Nestes dias de chumbo, em que a tragédia do fim parece abater-se sobre os pobres mortais que tentam sobreviver na terra, como se um céu carregado de um insuportável e medonho peso desabasse sobre nós, percorro a diagonal que me leva para mais perto do horizonte. Procuro, talvez, uma aresta onde ainda perdure um resto de leveza.
Se olho o céu, procurando anjos, nada vejo. O céu ora está limpo e sem nuvens onde os anjos se empoleirem, ora está carregado, nada apropriado para seres diáfanos e subtis. Não há anjos no céu.
Percorro as margens do rio e o meu olhar voa pela superfície das águas, talvez algum anjo se tivesse vindo aqui refrescar. Não, nada. Olho as paredes de pedra, olho os barcos que passam. Nada, nenhum anjo. Olho as gaivotas que dançam levadas pela brisa da tarde, espreito as longas asas brancas, talvez alguma transporte um pequeno anjo. Mas não, anjo nenhum.
Baixo os olhos, caminho em silêncio, quase sem esperança.
Passam, então, dois namorados. Falam baixinho, sorriem, vão abraçados, têm corpos saudáveis e jovens, peles certamente macias, olhos certamente felizes, corações certamente apaixonados. Olho-os com ternura. Tanta paz.
E o rio fica mais azul e o céu mais quente e é como se, à sua passagem, se abrisse um caminho de luz.
São estes os anjos que eu procurava. Anjos de verdade, inocentes, doces, crédulos, cheios de vida. Eis que andam como se voassem, eis que quase deslizam sobre as águas, rumo à luz mais dourada, levados pelos sonhos. Sinto que, atrás deles, vai ficando um perfume muito suave, talvez seja o subtil perfume da esperança.
E, olhando-os, sinto em mim a doçura da vida, o enlevo contagiante do amor.
Procuremos, pois, os anjos na terra. A sua presença enche-nos de vida e de sonhos.
[Já aqui abaixo poderão ler mais um belo poema de António Ramos Rosa e, logo a seguir, mais uma música de Franz Biber]
Passeando à beira Tejo, ao fim de uma tarde, então, ainda quente |
Anjos, existem anjos? Volúveis seres
que são um instante de voluptuosa brisa
em que o tempo é a forma do desejo
e do sono das folhas e das águas.
Anjos, sim, de terra, que segredam
a argila dos nomes, o movimento azul
do ar. Na sua companhia eu sou o vento
e o meu hálito confunde-se com as suas vozes.
['Anjos de terra' de António Ramos Rosa in Antologia Poética]
Muito bonito.
ResponderEliminarNao sei se existem. mas se existirem ficámos todos a saber que, afinal,. os anjos têm costas.
:)
Olá jrd!
EliminarO seu sentido de humor é delicioso. Leio o que escreve, sempre tão a propósito, e frequentemente desato-me a rir.
Obrigada!
Olá UJM
ResponderEliminarA propósito de humor e de escrita. O primeiro é um recurso que disfarca as limitacoes da segunda.
Obrigado.
Abraco
ResponderEliminarQuerida UJM
Já tinha saudades desta paz, deste intimismo.
Deixei-me conduzir pelas suas palavras, percorrendo consigo esse caminho feito de interrogações e desejando chegar, como chegámos, a uma réstia de luz que nos mostrasse que ainda há magia e esperança.
António Ramos Rosa, num registo soberbo.
Beijinhos
Olinda
Os anjos não se vêem, mas andam por aí. Tristes, magoados pelas nossas dores, tentando minorá-las, sem conseguir. E é por isso, que os anjos não se vêem. Às vezes choram, nós pensamos que é chuva, mas são eles que choram.
ResponderEliminarMaria
De novo me dirijo não a cada um(a) de vós mas em simultâneo para agradecer as vossas palavras e para me desculpar por não ter tempo para mais. Se me ponho a responder, não me sobra tempo para escrever textos novos. Já passam das 11 e tal da noite e ainda nem comecei...
ResponderEliminarDesculpem-me.