Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

30 outubro, 2012

Perguntaram-me da terra da utopia mas ao longe só vi uma gaivota.


Agora que não sabemos para onde vamos, que sentimos que nos empurram para o temível abismo, diz-me: onde estávamos nós naquela altura em que pensávamos que éramos felizes?

Nesta escuridão medonha, num fosso sem contornos, sem fundo, sem fim nem princípio, pejado de monstros esfaimados, diz-me: onde estás que não me dás a mão, que não me amparas? Diz-me, por favor. 

Pergunto, pergunto, e já é quase só um murmúrio, mas não me respondes. Talvez nem me ouças. A verdade é que não sei de ti, não sei de todos os que comigo desenhavam sonhos, embalavam sorrisos, construiam futuros.

Onde estão todos? Não podem já ter sido todos devorados... Ou foram? Que medo, que medo, que medo, que solidão.

As crianças já quase não nascem, os jovens fogem da casa dos pais, os velhos morrem sozinhos. Que medo. O que é isto?

Tudo aquilo com que sonhávamos era nada? Era uma apenas uma inocente utopia? Era?

Olho o horizonte, procuro vestígios dos tempos felizes de outrora, fiapos de sonhos, qualquer coisa. Nada. Nada. Apenas o vazio, o espanto assombrado do medo, o horrível nada. 

E depois, ao longe, perdida no meio do azul, quase flutuando sobre as águas, uma gaivota. Olhar límpido e honrado, uma gaivota resiste. Forte como as águas, bela como o imenso azul.




[Sob a gaivota perdida no azul, mais um belo poema de Manuel Alegre e, logo abaixo, o lamento da ninfa tal como o ouviu Monteverdi]



Gaivota sobre o Tejo



                                        Perguntaram-me da terra da utopia
                                        mas ao longe só vi uma gaivota.
                                        Da terra da utopia eu não sabia
                                        nem do mar nem do sítio nem da rota
                                        talvez não fosse mais que um sonho que ninguém sonhava
                                        um soluço de Deus um cheiro a maresia
                                        e ao longe uma gaivota que pairava
                                        sobre um ponto no azul sobre utopia.


                                        ['Cais das colunas' de Manuel Alegre in 'Nada está escrito']

*


Do mar 
regressa a traineira
traz tão pouca pescaria...

e à hora certa as gaivotas
em sedenta procissão
(cantarolando o pregão) 
ainda vão acreditando
no peixe de cada dia

e nós
gente viúva
pés cansados mãos atadas
sussurramos "acordai"
ao novo "vento que passa"
confusos neste lugar
onde é pecado sonhar
com a palavra utopia

...e de novo a melodia
" e o vento cala a desgraça" e "o vento cala a desgraça"...



[Poema da autoria da Leitora Era uma Vez, a quem agradeço, no comentário abaixo]


Claudio Monteverdi - Tuuli Lindeberg e o Ensemble Sprezzatura interpretam Lamento della Ninfa


29 outubro, 2012

E era além dessa margem que tu tinhas assento


Chove tanto hoje, tanto, ouço a chuva aqui tão perto de mim; e o vento, como o vento sopra molhado aqui ao meu lado.

Imagino como estará lá em baixo, rente ao rio. Imagino os canaviais, agitados, desalinhados. E as árvores, como estarão? Vergadas? E o rio? Imagino-o a correr negro, desvairado, arrastando árvores, canas, peixes arquejantes, trapos, restos de vida. Ah como são assustadoras as noites assim, cheias de ferozes desmandos.

E o som embravecido das águas a baterem como loucas nas rochas aqui nesta margem? E as gaivotas, ah as gaivotas, onde se abrigarão perante tamanha fúria? Nas conchas das ondas? Nos desvãos das janelas escancaradas? Coitadas. E os gatos? A esta hora devem andar assustados, olhos vazios, rastejando debaixo das ruínas. Pobres pequenos deuses, tão abandonados.

E tu, meu amor? Nesta noite tão escura, tão enlouquecida, onde andas? Procuras-me ainda? Percorres estes caminhos sem destino, ainda chamando por mim? 

Talvez seja tua a voz que me parece ouvir ao longe, talvez seja o meu nome que as ondas levam e que as chuvas deixam cair, ah que tristeza. 

Esperei por ti, sabes, esperei tanto, tanto. Mas não vinhas, o tempo passava e tu não vinhas, amor, e eu tinha medo da noite, do vento, da chuva, da loucura das gaivotas, das garras dos gatos transfigurados pelo medo. Subi, então, as escadas, aquelas escadas que não levam a lado algum, subi e, quando estava lá em cima e tu não vinhas, deixei-me ir, voei, o vento levou-me. 

Estou agora no regaço das nuvens, chorando por ti e por mim. Tanto desalento, meu amor, tanto, tanto.



[Abaixo das escadas que não levam a lado nenhum, poderão ler um belo poema de Vasco Graça Moura e, logo a seguir,  o som sublime das vozes interpretando um novo trecho de Monteverdi]



O romântico pequeno jardim do Ginjal




                                         e havia os canaviais em seu estouvamento
                                         agitava-os a brisa num ondular mais lento
                                         e às vezes desgrenhava-os um furioso vento
                                         e era além dessa margem que tu tinhas assento
                                         lá onde te buscava o meu contentamento.
                                         ia eu mesmo a chegar e foi nesse momento
                                         que a noite nos caiu. ficou o desalento.


                                         ['Allegretto' de Vasco Graça Moura in Poesia reunida]

Claudio Monteverdi - o Eindhoven Vocal Ensemble interpreta Vespers-Sancta Maria


Deus, que tanto demorara, ardia no coração da palavra


Ia chover. Tinha também acabado de chover. Entretanto, um pouco de sol espreitava por entre as nuvens. O rio estava agitado e uma gaivota gritava, gritava lancinantemente, soltava gritos loucos no cimo desta parede arruinada. O vento levava um pequeno veleiro que passava, indefeso e destemido, numa correria.

Do chão molhado vinha um cheiro a primeiras águas misturado com uma maresia húmida e fresca. E a gaivota continuava a soltar, ao vento, desesperados gritos, enchendo, assim, o espaço de drama. É outono. Há muito que o verão se foi. É outono e este local veste-se de uma luz intemporal, de sons puros, bárbaros, de uma alegria misteriosa, de uma alegria que temos vontade de esconder.

Ando por aqui, respiro o perfume das ondas, lavo o olhar no linho espesso das velas, roço as mãos nas paredes gastas onde a vida se deteve. Reparo, então, que não estou só. Uma outra, como eu, olha agradecida as águas que correm, escuta o chamamento da gaivota enlouquecida, espera a chuva. Espera. Choveu e vai voltar a chover e ela abriga-se, os olhos lavados, o olhar frontal, aberto. Em volta dela voam as palavras molhadas pela maresia, pela chuva, as palavras que contêm a voz silenciosa dos deuses.

Olhamo-nos nos olhos, reconhecemo-nos, somos iguais, mulheres frágeis e livres.




[Abaixo da gata do Ginjal, poderão ver um belo poema de Eugénio de Andrade que me foi enviado por uma leitora a quem muito agradeço e, logo abaixo, um momento muito especial: música, canto e dança - é Monteverdi que abre esta semana]


Gata vadia, no Ginjal, abrigada sob uma janela em ruínas



                                 As primeiras chuvas estavam tão perto
                                 de ser música
                                 que esquecemos que o verão acabara:
                                 uma súbita alegria,
                                 súbita e bárbara, subia e coroava
                                 a terra de água,
                                 e deus, que tanto demorara,
                                 ardia no coração da palavra.


                                 ['As primeiras chuvas' de Eugénio de Andrade, in Rente ao Dizer]

25 outubro, 2012

Quando Outubro já desiste e um dia parece desolado


Outubro está a chegar ao fim, entre aguaceiros, relâmpagos que rasgam os céus, com um vento que arrasta as folhas mortas e ensopadas. Escrevo numa sala escura, com um pequeno foco de luz sobre as minhas palavras, rodeada de livros. E ouço, na janela ao meu lado, o som constante, o som líquido e fraternal da chuva. Sinto-me tão bem aqui, junto de vós.

Mas no outro dia o céu estava limpo, o rio estava quase artificialmente azul, um pequeno barco enfeitava a paisagem dando-lhe um toque inocente, um pequeno barco desenhado por uma criança.

Neste sítio há um restaurante que paira sobre as águas, que espreita Lisboa, a magnífica, que oferece aos felizes da vida a perfeita ocasião para justificarem a sua felicidade.

Mas, por aqui, pairam também os pescadores mais pobres, os que esperam um peixe para terem o que comer, e pairam os abandonados que olham o rio para disfarçar as lágrimas sofridas, e pairam os velhos saudosos que imaginam alegrias passadas e pairam os gatos vadios e pairam as gaivotas livres e belas.

E pairam também as mulheres como eu e como elas, gatas vadias, gaivotas sonhadoras, mulheres livres. Passam por aqui para respirar o dia que vivem, para guardarem dentro de si o azul, o grande espaço, a bela cidade, para esquecerem as tristezas, os enganos, os abandonos, para inventarem as palavras que, depois, à noite, nos dias de vento e chuva, colocam aqui, como oferendas - para vós, meus queridos amigos que nunca, nunca serão intrusos nesta minha casa feita de palavras.



[Abaixo do homem que anda sobre o Tejo, poderão conhecer o reflexo de José Alberto Oliveira e, logo a seguir, a bela música de Pergolesi. Talvez seja boa ideia ir já pôr a música a tocar para, então, voltar aqui e melhor saborear as palavras, que a poesia sabe melhor quando acompanhada com boa música]



Restaurante no Ginjal, mesmo sobre o Tejo, bem de frente para Lisboa



                                            Quando Outubro já desiste
                                            e um dia parece desolado, como a terra
                                            dos mortos, onde flores sem cheiro
                                            acenam levemente às rajadas de vento,
                                            a tua cara já perdida pelas ruas,
                                            um intruso verifica com minúcia
                                            a ementa do restaurante. Não tem
                                            dinheiro, nem tem vontade, lamenta
                                            apenas não poder adiar ou esquecer.
                                            O quê? É quase certo que não saiba
                                            e também isso gostaria de adiar. Ou esquecer.



                                           ['Reflexo' de José Alberto Oliveira in 'Tentativa e Erro']

Giovanni Battista Pergolesi - Giulia Pattaro interpreta Salve Regina e Ad te clamamus


24 outubro, 2012

As coisas livres ficaram escritas no chão


Enquanto caminho, rolam palavras soltas, rolam e vão despenhar-se nas águas do rio. Saem do meu corpo ferido estas palavras, escorrem como sangue. Não tento estancá-las, sei que não o conseguiria. O meu coração tem um rasgo de onde jorram as saudades e todas estas tristezas agora sem dono.

O teu nome está preso num recanto deste meu coração dilacerado. Gostava que saísse, que saísse arrastado juntamente com o sangue sem cor, com as palavras que se vão afogar. Mas ele não sai porque agora esse nome pertence também a outra mulher que muito amo.

Olho a grande e bela cidade, olho o rio e lembro os dias em que o teu nome saltava junto a nós e era uma alegria, o teu nome e o meu nome, abraçados, beijando-se em segredo, escondidos da luz que vem da água.

Dizia o teu nome e dizia amor e tu rias e dizias esta é a nossa casa e os pássaros vinham do mar fazer a festa das palavras. Nesses dias o tempo parava, esperava que o amor entrasse bem na nossa pele inocente. Recordo o teu rosto, era calmo e feliz, e recordo o teu corpo, era dedicado, disponível, e recordo o teu sexo, era doce, tão doce.

Longe esses ternos dias.

Agora todas as palavras acabaram. Mas ficou o mais importante, ficou a menina, feliz e livre, que ali mais à frente brinca, subindo às árvores e desafiando o rio, a menina que tem os teus olhos e a quem demos o teu nome. 



[Abaixo da imagem do homem que olha o rio e a magnífica cidade, Inês Fonseca Santos fala das coisas livres. E, logo a seguir, começa a semana dedicada ao compositor Giovanni Battista Pergolesi, músico que viveu (apenas durante 26 anos) no século XVIII]



Caminhando junto ao Tejo, de frente para Lisboa, numa bela tarde no Ginjal



                                              Havia várias formas de chamar-te.
                                              Chamar-te não era apenas dizer o teu nome.
                                              Muito menos fazer-te virar a cabeça na direcção da casa.
                                              Era conhecer-te o rosto - dedicado, disponível, raro.

                                              As coisas livres ficaram escritas no chão.


                                              ['As coisas livres' de Inês Fonseca Santos in 'As coisas']


Giovanni Battista Pergolesi - A soprano Anna Netrebko e a mezzosoprano Marianna Pizzolato interpretam Stabat Mater dolorosa


19 outubro, 2012

No dia da morte de Manuel António Pina - Um dia será ele quem nos dará a mão


Hoje, uma vez mais, Manuel António Pina visita o Ginjal e Lisboa. É a décima sexta vez. E muitas mais vezes contarei com a suave presença dele, aqui ao meu e ao vosso lado.

A sua voz límpida, que é a voz pura de um homem livre e bom, é-me indispensável. As palavras de Manuel António Pina traçam caminhos de luz que abrem o meu caminho, que me levam pela mão. Espero que ele nunca se canse de mim. 

Neste dia em que a notícia da sua morte me encheu de tristeza, às pessoas que, tal como eu, se sentem iluminadas com a sua poesia, deixo aqui a promessa de, na fraca medida das minhas possibilidades, deixar de vez em quando aqui um poema seu que para mim será como uma vela que tentarei manter acesa, para que as suas palavras iluminem o Ginjal e Lisboa, iluminem as nossas vidas.

Até sempre, querido Poeta.



No Ginjal, homem silencioso caminha à frente dos meus passos



                                   Há nisto um sentido insone, um habitante silencioso
                                   caminhando à frente dos nossos passos,
                                   dormindo na cama a nosso lado,
                                   comemos a sua comida, as nossas próprias palavras não nos pertencem;

                                   uma casa dentro de uma casa,
                                   uma coisa viva e palpável como a morada de um cego
                                   tocando-nos levemente com receio de acordar-nos.

                                   Um dia será ele quem nos dará a mão
                                   e nos conduzirá por passagens interiores
                                   para dentro de casa,
                                   onde há tanto tempo cansadamente esperamos.


['Talvez de noite', 3, de Manuel António Pina in 'Todas as palavras']

18 outubro, 2012

Anjos, existem anjos?


Nestes dias de chumbo, em que a tragédia do fim parece abater-se sobre os pobres mortais que tentam sobreviver na terra, como se um céu carregado de um insuportável e medonho peso desabasse sobre nós, percorro a diagonal que me leva para mais perto do horizonte. Procuro, talvez, uma aresta onde ainda perdure um resto de leveza.

Se olho o céu, procurando anjos, nada vejo. O céu ora está limpo e sem nuvens onde os anjos se empoleirem, ora está carregado, nada apropriado para seres diáfanos e subtis. Não há anjos no céu.

Percorro as margens do rio e o meu olhar voa pela superfície das águas, talvez algum anjo se tivesse vindo aqui refrescar. Não, nada. Olho as paredes de pedra, olho os barcos que passam. Nada, nenhum anjo. Olho as gaivotas que dançam levadas pela brisa da tarde, espreito as longas asas brancas, talvez alguma transporte um pequeno anjo. Mas não, anjo nenhum.

Baixo os olhos, caminho em silêncio, quase sem esperança.

Passam, então, dois namorados. Falam baixinho, sorriem, vão abraçados, têm corpos saudáveis e jovens, peles certamente macias, olhos certamente felizes, corações certamente apaixonados. Olho-os com ternura. Tanta paz. 

E o rio fica mais azul e o céu mais quente e é como se, à sua passagem, se abrisse um caminho de luz.

São estes os anjos que eu procurava. Anjos de verdade, inocentes, doces, crédulos, cheios de vida. Eis que andam como se voassem, eis que quase deslizam sobre as águas, rumo à luz mais dourada, levados pelos sonhos. Sinto que, atrás deles, vai ficando um perfume muito suave, talvez seja o subtil perfume da esperança.

E, olhando-os, sinto em mim a doçura da vida, o enlevo contagiante do amor.

Procuremos, pois, os anjos na terra. A sua presença enche-nos de vida e de sonhos.




[Já aqui abaixo poderão ler mais um belo poema de António Ramos Rosa e, logo a seguir, mais uma música de Franz Biber]



Passeando à beira Tejo, ao fim de uma tarde, então, ainda quente



                                        Anjos, existem anjos? Volúveis seres
                                        que são um instante de voluptuosa brisa
                                        em que o tempo é a forma do desejo
                                        e do sono das folhas e das águas.
                                        Anjos, sim, de terra, que segredam
                                        a argila dos nomes, o movimento azul
                                        do ar. Na sua companhia eu sou o vento
                                        e o meu hálito confunde-se com as suas vozes.


                                       ['Anjos de terra' de António Ramos Rosa in Antologia Poética]

16 outubro, 2012

Irás descendo a um poço, uma vertigem


Sobes, Poeta, ao ponto mais alto de ti. 

Aí o ar é fresco, quase rarefeito o ar, tão belo o horizonte que abarca, tão bela a paisagem que envolve, tão insignificante o pequeno mundo, tão próximas as nuvens. 

Olhas em volta e tocas o céu. Um frémito te percorre, Poeta. Ou é do ar azul que respiras ou é das palavras que voam à tua volta. Olhas o vasto espaço e dizes vento, ar, longe, mar, asa, transparência, luz, água - e as palavras vão-se juntando sozinhas.

Aqui onde estás, Poeta, este ponto, o vértice do mundo, é a Boca do Vento.

Cá em baixo corre o rio e parece uma pintura infantil, e os barcos parecem pequenos, cheios de pequenas figurinhas. Enches o peito de ar, queres estar sempre aqui, no meio de um céu generoso, dentro da Boca do Vento.

Mas depois, Poeta, vem aquela força que te impele para o centro de ti próprio e queres mergulhar, procurar outras palavras, palavras que tenham a sombra por entre as sílabas, que tenham dentro de si escuridão, silêncio, ou uivos, ou dor, ou finitude, ou tristeza, ou solidão

E, então, abeiras-te do abismo, e as palavras começam a misturar-se, um remoinho à tua volta, e são agora desejo, sangue, infinitos beijos, corpo, mãos, sexo, fim, princípio, ciúme, paixão, traição.

E, quando dás por ti, já uma vertigem fatal te puxou para o poço mais escuro, mais fundo, mais insondável.

Em busca da palavra mais perfeita, Poeta, mergulhas, perdido, rendido à fatalidade da poesia.

Quando, por fim, chegas ao fundo não abres os olhos, Poeta, achas que os perdeste na queda. Não vês, portanto, a fantástica luz que subitamente o ilumina.



[Abaixo da imagem do homem que se lançou no espaço, poderão ver mais um poema de José Bento, um Poeta 'cá muito de casa', é já o 14º poema aqui no Ginjal. E, logo a seguir, uma nova interpretação de uma sonata de Franz Biber.]



Buddy Jumping na Boca do Vento sobre o Ginjal



                                         Os poemas que escrevas,
                                         ainda que muitos, são
                                         um só, inacabável,
                                         interceptado um dia:

                                         sufocante abertura
                                         por onde irás descendo
                                         a um poço, uma vertigem,
                                         com uma única saída

                                         que, enfim, vislumbrarás
                                         quando já não tiveres olhos.


                                         [Poema nº5 de José Bento in Sítios]

Heinrich Ignaz Franz Biber - Lina Tur Bonet (no violino), Enrike Solinís, Patxi Montero, Daniel Oyarzábal interpretam a Sonata Rosenkranz nº 4


15 outubro, 2012

Que o teu seio se desvele, que a tua mão, suada e suave, se entregue


A mulher espera um homem nesta tarde azul, espera-o junto ao rio que lhe lava o olhar. Lava-se toda olhando este azul tranquilo para que ele, o seu amor, a encontre de olhar lavado, limpa, límpida.

Olha o céu que reflecte o azul do rio, olha o navio que se vai, olha a ponte ao longe. Olha e espera-o.

Virá, ela sabe. Virá e olhará os seus olhos de amor, olhará a sua boca, olhará os seus seios, olhará as suas pernas, olhará a curva da sua anca, o segredo do seu decote. Chegar-se-á e aspirará o perfume do seu cabelo, o perfume do seu pescoço, o perfume dos seus seios. 

E ela deixará que ele se chegue, que a cheire, que a olhe, que a desvende, que percorra o seu corpo todo com o olhar, com as mãos, com o corpo.

Talvez até ele nem tenha que vir, talvez ele nem tenha que fazer nada, talvez ela suba a rua pela tarde, suba o rio, vá no navio que desliza, vá até onde o seu amor a espera. E talvez o encontre puro e desvalido, talvez o encontre incendiado, a voz silenciosa, tomada pelas rosas do desejo. Talvez, então, ela se descubra perante ele, e suave, suavemente derrame sobre ele o mel, o fogo, o orvalho da maresia, os perfumes da floresta, os beijos, a pele, a seiva, o sangue mais puro do amor.

Porque assim é o amor, secreto, sereno, puro.



[Abaixo do belo poema que copiei do blogue Homo Viator, poderão encontrar uma música de um compositor que desconhecia e que um Leitor, em boa hora, me deu a conhecer, Franz Biber]



Junto ao Tejo vendo as águas que correm, o tempo que passa



                              Que o teu seio se desvele, que a tua mão,
                              suada e suave, se entregue, que a tua boca
                              se abra, e língua e lábios sejam mel, fogo,
                              orvalho matinal, o ar da floresta.

                              E pura e desvalida, te entregues,
                              na noite fria e calma, ao desejo
                              que os teus olhos nos meus incendiaram,
                              que os seios brancos e cálidos atearam.

                              Espero-te na tarde azul e pálida.
                              Uma ânsia fere o peito, rasga-me a pele,
                              rompe-me as veias e o sangue frio se esvai.

                              Quando oiço os teus passos, quando a voz,
                              serena e pura, chama já por ti,
                              uma rosa de seda ergue-se em mim.


['Que o teu seio se desvele, que a tua mão' de Homo Viator no excelente blogue homónimo aqui]

10 outubro, 2012

A luz da manhã na pele nua. Uma sede crescente.


Olhas-me com olhos doces, húmidos. Conheço esse teu olhar. Desejas-me. É desejo o que banha o teu olhar. E, meu amor, como eu gosto de o sentir.

O sol incide no rio, oblíquo, e a luz desliza, suave, e vem dourar as velhas paredes deste casario. Caminhamos rente a estas paredes que guardam sorrisos e suspiros, e o teu olhar oblíquo vem carregado de flores, de beijos, de carícias.

Sorrio. Gosto de percorrer os caminhos da luz, os caminhos que ateiam a sede dentro de ti. E dentro de mim. Nestas horas de calor e luz o meu corpo abre-se como uma flor sedenta. E, quando te olho, sinto que o meu olhar também escorre de desejo, de sedento desejo. E escuso de te dizer que estou à espera que venhas matar a sede do meu corpo. Junta o teu amor à luz que sobre mim se derrama. 

Vem.



[Abaixo da imagem de um amor suave, abaixo também do belo poema de Casimiro de Brito, poderão encontrar uma bela interpretação da Bacanal de Saint-Saëns]


Passeio junto ao Tejo, rente ao casario do Ginjal


                                            A luz da manhã na pele nua.
                                            Uma sede crescente.
                                            As alfaias do amor vacilam.
                                            Abres os olhos, deixas correr
                                             a água infinita,
                                             um fio apenas
                                             no meu corpo que foi árido.
                                             A luz envolve-te ou és tu quem nela
                                             se derrama?


                                             [Poema 100 - I de Casimiro de Brito in 'Amar a vida inteira']

*


Sei lá...

Trazes no olhar um encanto de sol pôr
e o mistério do dia que amanhece
fosses tu apenas sombra
e eu saberia adivinhar-te...
(Esquece)
sou eu a divagar coisas que a vida decide e tece
ou escreve
na areia
no mar
nas ruas mais estreitas da cidade

e eu adivinho
vagamente encandeadas
a tua luz e a minha
cruzando eternidade


[Da autoria de Era uma Vez num comentário aqui abaixo]



*


Ainda vens longe
Eu logo adivinho
Como vais chegar.
Se triste ou cansado,
Se calmo e tranquilo,
Eu abro os meus braços
Para te abraçar.
E é nesse abraço
Que tudo se diz
Leio-te tão bem
Nem tens de falar. 


[Da autoria de Maria num comentário aqui abaixo]


Camille Saint-Saëns - Gustavo Dudamel conduz a Berliner Philharmoniker na Bacchanale de Samson and Delilah


09 outubro, 2012

O vento do mar já conseguiu acalmar muitos corações mas os nossos não


Deito-me ao teu lado, imóvel, silenciosa. E tu imóvel e silencioso estás. Estes são dias em que grandes perigos se fazem anunciar. Estamos vivos, respiramos, mas nada dizemos, não nos mexemos. Por defesa? Por medo? 

Tempos houve, era primavera, era verão, e nós rolávamos felizes pelas dunas, dormíamos nas tardes de calor, não tínhamos pressa nem receios. A vida abria-se à nossa frente como uma planície feliz, ilimitada, e todos os futuros eram nossos.

Mas, enquanto dormíamos ou ríamos, um monstro saído não se sabe de onde, arrasou as planícies floridas, roubou as casas, assaltou os indefesos, afugentou os jovens, destruiu sonhos, queimou estrelas, afogou o sol.

Há ainda alguns velhos caídos nos cantos de casas arruinadas, há ainda alguns gatos perdidos nas escarpas, mas já são poucos e estão esfaimados. E ainda estamos também nós, calados, parecendo mortos, aguardando a fria e horrenda calamidade.

A cada dia que passa, a escarpa de pedra desolada vai caindo, empurrada pelo monstro maldito, sobre as poucas casas que restam. 

Tempos houve em que o vento acalmava os nossos corações que corriam como cavalos soltos, alegres. Agora, aqui deitados, ouvimos o vento sombrio, escuro, e é um silvo que anuncia novos horrores e que ouvimos petreficados.

Mas eis que, inesperadamente, uma pequena mão afasta a porta e chama por nós. Abrimos os olhos, soerguemo-nos. Um rosto de criança sorri, olhos inocentes, voz inocente. Levantamo-nos, então, e uma estranha força toma conta de nós. Pela criança que nos despertou iremos travar a escarpa que nos quer esmagar, pela criança que resistiu aos tempos de desespero iremos lutar contra o monstro, iremos lutar nem que essa seja a nossa última luta, nem que morramos a lutar.


[Abaixo da fotografia do Ginjal, temos um poema do novíssimo livro de José Tolentino Mendonça, o Padre Poeta e, logo a seguir mais um trecho de Saint-Saëns, e, de novo, violoncelo]


Escarpa do Ginjal tombando sobre o casario, até ao Tejo



                                 Cruzámos os dias de Verão
                                 o destino perseguia-nos com um ímpeto relutante
                                 a listar calamidades
                                 numa ascensão
                                 por escarpas que tínhamos julgado a salvo

                                 Corríamos o litoral com a nossa turbulenta forma
                                 ou deixávamo-nos imóveis a ponto de parecer mortos
                                 entre beleza, sobreposição e perigo
                                 sem grande esclarecimento
                                 a noite despenhava-se
                                 no silêncio da corrente

                                 O vento do mar já conseguiu acalmar muitos corações
                                 mas os nossos não



                                 ['Escarpas' de José Tolentino Mendonça in 'Estação Central']

Camille Saint-Saëns - Daniel Gaisford interpreta o Concerto para Violoncelo (parte 3)


08 outubro, 2012

A antiga casa que os ventos rodearam com suas noites de espanto e de prodígio


Habito as casas em que vivo e as que habitam a minha memória. 

Lembro-me de uma casa, a primeira, à qual, no fim do verão, iam homens e mulheres mondar as espigas de milho, sentados no chão, e cantavam e riam. Nessas alturas havia muito pó no ar e devia haver conversas e anedotas de adultos e os meus pais não me queriam lá mas eu arranjava sempre maneira de me infiltrar e, sorrateiramente, ir ficando. 

Junto a essa casa passava um ribeiro com uma água muito cristalina que corria sobre os seixos. Esse ribeiro era motivo de muitos medos dos meus pais que não queriam que eu fosse brincar para perto e, no entanto, a água que saltitava nas pedras e a sua frescura eram uma tentação a que eu não conseguia resistir. E havia eucaliptos que enchiam o ar de pureza e que tinham uma flor branca que parecia que tinha uns fiozinhos brancos e uns chapelinhos. E havia uns gatos que apareciam por lá e que não tinham dono mas que eram alimentados por todos, deixava-se um pratinho com sopinhas de leite ou restos de peixe. E havia umas gémeas mais velhas que eu e com quem eu adorava brincar e que costuravam roupinhas para as bonecas e para os gatos. E havia pirilampos que eu e os meus pais apanhávamos à noite e que eu punha debaixo de um copo, e, no dia seguinte, os pirilampos tinham-se transformado em moedas para o meu mealheiro. 

A casa era toda branca, por dentro e por fora. Mas um dia a minha mãe quis pintar a casa de banho de verde água, um verde muito claro e a minha mãe estava toda contente com essa alteração e o meu pai todo contente por ter feito a vontade à minha mãe e ela queria ainda mais claro e eu andava de roda deles e também toda contente porque aquele verde água era lindo e a casa de banho estava mesmo muito bonita, a luz ficava mais suave.

E lembro-me ainda da minha cama nessa casa e era uma cama pintada de uma tinta que a minha mãe chamava casquinha de ovo e, na cabeceira, havia uma menina sentada numa lua e a lua estava presa à cama por uma fita de cetim cor de rosa. E a menina e a lua eram de prata e tinha sido uma oferta dos meus padrinhos. E quando comecei a ler, tinha um livro que se chamava A menina da Lua e, pelo livro e pela menina sentada na lua, o meu pai começou a chamar-me menina da lua e eu gostava muito porque era isso mesmo que eu me sentia.

E essa casa tão luminosa e tão dentro da natureza ainda corre em mim e atravessa sempre os meus sonhos como um rio feito de doçura e afecto.



[Para acompanhar este texto evocativo da infância e o belo poema, mais um, de Sophia, abro a semana que vou dedicar a Camille Saint-Saëns com o Cisne, um belo trecho em violoncelo]


Anoitecer no casario do Ginjal



                                                A antiga casa que os ventos rodearam
                                                com suas noites de espanto e de prodígio
                                                onde os anjos vermelhos batalharam

                                                A antiga casa de inverno em cujos vidros
                                                os ramos nus e negros se cruzaram
                                                sob o íman dum céu lunar e frio


                                                Permanece presente como um reino
                                                e atravessa meus sonhos como um rio


                                                ['Casa' de Sophia de Mello Breyner Andresen in Geografia]


Camille Saint-Saëns - Mischa Maisky interpreta The Swan (em Carnival of the Animals)


04 outubro, 2012

Como se ontem e os dias antes de ontem se tivessem desfeito sobre as prateleiras


Saíste de casa e desapareceste da minha vida. E eu fiquei sozinha num lugar que, antes, pensava que era o nosso secreto e querido abrigo. 

Agora o tempo passa por mim, pelas molduras que ainda contêm as nossas fotografias, pelas cortinas que já não se afastam das janelas, agora o pó do tempo junta-se sobre as prateleiras como se não fosse senão a sombra dos dias que vivemos.

Sento-me sozinha, em silêncio, nesta casa desolada e olho os vestígios de ti feitos pó. Podia escrever palavras de amor nesse pó. Escreveria talvez vem. Nada me ocorre para além dessa súplica. Mas não escrevo, sei que tu não vens.

Mas hoje a minha vida vai mudar. Mais logo, mal a noite se desfaça e eu sinta que está a amanhecer, sairei de novo e irei, uma vez mais, pela beira do rio.

Sei, agora já sei, que todo a nossa vida se desfez, está feita em pó inútil, sei que algures, nas nuvens que cobrem o céu, estão as cinzas dos nossos dias. E, então, vou esperar que passe uma gaivota para que ela te leve as minhas palavras. E as minhas palavras, a partir de agora, são estas: não voltes, não preciso de ti, és não mais que uma sombra, a minha casa não precisa de quem se transforma em cinza, a partir de hoje sou uma mulher livre e uma mulher livre não tem espaço no seu coração para homens feitos de pó. 



[Corelli está a despedir-se e despede-se com uma sessão no Porto. Está já aqui abaixo, logo a seguir a um poema de José Luís Peixoto]


Gaivota atravessa um céu coberto de nuvens no Ginjal



                                  Como se ontem e os dias antes de ontem
                                  se tivessem desfeito sobre as prateleiras,

                                  como se pudéssemos escrever palavras
                                  nas suas cinzas com a ponta do dedo,

                                  como se bastasse soprar para vermos
                                  as suas imagens de novo, numa nuvem.


                                  ['Limpar o pó' de José Luís Peixoto in 'Gaveta de papéis']
                               

Arcangelo Corelli - Horia Vǎcǎrescu, violino e Constantin Sandu, piano (no Clube Literário do Porto) interpretam Variações sobre o tema La Folia


03 outubro, 2012

e eu a pensar ainda uma palavra tua e eu serei salva


Ainda sentia o cheiro da tua pele em mim, quando reparei na porta aberta. Tinhas ido. Chamei-te, queria, ao menos, despedir-me, pedir-te um beijo, um adeus, a promessa de uma carta. Mas já não me ouviste. 

Saí, então, fui pela rua, segui o teu rasto, fui pelo teu cheiro, pela lembrança das tuas palavras. Mas não te encontrei.

Segui os caminhos que eram nossos, fui pela beira do rio, e já era fim de dia, e eu sem saber de ti. Segui o silêncio das casas vazias, segui a corrente do rio, procurei que passasse um barco ou, até, uma gaivota. Mas não passava nem um barco, nem uma gaivota e tudo era silêncio. Nem um sinal de ti.

Caminhei então em direcção às águas, entrei pelo rio adentro, e pedi baixinho, diz uma palavra, uma que seja, não te vás sem uma palavra, não deixes que eu pense que já nada fazia sentido. 

Meu Deus, será que é isso, já nada fazia sentido?



[Abaixo do belo poema de Alice Vieira, temos ainda Corelli e, uma vez mais, vos sugiro que desarrumem a ordem dos factores: talvez o texto e o poema soem melhor ao som de Corelli.]


Fim de tarde no Ginjal, bem rente ao Tejo



                         a porta entreaberta a prolongar
                         os teus passos       os castanheiros      a cidade em chamas
 
                         a minha voz a prometer-te uma carta
                         (prometo sempre cartas a quem se perde
                         entre o meu corpo e os patamares das escadas
                         de países desconhecidos)

                          mas tu já não ouviste ou então
                          tudo tinha deixado de fazer sentido

                          e eu a pensar ainda
                          uma palavra tua e eu serei salva



[Poema 5 de 'Cinco breves momentos de Maio' de Alice Vieira in 'Dois corpos tombando na água']

Arcangelo Corelli - Maurice Steger e a Chamber Artists Orchestra (CHAARTS) interpreta o Concerto No. 4 para Flauta


02 outubro, 2012

Ela vinha de preto e resplandecia porque era a própria noite que a vestia


E se me visto de preto é para que saibas, amor, que é de noite que te quero falar.

E se me sento sobre este rio brilhante é para que saibas, amor, que quero em ti navegar ou que navegues tu em mim, amor.

E se espero a chegada da lua, sabes para que é, amor?

Então escuta, eu vou dizer-te baixinho, escuta. Deixa que te encoste os lábios ao ouvido para que só tu me ouças, deixa.

É para que me dispas o vestido preto, para que deixes que o fogo no rio se apague e para que o luar sobre ele espalhe um fino lençol de prata.

Mas, amor, não tenhas pressa.

Despe-me o vestido preto devagarinho e deixa que a noite me cubra a pele e deixa que o luar me vista de pecado.

Depois vem, vamos deitar-nos aqui sobre as águas, vamos pecar, vamos pecar com alegria, com vagarosa alegria.

Noite sem pecado, amor, tu sabes, não é noite que eu vista nestas noites de luar.



[Já aqui abaixo da mulher de preto de Manuel Alegre, encontrarão a música de Corelli, mais um compositor barroco aqui no Ginjal]


Pôr do sol no Ginjal, sobre o Tejo



                             Ela vinha de preto mas trazia
                             a noite pendurada no vestido.
                             Porém não era luto mas alegria
                             ou a cor do pecado anoitecido
                             ou talvez fosse a lua que nascia
                             na parte do seu rosto mais escondido.
                             Ela vinha de preto e resplandecia
                             porque era a própria noite que a vestia.


                             ['Mulher de preto' de Manuel Alegre in 'Nada está escrito']

Arcangelo Corelli - O Ensemble Laura Soave interpreta o Concerto Grosso op. VI



Ensemble Laura Soave
(Claudia Combs and Nicholas Robinson, violins, Diego Cantalupi, theorbo, and Davide Pozzi, harpsichord)