Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

07 novembro, 2012

E o céu. Basta-nos o nome para lidar com ele. O céu.


Suspensos no silêncio, quase imóveis, os homens esperam. Na sua imensa sabedoria, os homens esperam. O tempo avança, as águas correm num frémito de mil brilhos, o céu reflecte o rio, e os homens quase se anulam. Pequeno, pequeno, eu, dizem num dócil e respeitoso murmúrio.

E, na verdade, não se sabe se o tempo avança ou se o tempo está suspenso. Talvez esteja preso às folhas verdes da árvore que cobre a boca de cena, talvez esteja desfeito nos brilhos que cobrem as águas do rio, talvez percorra as veias dos pescadores ou lhes escorra por entre os dedos, tal como o fio que mergulha nas águas, tal como o olhar que busca a nuvem ou a ave.

As águas passam e levam, ocultas, árvores arrancadas, raízes desfeitas, tábuas, telhas, pedras, restos de casas, amores perdidos, levam a morte e a vida, levam a génese e o ocaso, levam palavras que se afogaram em dias de tormenta.

E o céu, silencioso, limpo, cúmplice, olha. Um pano branco, transparente, um regaço macio, um leito de amor, a casa das muitas asas, o último refúgio.

O tempo, a casa, o mar, o céu, o silêncio. A última palavra. O princípio de todas as coisas. O pecado original. O prazer essencial. O imenso tudo e o infinito nada unidos num incestuoso abraço. E, sempre, o silêncio, o longo, longo silêncio.



[As horas caem verdes sobre o rio. E, abaixo, as palavras de Herberto Helder mexem no silêncio que há dentro de nós. Logo depois a Passacaille de Lully]



Tarde no Ginjal, o Tejo coberto de pétalas brilhantes


                              Por trás da imobilidade, horas verdes
                              caem de espaço a espaço
                              - gotas de água no fundo de um subterrâneo.
                              E em volta um círculo de montanhas atentas.
                              No alto da noite côncava e branca,
                              uma camélia gelada. E metem as árvores
                              para o interior
                              a tinta e os ramos.
                                                        Absorção
                              dolorosa, diamante polido, vegetação
                              criptogâmica.
                                                 - O tempo.

                               E o céu. Basta-nos o nome para lidar
                               com ele.
                                           O céu.

                               Mar inesgotável que desliza no silêncio.




[Excertos de Húmus de Herberto Helder in Poesia Toda 2]

2 comentários:

  1. Olá,
    Bonito texto, este envolvendo o céu com toda a sua poesia e de Húmus de Herberto Helder.
    Um grande beijinho nesta noite que já vai alta e o dia a amanhecer.
    ME

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  2. Maria Eduardo,

    A poesia de Herberto helder é qualquer coisa de magnífico, palavras desentranhadas, fortes e belas. é ousadia minha pôr-me para aqui a escrever palavras em volta de poesia assim. Mas, enfim, é a ousadia dos simples...

    Um beijinho, Maria Eduardo.

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