Basta-nos o nome para lidar com ele. O céu.


Suspensos no silêncio, quase imóveis, os homens esperam. Na sua imensa sabedoria, os homens esperam. O tempo avança, as águas correm num frémito de mil brilhos, o céu reflecte o rio, e os homens quase se anulam. Pequeno, pequeno, eu, dizem num dócil e respeitoso murmúrio.

E, na verdade, não se sabe se o tempo avança ou se o tempo está suspenso. Talvez esteja preso às folhas verdes da árvore que cobre a boca de cena, talvez esteja desfeito nos brilhos que cobrem as águas do rio, talvez percorra as veias dos pescadores ou lhes escorra por entre os dedos, tal como o fio que mergulha nas águas, tal como o olhar que busca a nuvem ou a ave.

As águas passam e levam, ocultas, árvores arrancadas, raízes desfeitas, tábuas, telhas, pedras, restos de casas, amores perdidos, levam a morte e a vida, levam a génese e o ocaso, levam palavras que se afogaram em dias de tormenta.

E o céu, silencioso, limpo, cúmplice, olha. Um pano branco, transparente, um regaço macio, um leito de amor, a casa das muitas asas, o último refúgio.

O tempo, a casa, o mar, o céu, o silêncio. A última palavra. O princípio de todas as coisas. O pecado original. O prazer essencial. O imenso tudo e o infinito nada unidos num incestuoso abraço. E, sempre, o silêncio, o longo, longo silêncio.



[As horas caem verdes sobre o rio. E, abaixo, as palavras de Herberto Helder mexem no silêncio que há dentro de nós. Logo depois a Passacaille de Lully]



Tarde no Ginjal, o Tejo coberto de pétalas brilhantes


                              Por trás da imobilidade, horas verdes
                              caem de espaço a espaço
                              - gotas de água no fundo de um subterrâneo.
                              E em volta um círculo de montanhas atentas.
                              No alto da noite côncava e branca,
                              uma camélia gelada. E metem as árvores
                              para o interior
                              a tinta e os ramos.
                                                        Absorção
                              dolorosa, diamante polido, vegetação
                              criptogâmica.
                                                 - O tempo.

                               E o céu. Basta-nos o nome para lidar
                               com ele.
                                           O céu.

                               Mar inesgotável que desliza no silêncio.




[Excertos de Húmus de Herberto Helder in Poesia Toda 2]

Jean-Baptiste Lully - Passacaille (da ópera Armide)


06 novembro, 2012

Num atropelo foram passando os anos, num sobressalto fomos tomando o gosto, num alvoroço foi-se ganhando o tempo, num tumulto fomos iludindo o nada


Toca-me com a tua mão e diz-me uma palavra. Fecha os olhos e, numa palavra, diz para onde estou a olhar. Beija-me os olhos e, em cada um, pousa uma palavra. Olha o céu e, por cada gaivota que passe, inventa um nome. Em três, dois, um, diz depressa vinte palavras. 

Lembras-te? Passávamos o tempo a brincar com as palavras, lembras-te? 

Olha a cidade ao longe e, por cada casa amarela que vejas, diz uma palavra que tenha a ver com luz.

Boa. E tu, por cada azul, diz uma palavra que tenha a ver com água.

Fácil. E agora tu: por cada casa branca, diz uma palavra que tenha a ver com vento.

Julgas que essa era astuciosa... Mas então, toma lá agora: por cada veleiro que passe diz dez palavras desmedidas. 

Palavras desmedidas?! O que é isso?

Por cada pergunta que faças, diz vinte palavras acalentadas.

Não vale. Não sei o que são palavras acalentadas.

Então, olha o céu e, por cada nuvem, diz palavras apaixonadas, fulgurantes, excessivas. Esta já sabes?

Tanto que brincávamos. Tantas que nem demos pelo tempo. Que interessa? Não pode haver melhor: uma vida feita de palavras, cada palavra um amor, infinitos amores, o amor das palavras, um amor cheio de sedução e prazer, pelas palavras, pela poesia, pela língua portuguesa. Um amor sonhado, adivinhado, excessivo, sem atropelos, sem sobressaltos, sem alvoroços, sem tumultos. Um amor especial, absoluto, um amor carnal que pede, oh se pede, demorados, gostosos beijos de língua - e, por favor, nada de olhos baixos e palavras envergonhadas!



[Aqui abaixo, observa-se o tempo que passa. Ou não. Talvez o tempo pare quando dois seres se detêm a festejar o amor e as palavras. Logo a seguir, Maria Teresa Horta oferece um poema a Vasco Graça Moura. E, logo abaixo, uma gostosa interpretação de uma ópera de Jean-Baptiste Lully]




Em Cacilhas, rente ao Tejo, de frente para Lisboa


                                                          Num atropelo
                                                          foram passando os anos

                                                          Simulando vagares de eternidade
                                                          a burilar os sonhos
                                                          que sonhamos e a acrescentar
                                                          saudades à saudade

                                                          Num sobressalto
                                                          fomos tomando o gosto

                                                          Às infiéis constelações
                                                          das nossas rimas
                                                          no rasto de anjos e paixões
                                                          feitas de fulgores e neblinas

                                                          Num alvoroço
                                                          foi-se ganhando o tempo

                                                          Tecendo o poeta verso a verso
                                                          o corpo da poesia acalentada
                                                          no excesso e no gosto do colher
                                                          sedento a seduzir cada palavra

                                                          Num tumulto
                                                          fomos iludindo o nada

                                                          Na partilha astuciosa do prazer
                                                          numa grande vontade adivinhada
                                                          escrever com a língua portuguesa
                                                          dizendo do país   Poema e asa



['Tempo' de Maria Teresa Horta in 'A vista desarmada, o tempo largo', Antologia, Poemas de homenagem a Vasco Graça Moura]

Jean-Baptiste Lully - Isis (fragmento do filme "Le Roi Danse" no qual se interpreta um fragmento da óprea Isis)


05 novembro, 2012

Lembra-me o tempo em que eu tinha esperança, não havia esta gente medieval, medonha e demente


Houve um tempo em que eu era uma menina que ia com os pais a Lisboa. Nessa altura, Cacilhas era o lugar de embarque, o lugar em que a grande cidade começava a aproximar-se. 

Havia também dias em que o passeio passava por ir almoçar ao Floresta do Ginjal. Acontecia também irmos ao Gonçalves mas, não sei porquê - talvez apenas pelo nome - o que melhor recordo é o Floresta. A escadaria de conchas impressionava a menina que eu era. Havia um senhor cá em baixo e estava bem vestido e era muito simpático. Os meus pais gostavam muito de vir almoçar ao Floresta. Comíamos ameijoas e caldeirada. Talvez comêssemos outras coisas mas estas também são as que melhor recordo. E ficávamos numa mesa encostada à janela de onde se viam os cacilheiros e o rio e Lisboa e as gaivotas. Os meus pais conversavam, felizes, a minha mãe louríssima, olhos muito azuis, sorridente, o meu pai de cabelo liso e muito preto, feliz por nos fazer felizes. E eu olhava os barcos e as gaivotas e fazia mil perguntas.

Talvez nessa altura as casas do Ginjal estivessem bem pintadas, as paredes íntegras, os telhados com telhas. Era um sítio onde eu gostava de passear. Cheirava a maresia, os barcos chegavam e partiam cheios de gente apressada, gente para quem ir e vir de Lisboa era coisa natural. E eu sentia aquela emoção fininha que se alojava no meu estômago de menina. E sonhava com mil futuros radiosos.

Passo agora por aqui, percorro os mesmos caminhos. O restaurante Floresta do Ginjal está degradado, as casas estão arruinadas, correm o risco de cair, os gatos entram e saem de buracos lúgubres, eu já tenho algumas rugas, os cabelos brancos começam a aparecer e olho o futuro com preocupação. 

No entanto, as gaivotas ainda voam, belas e livres, voam, esvoaçam, dançam, pairam sobre este ar tão limpo e tão amplo. E, quando as vejo assim, sou ainda a mesma menina maravilhada porque a verdade, aqui vos confesso, é que as gaivotas me unem ao meu passado feliz e livre (e, confesso-vos também, a menina que eu era ainda vive, intacta, dentro de mim).



[Abaixo das gaivotas que sobrevoam o casario do Ginjal, poderemos desanuviar, fumando ou não, lendo o poema de Helder Moura Pereira e, logo abaixo, um belo momento com uma interpretação especial de uma das obras de referência de J-B Lully.]




Gaivotas sobre as ruínas do casario do Ginjal 




                                          O pássaro que passa na ponte
                                          sobre o Tejo, mesmo defronte
                                          da minha janela escancarada,
                                          não tem penas, não tem nada.

                                          É um míssil, é uma linha
                                          que desenha um arco de emoções.
                                          A roupa no estendal da vizinha
                                          adquire súbitas conotações.

                                          Lembra-me o tempo em que eu
                                          tinha esperança, não havia esta gente
                                          medieval, medonha e demente.
                                          Isto está escuro como breu.

                                          Não é que o pássaro me traga
                                          boas novas, para dizer a verdade,
                                          por sinal uma verdade bem amarga,
                                          há coisas para que não tenho idade.

                                         O impossível aproximava-se devagar
                                         da realidade, o corpo que se abria
                                         e num instante desatava a arfar
                                         nesse instante era boa companhia.

                                         O pássaro só eu é que o via.
                                         Para onde olhava a minha companhia?
                                         Enchia os pulmões de ar
                                         e fumava um cigarro para desanuviar.



['O pássaro que passa' de  Helder Moura Pereira in 'Se as Coisas não Fossem como São']

Jean-Baptiste Lully - William Christie e Les Arts Florissants interpretam ' Les plaisirs ont choisi pour asile....' da Ópera Armide


04 novembro, 2012

Em momentos assim é mais difícil: não dá para disfarçar o peso do mundo


De um lado para o outro, sem esteios, quase vogando sobre as águas, o homem passa devagar. É apenas uma silhueta sombria que atravessa o horizonte. Não olha as águas frias que transportam restos da noite de temporal, não olha a suave cidade que se estende, prendada, laços, pregas e rendas brancas, não olha o céu ainda envolto em nuvens. Nada olha, nada. Avança apenas, num equilíbrio precário, angústias presas na garganta, saudades cravadas nos olhos tão tristes, um vazio no lugar do coração.

Verga-se ao peso da memória, pensamento escurecido, sentimentos perdidos. Poderá até dizer que vai apenas em busca da palavra perfeita, de uma rima imaginária, de uma respiração, de um silêncio entre palavras. Poderá. Mas não será verdade. A verdade é que este homem que anda sobre as águas procura apenas a memória do momento em que tão irremediavelmente se perdeu dos seus sonhos.



[Abaixo do homem que caminha perdido de si próprio, pode ser lido mais um belo poema do Poeta Luís Filipe Castro Mendes, Prémio António Quadros 2012. A seguir, dá-se início à semana dedicada a Jean-Baptiste Lully]



No Ginjal, atravessando uma ponte suspensa sobre o Tejo, Lisboa do outro lado


                                          Em momentos assim é mais difícil:
                                          não dá para disfarçar o peso do mundo.
                                          A angústia enrola-se na garganta como um agasalho usado,
                                          e há toda uma vida (que pretensão!) a clamar por dentro
                                          'porque me abandonaste?'.

                                          Em momentos assim é mais difícil
                                          fingir que só se está a escrever um poema.



['Momento' de Luís Filipe Castro Mendes in 'Lendas da Índia']