Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

08 outubro, 2012

A antiga casa que os ventos rodearam com suas noites de espanto e de prodígio


Habito as casas em que vivo e as que habitam a minha memória. 

Lembro-me de uma casa, a primeira, à qual, no fim do verão, iam homens e mulheres mondar as espigas de milho, sentados no chão, e cantavam e riam. Nessas alturas havia muito pó no ar e devia haver conversas e anedotas de adultos e os meus pais não me queriam lá mas eu arranjava sempre maneira de me infiltrar e, sorrateiramente, ir ficando. 

Junto a essa casa passava um ribeiro com uma água muito cristalina que corria sobre os seixos. Esse ribeiro era motivo de muitos medos dos meus pais que não queriam que eu fosse brincar para perto e, no entanto, a água que saltitava nas pedras e a sua frescura eram uma tentação a que eu não conseguia resistir. E havia eucaliptos que enchiam o ar de pureza e que tinham uma flor branca que parecia que tinha uns fiozinhos brancos e uns chapelinhos. E havia uns gatos que apareciam por lá e que não tinham dono mas que eram alimentados por todos, deixava-se um pratinho com sopinhas de leite ou restos de peixe. E havia umas gémeas mais velhas que eu e com quem eu adorava brincar e que costuravam roupinhas para as bonecas e para os gatos. E havia pirilampos que eu e os meus pais apanhávamos à noite e que eu punha debaixo de um copo, e, no dia seguinte, os pirilampos tinham-se transformado em moedas para o meu mealheiro. 

A casa era toda branca, por dentro e por fora. Mas um dia a minha mãe quis pintar a casa de banho de verde água, um verde muito claro e a minha mãe estava toda contente com essa alteração e o meu pai todo contente por ter feito a vontade à minha mãe e ela queria ainda mais claro e eu andava de roda deles e também toda contente porque aquele verde água era lindo e a casa de banho estava mesmo muito bonita, a luz ficava mais suave.

E lembro-me ainda da minha cama nessa casa e era uma cama pintada de uma tinta que a minha mãe chamava casquinha de ovo e, na cabeceira, havia uma menina sentada numa lua e a lua estava presa à cama por uma fita de cetim cor de rosa. E a menina e a lua eram de prata e tinha sido uma oferta dos meus padrinhos. E quando comecei a ler, tinha um livro que se chamava A menina da Lua e, pelo livro e pela menina sentada na lua, o meu pai começou a chamar-me menina da lua e eu gostava muito porque era isso mesmo que eu me sentia.

E essa casa tão luminosa e tão dentro da natureza ainda corre em mim e atravessa sempre os meus sonhos como um rio feito de doçura e afecto.



[Para acompanhar este texto evocativo da infância e o belo poema, mais um, de Sophia, abro a semana que vou dedicar a Camille Saint-Saëns com o Cisne, um belo trecho em violoncelo]


Anoitecer no casario do Ginjal



                                                A antiga casa que os ventos rodearam
                                                com suas noites de espanto e de prodígio
                                                onde os anjos vermelhos batalharam

                                                A antiga casa de inverno em cujos vidros
                                                os ramos nus e negros se cruzaram
                                                sob o íman dum céu lunar e frio


                                                Permanece presente como um reino
                                                e atravessa meus sonhos como um rio


                                                ['Casa' de Sophia de Mello Breyner Andresen in Geografia]


4 comentários:

  1. Amiga:
    Quantas recordações despertou!
    A minha velha casa de família materna, junto à Ria de Aveiro. A cama antiga, o colchão macio e cheiroso de palha de milho, os velhos lençóis de linho, cheirando a alfazema, os cobertores de papa e a botija de grês, no Inverno, o pão quente com manteiga acabada de fazer! Esta e a outra, a da minha Avó paterna, aqui em Lisboa, com cheiro a madeiras velhas, água de rosas e o jardim cheio de brincos de princesa!
    As minhas casas! As casas onde fui feliz.
    É bom e triste lembrar
    Repito a última frase do poema de Sophia:

    "Permanece presente como um reino e atravessa meus sonhos como um rio".

    Abraço grande
    Mary

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    1. Mary,

      t
      Também eu gostei muito de ler o que escreveu. Lembrei-me dos brincos de princesa que também havia num canteiro na casa dos meus pais, não nesta primeira de quando eu era bem pequenina, mas na seguinte onde ainda vivem os meus pais. E havia outras duas flores que eu adorava: a crista de galo que era quase uma pluma cor de vinho, linda, macia; e era os amores-perfeitos, pequeninos, com umas cores lindas.

      Mas gosto muito de me lembrar das casas da minha infância, também da casa das minhas avós. Quando morreram, quis ficar com pequenos móveis que eram deles e que a minha memória guarda muito nítida. O movelzinho onde antes estava um rádio que tinha pano à frente e demorava a aquecer e onde, a seguir, estava a televisão, ou o cadeirão de madeira que tinha uma almofada ao longo de todo ele e no qual o meu avô se sentava, ou uma pequena vitrina onde a minha avó tinha uns copos de vidro coloridos. Como os meus primos não quiseram nada disto, eu tive sorte e agora tenho isso, que olho com muito carinho.

      Um beijinho, Mary.

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  2. Cara UJM,

    Tem toda a razão quando fala dos vincos que as casas nos deixam na alma e que fazem parte do rosário das nossas vivências. Também me recordo das casas dos avós, dos outros parentes, mas acima de tudo daquelas pelas quais passei e deixei marcas de alguns anos de alegrias, tristezas e sonhos de mil cores. Lembro também o esforço e entreajuda de toda a família para manter viva a chama da união. Os objectos emanavam aromas inesquecíveis, alguns dos quais se mantiveram através dos anos e ainda hoje me fazem reviver os sonhos de antanho. Todos os recantos dessas casas ficaram com pedaços de nós, e o tempo jamais apagará os sulcos que ali ficaram esculpidos.
    Enfim, nostalgia de memórias da infância e adolescência, que, como bem disse, “ainda correm, em nós e atravessam sempre os nossos sonhos como um rio feito de doçura e afecto”.
    Muita saúde e felicidades.

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    1. Escreve tão bem, dbo...! Gostei também tanto de ler o que escreveu.

      Tal como escrevi no textozito ou na resposta ao comentário da Mary, eu tenho recordações muito boas ligadas às casas. Gosto muito de casas. Mesmo a casa em que neste momento estou, é uma casa muito cheia de mim (se é que isto se pode dizer assim). Esta mesa está cheia de livros, e à minha frente tenho uma estante baixa, a que tem os livros de poesia, que, em cima, tem mais de uma dúzia de molduras de todos os tamanhos e feitios onde estão as fotografias dos meus amorzinhos pequeninos, e tenho várias outras estantes onde estão livros e outros objectos que fazem as delícias dos pequeninos, que reviram tudo, felizes com tanta coisa para descobrir. E eu gosto de pensar que eles vão sempre guardar a memória da casa da Tá (como me chamam) como um sítio quase mágico onde há de tudo, bonecos estranhos, caixas de música, bailarinas coloridas suspensas do tecto, e cadeiras de balouço e banquinhos pequeninos.

      E agora que me lembro da casa das minhas avós, lembro-me, de novo, e aqui ou no UJM já falei, de um vaso com uma enorme avenca, verde, rendilhada, macia, que estava no parapeito largo de uma janela que a minha avó tinha quase sempre fechada 'porque a avenca gosta de sombra'. E eu ia deitar pinguinhas de água no prato que estava por baixo do vaso porque a avenca também gostava muito de água. Lembro-me tão bem, parece que foi há tão pouco tempo. E, no entanto, os meus avós já cá não estão para ouvirem que eu me lembro tão bem deles.

      Muita saúde e muitas felicidades também para si e para os seus, dbo.

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