Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

26 novembro, 2012

Pode sê-lo de si mesma e tornar-se vazia


Dias de chumbo? Dias de pesada névoa em que não se vê um palmo à nossa frente? Em que mal sabemos para onde vamos?

Dias de nevoeiro, e todos à espera de um D. Sebastião que tarda em chegar? Um país sem rei, sem roque? Em que nem homem ao leme temos? Em que andamos à deriva entregues a um bando de piratas que tomaram de assalto esta nau que por aqui vai deslizando à deriva? 

Por aqui vou, sozinha, neste cais sem navios. Vagueio em silêncio junto a armazéns de beira de água que eram de pescado, agora fechados, degradados, sem serventia. Há quanto tempo não atracam aqui barcos de pesca? Há muito pois há muito que o país se modernizou. 

Metáforas.

A imagem é branca porque a névoa é branca e branca é a página em que escrevo. 

Mas, logo que publique o que estou a escrever, o fundo tornar-se-á de outra cor e tudo mudará de figura. Assim são estes tempos, travestidos, manipulados, virtuais.

Seja.

Metáforas, ainda.

Mas eu sou como a gaivota que atravessa o tule da neblina, fura a espessura do ambiente, e, elevando-se nos ares, solta gritos desvairados. Não desiste e, mesmo que os velhos do Restelo a apontem e digam, enlouqueceu, ela continua, grandes asas brancas bem abertas, solitária, livre. Procura o caminho da luz.

E a luz está lá, esperando que a descubram.

Metáforas. Metáforas. Só metáforas.

(Infelizmente não matam a fome a ninguém. Mas, enfim, ao menos distraem-nos, não é?)




[Sob o manto de névoa, um poema de Fernando Guimarães dedicado a Vasco Graça Moura e, logo a seguir um Capricho de Froberger. Perfeito para um dia assim.]



Avistado de um cais deserto, no Ginjal, cacilheiro atravessa a neblina,
Lisboa difusa lá por trás



                                         Pode sê-lo de si mesma e tornar-se
                                         vazia. O que dela é nosso
                                         veio a ser a sua perda? Ninguém
                                         a pronuncia. Sabemos que só existe
                                         numa página agora branca, quase
                                         transparente. Recebe o sentido
                                         do que se não exprime sequer, e fica
                                         assim: para lhe pertencerem
                                         todas as palavras.



['Metáfora' de Fernando Guimarães in 'a vista desarmada, o tempo largo', antologia, poetas em homenagem a Vasco Graça Moura

6 comentários:

  1. É nisso mesmo, que nos transformámos. Metáforas, apenas e só.
    Mary

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    1. Diz bem, Mary, metáforas, gente que já foi grande.

      Eu, para me consolar ponho-me a pensar que isto é das generalizações nunca corresponde bem à verdade. É como aquilo de dizer que, estando dois amigos a jantar, no fim se dizer que cada um comeu meia galinha quando, afinal, um comeu-a inteira e outro nem lhe tocou.

      Ou seja, que em geral sejamos umas metáforas é como quem diz... eu ainda me acho genuína, de corpo inteiro, capaz de avançar de peito feito. O que vem estragar a médias são os que andam de gatas, lambe botas, os que vendem a alma ao diabo as vezes que forem precisas.

      Mas adiante. Com o sono com que hoje estou até me falta o fôlego para falar destas coisas.

      Um abraço, Mary, mulher de corpo inteiro também.

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  2. Não, o D. Sebastião não volta.
    E outros, que não interessam, não partem.

    Metáforas.

    Não, não matam a fome, mas são importantíssimas no que respeita à preservação da nossa sanidade mental.

    Ah, que belo é o seu Ginjal!

    Abraço.

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    1. Olá GL,

      Não vem nenhum D. Sebastião, pois não, mas da próxima vez que houver eleições tem que se pensar muito bem em quem se aposta...

      Mas numa coisa também eu concordo consigo: melhor que as pequenezas desta vida, é a literatura, a arte em geral, e a nossa boa disposição e o estarmos de bem com a consciência.

      Eu também gosto do estado de espírito que tenho quando aqui estou a escolher os poemas, a música, a escrever, a escolher uma de entre as minhas muitas fotografias.

      Mas hoje estou tão perdida de sono (é quase meia noite e apenas há minutos cheguei a casa) que não consigo aqui escrever nada. Mas fico com pena...

      Um abraço GL.

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  3. Olá, UJM

    Eu, por mim, neste seu Ginjal, venho refazer-me das caminhadas e canseiras da vida. Aqui encontro este tom metafórico que me alimenta a alma, posto que nem só do pão vive o Homem.

    Mas, ainda por cima, não são só metáforas. No seu texto estão bem patentes vestígios do passado e do presente que nos fazem pensar e nos convidam a traçarmos, nós próprios, o nosso rumo e apropriarmo-nos do leme.

    Foto a condizer.

    Belo instante de Fernando Guimarães.

    Beijinhos

    Olinda

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    1. Olinda,

      Também para mim é o meu grande momento de descontração. Nem penso, escolho a música, o poema, a fotografia e, depois, deixo que as palavras se escrevam. É uma coisa que me sabe bem.

      O poema do Fernando Guimarães é muito bom, também gostei.

      Um beijinho!

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