Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

30 novembro, 2012

Até ausente soube cercar a terra inteira com seu abraço


Nestes dias de pesado desalento e de medos no horizonte, atravessamos as cidades como cães sem dono. O frio arrepia-nos o pêlo, cosemo-nos às paredes, uns esfaimados, outros protegendo a medo o pouco que têm, olhamo-nos uns aos outros com olhos aflitos. O que vai ser de nós?, murmuramos quase sem voz.

Pensávamos que os mostrengos estavam no meio do mar, temíamos o escuro das profundezas e as tempestades que desciam dos céus para se abaterem sobre nós. 

Aflitos, desprotegidos, percebemos agora que, afinal, desgraçadamente, os mostrengos estão no meio de nós. Aqueles que pensávamos que eram os nossos timoneiros são afinal os verdadeiros monstros, terríveis monstros. Sobre nós abate-se agora a sua impiedosa fúria. Devastam a terra, destroem as embarcações, assaltam-nos, violentam-nos, agridem os velhos, expulsam os jovens. De olhar implacável, sorriso fixo, dentes afiados, sugam o nosso sangue, desprezam-nos, vendem-nos. Somos nada a seus olhos.

Indefesos, os mais fracos encostam-se agora uns aos outros, sem forças, sem lágrimas, apenas medo. Muito medo, um medo cobarde, um medo envergonhado. O medo da fome e da solidão.

Tempos houve em que havia nesta terra gente com visão, com determinação. Nessa altura, fazíamo-nos ao mundo, éramos ousados, galgávamos vales, atravessávamos horizontes, percorríamos os contornos do mundo. Nada nos detinha. Procurávamos o futuro e, pondo a vida em risco, lutávamos pelos mais jovens, pelos mais velhos, pela riqueza, pelo país que sempre amámos.

Mas, entre os que atravessam as ruas ganindo, chorando, tremendo de frio e medo, há alguns, não muitos mas os suficientes, os que não desistem, os que ainda lutam, os que ainda se mantêm de pé, sentindo o sangue quente a correr-lhes nas veias. 

Um dia virá! Um dia virá! Um dia virá!, dizem baixinho, tentando animar os outros. E juntos lá vão.

Acreditam que um dia virá.

Um dia virá! Um dia virá! Um dia virá!



[Abaixo da caravela de pedra que carrega um povo inteiro, encontra-se um poema da Mensagem, no dia em que passam 77 anos desde que Fernando Pessoa passou a observar-nos de longe. Logo a seguir ao poema, uma música muito límpida. É Froberger que se despede.]



O Padrão das Descobertas avistado do Ginjal




                             Dançam, nem sabem que a alma ousada
                             do morto ainda comanda a armada,
                             pulso sem corpo ao leme a guiar
                             as naus no resto do fim do espaço:
                             que até ausente soube cercar
                             a terra inteira com seu abraço.

                             Violou a Terra. Mas eles não
                             o sabem, e dançam na solidão;
                             e sombras disformes e descompostas,
                             indo perder-se nos horizontes,
                             galgam do vale pelas encostas
                             dos mudos montes.



                             ['Fernão de Magalhães - 2ª parte' de Fernando Pessoa in Mensagem]


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