Agora que não sabemos para onde vamos, que sentimos que nos empurram para o temível abismo, diz-me: onde estávamos nós naquela altura em que pensávamos que éramos felizes?
Nesta escuridão medonha, num fosso sem contornos, sem fundo, sem fim nem princípio, pejado de monstros esfaimados, diz-me: onde estás que não me dás a mão, que não me amparas? Diz-me, por favor.
Pergunto, pergunto, e já é quase só um murmúrio, mas não me respondes. Talvez nem me ouças. A verdade é que não sei de ti, não sei de todos os que comigo desenhavam sonhos, embalavam sorrisos, construiam futuros.
Onde estão todos? Não podem já ter sido todos devorados... Ou foram? Que medo, que medo, que medo, que solidão.
Onde estão todos? Não podem já ter sido todos devorados... Ou foram? Que medo, que medo, que medo, que solidão.
As crianças já quase não nascem, os jovens fogem da casa dos pais, os velhos morrem sozinhos. Que medo. O que é isto?
Tudo aquilo com que sonhávamos era nada? Era uma apenas uma inocente utopia? Era?
Olho o horizonte, procuro vestígios dos tempos felizes de outrora, fiapos de sonhos, qualquer coisa. Nada. Nada. Apenas o vazio, o espanto assombrado do medo, o horrível nada.
E depois, ao longe, perdida no meio do azul, quase flutuando sobre as águas, uma gaivota. Olhar límpido e honrado, uma gaivota resiste. Forte como as águas, bela como o imenso azul.
[Sob a gaivota perdida no azul, mais um belo poema de Manuel Alegre e, logo abaixo, o lamento da ninfa tal como o ouviu Monteverdi]
Gaivota sobre o Tejo |
Perguntaram-me da terra da utopia
mas ao longe só vi uma gaivota.
Da terra da utopia eu não sabia
nem do mar nem do sítio nem da rota
talvez não fosse mais que um sonho que ninguém sonhava
um soluço de Deus um cheiro a maresia
e ao longe uma gaivota que pairava
sobre um ponto no azul sobre utopia.
['Cais das colunas' de Manuel Alegre in 'Nada está escrito']
*
Do mar
regressa a traineira
traz tão pouca pescaria...
e à hora certa as gaivotas
em sedenta procissão
(cantarolando o pregão)
ainda vão acreditando
no peixe de cada dia
e nós
gente viúva
pés cansados mãos atadas
sussurramos "acordai"
ao novo "vento que passa"
confusos neste lugar
onde é pecado sonhar
com a palavra utopia
...e de novo a melodia
" e o vento cala a desgraça" e "o vento cala a desgraça"...
[Poema da autoria da Leitora Era uma Vez, a quem agradeço, no comentário abaixo]