Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

04 outubro, 2012

Como se ontem e os dias antes de ontem se tivessem desfeito sobre as prateleiras


Saíste de casa e desapareceste da minha vida. E eu fiquei sozinha num lugar que, antes, pensava que era o nosso secreto e querido abrigo. 

Agora o tempo passa por mim, pelas molduras que ainda contêm as nossas fotografias, pelas cortinas que já não se afastam das janelas, agora o pó do tempo junta-se sobre as prateleiras como se não fosse senão a sombra dos dias que vivemos.

Sento-me sozinha, em silêncio, nesta casa desolada e olho os vestígios de ti feitos pó. Podia escrever palavras de amor nesse pó. Escreveria talvez vem. Nada me ocorre para além dessa súplica. Mas não escrevo, sei que tu não vens.

Mas hoje a minha vida vai mudar. Mais logo, mal a noite se desfaça e eu sinta que está a amanhecer, sairei de novo e irei, uma vez mais, pela beira do rio.

Sei, agora já sei, que todo a nossa vida se desfez, está feita em pó inútil, sei que algures, nas nuvens que cobrem o céu, estão as cinzas dos nossos dias. E, então, vou esperar que passe uma gaivota para que ela te leve as minhas palavras. E as minhas palavras, a partir de agora, são estas: não voltes, não preciso de ti, és não mais que uma sombra, a minha casa não precisa de quem se transforma em cinza, a partir de hoje sou uma mulher livre e uma mulher livre não tem espaço no seu coração para homens feitos de pó. 



[Corelli está a despedir-se e despede-se com uma sessão no Porto. Está já aqui abaixo, logo a seguir a um poema de José Luís Peixoto]


Gaivota atravessa um céu coberto de nuvens no Ginjal



                                  Como se ontem e os dias antes de ontem
                                  se tivessem desfeito sobre as prateleiras,

                                  como se pudéssemos escrever palavras
                                  nas suas cinzas com a ponta do dedo,

                                  como se bastasse soprar para vermos
                                  as suas imagens de novo, numa nuvem.


                                  ['Limpar o pó' de José Luís Peixoto in 'Gaveta de papéis']
                               

2 comentários:

  1. Tão lindo, o texto!
    O Poema do José Luís Peixoto, também.
    Abraço
    Mary

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    1. Olá Mary,

      Muito obrigada. O José Luís Peixoto tem poemas muito tocantes. É frequente eu ler poemas dele e apetecer-me pegar na ideia e escrever um pequeno texto, uma pequena história.

      Um abraço, Mary!

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