Houve um tempo em que eu era uma menina que ia com os pais a Lisboa. Nessa altura, Cacilhas era o lugar de embarque, o lugar em que a grande cidade começava a aproximar-se.
Havia também dias em que o passeio passava por ir almoçar ao Floresta do Ginjal. Acontecia também irmos ao Gonçalves mas, não sei porquê - talvez apenas pelo nome - o que melhor recordo é o Floresta. A escadaria de conchas impressionava a menina que eu era. Havia um senhor cá em baixo e estava bem vestido e era muito simpático. Os meus pais gostavam muito de vir almoçar ao Floresta. Comíamos ameijoas e caldeirada. Talvez comêssemos outras coisas mas estas também são as que melhor recordo. E ficávamos numa mesa encostada à janela de onde se viam os cacilheiros e o rio e Lisboa e as gaivotas. Os meus pais conversavam, felizes, a minha mãe louríssima, olhos muito azuis, sorridente, o meu pai de cabelo liso e muito preto, feliz por nos fazer felizes. E eu olhava os barcos e as gaivotas e fazia mil perguntas.
Talvez nessa altura as casas do Ginjal estivessem bem pintadas, as paredes íntegras, os telhados com telhas. Era um sítio onde eu gostava de passear. Cheirava a maresia, os barcos chegavam e partiam cheios de gente apressada, gente para quem ir e vir de Lisboa era coisa natural. E eu sentia aquela emoção fininha que se alojava no meu estômago de menina. E sonhava com mil futuros radiosos.
Passo agora por aqui, percorro os mesmos caminhos. O restaurante Floresta do Ginjal está degradado, as casas estão arruinadas, correm o risco de cair, os gatos entram e saem de buracos lúgubres, eu já tenho algumas rugas, os cabelos brancos começam a aparecer e olho o futuro com preocupação.
No entanto, as gaivotas ainda voam, belas e livres, voam, esvoaçam, dançam, pairam sobre este ar tão limpo e tão amplo. E, quando as vejo assim, sou ainda a mesma menina maravilhada porque a verdade, aqui vos confesso, é que as gaivotas me unem ao meu passado feliz e livre (e, confesso-vos também, a menina que eu era ainda vive, intacta, dentro de mim).
[Abaixo das gaivotas que sobrevoam o casario do Ginjal, poderemos desanuviar, fumando ou não, lendo o poema de Helder Moura Pereira e, logo abaixo, um belo momento com uma interpretação especial de uma das obras de referência de J-B Lully.]
Gaivotas sobre as ruínas do casario do Ginjal |
O pássaro que passa na ponte
sobre o Tejo, mesmo defronte
da minha janela escancarada,
não tem penas, não tem nada.
É um míssil, é uma linha
que desenha um arco de emoções.
A roupa no estendal da vizinha
adquire súbitas conotações.
Lembra-me o tempo em que eu
tinha esperança, não havia esta gente
medieval, medonha e demente.
Isto está escuro como breu.
Não é que o pássaro me traga
boas novas, para dizer a verdade,
por sinal uma verdade bem amarga,
há coisas para que não tenho idade.
O impossível aproximava-se devagar
da realidade, o corpo que se abria
e num instante desatava a arfar
nesse instante era boa companhia.
O pássaro só eu é que o via.
Para onde olhava a minha companhia?
Enchia os pulmões de ar
e fumava um cigarro para desanuviar.
['O pássaro que passa' de Helder Moura Pereira in 'Se as Coisas não Fossem como São']
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