Ainda sentia o cheiro da tua pele em mim, quando reparei na porta aberta. Tinhas ido. Chamei-te, queria, ao menos, despedir-me, pedir-te um beijo, um adeus, a promessa de uma carta. Mas já não me ouviste.
Saí, então, fui pela rua, segui o teu rasto, fui pelo teu cheiro, pela lembrança das tuas palavras. Mas não te encontrei.
Segui os caminhos que eram nossos, fui pela beira do rio, e já era fim de dia, e eu sem saber de ti. Segui o silêncio das casas vazias, segui a corrente do rio, procurei que passasse um barco ou, até, uma gaivota. Mas não passava nem um barco, nem uma gaivota e tudo era silêncio. Nem um sinal de ti.
Caminhei então em direcção às águas, entrei pelo rio adentro, e pedi baixinho, diz uma palavra, uma que seja, não te vás sem uma palavra, não deixes que eu pense que já nada fazia sentido.
Meu Deus, será que é isso, já nada fazia sentido?
[Abaixo do belo poema de Alice Vieira, temos ainda Corelli e, uma vez mais, vos sugiro que desarrumem a ordem dos factores: talvez o texto e o poema soem melhor ao som de Corelli.]
Fim de tarde no Ginjal, bem rente ao Tejo |
a porta entreaberta a prolongar
os teus passos os castanheiros a cidade em chamas
a minha voz a prometer-te uma carta
(prometo sempre cartas a quem se perde
entre o meu corpo e os patamares das escadas
de países desconhecidos)
mas tu já não ouviste ou então
tudo tinha deixado de fazer sentido
e eu a pensar ainda
uma palavra tua e eu serei salva
[Poema 5 de 'Cinco breves momentos de Maio' de Alice Vieira in 'Dois corpos tombando na água']
Belíssimo o seu texto , como sempre no seu belo e doce "jeito manso". Também belíssimo o poema de Alice Vieira que, apesar de já ter publicado dois luminosos livros de poemas, continua a não ser considerada também como poetisa (recuso-me a dizer poeta). Será por não ser hermética e pelo facto do seu lirismo adulto não estar na moda literária do momento? Mistério !!!
ResponderEliminarCaro Joaquim Castilho,
EliminarMuito obrigada. Gosto muito de escrever e fico muito contente quando sinto que as minhas palavras são agradáveis de ler.
Gosto muita da Alice Vieira. Este poema foi o 11º que aqui coloquei. Também não percebo porque não é mais referida e melhor reconhecida. Acho-a uma das grandes poetas da actualidade. (E, como vê, eu sou o contrário de si: acho que ser-se poeta é uma coisa grande, independente do género, ou melhor, acima do género. Por isso, embora não me choque nada a palavra poetisa, quando eu me quero referir, uso a palavra poeta)
Eu, como não sou de modas, escolho para aqui aqueles de quem gosto e não os que a intelectualidade recomenda.
Uma vez mais obrigada e desejo-lhe um bom fim de semana.
neste livro por que é que há a perda do amado? houve traição?
ResponderEliminarCaro(a) Anónimo(a),
EliminarTraição houve, certamente. Mas não lhe sei dizer qual o tipo de traição até porque também não sei qual o mais doloroso tipo de traição. Pode ter sido a morte que traíu a vida, podem ter sido os sentimentos que traíram a relação, pode ter sido o destino que traíu o que, num momento, era dado como certo.
Acontece e geralmente é doloroso.