Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

04 novembro, 2012

Em momentos assim é mais difícil: não dá para disfarçar o peso do mundo


De um lado para o outro, sem esteios, quase vogando sobre as águas, o homem passa devagar. É apenas uma silhueta sombria que atravessa o horizonte. Não olha as águas frias que transportam restos da noite de temporal, não olha a suave cidade que se estende, prendada, laços, pregas e rendas brancas, não olha o céu ainda envolto em nuvens. Nada olha, nada. Avança apenas, num equilíbrio precário, angústias presas na garganta, saudades cravadas nos olhos tão tristes, um vazio no lugar do coração.

Verga-se ao peso da memória, pensamento escurecido, sentimentos perdidos. Poderá até dizer que vai apenas em busca da palavra perfeita, de uma rima imaginária, de uma respiração, de um silêncio entre palavras. Poderá. Mas não será verdade. A verdade é que este homem que anda sobre as águas procura apenas a memória do momento em que tão irremediavelmente se perdeu dos seus sonhos.



[Abaixo do homem que caminha perdido de si próprio, pode ser lido mais um belo poema do Poeta Luís Filipe Castro Mendes, Prémio António Quadros 2012. A seguir, dá-se início à semana dedicada a Jean-Baptiste Lully]



No Ginjal, atravessando uma ponte suspensa sobre o Tejo, Lisboa do outro lado


                                          Em momentos assim é mais difícil:
                                          não dá para disfarçar o peso do mundo.
                                          A angústia enrola-se na garganta como um agasalho usado,
                                          e há toda uma vida (que pretensão!) a clamar por dentro
                                          'porque me abandonaste?'.

                                          Em momentos assim é mais difícil
                                          fingir que só se está a escrever um poema.



['Momento' de Luís Filipe Castro Mendes in 'Lendas da Índia']


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