Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

09 outubro, 2012

O vento do mar já conseguiu acalmar muitos corações mas os nossos não


Deito-me ao teu lado, imóvel, silenciosa. E tu imóvel e silencioso estás. Estes são dias em que grandes perigos se fazem anunciar. Estamos vivos, respiramos, mas nada dizemos, não nos mexemos. Por defesa? Por medo? 

Tempos houve, era primavera, era verão, e nós rolávamos felizes pelas dunas, dormíamos nas tardes de calor, não tínhamos pressa nem receios. A vida abria-se à nossa frente como uma planície feliz, ilimitada, e todos os futuros eram nossos.

Mas, enquanto dormíamos ou ríamos, um monstro saído não se sabe de onde, arrasou as planícies floridas, roubou as casas, assaltou os indefesos, afugentou os jovens, destruiu sonhos, queimou estrelas, afogou o sol.

Há ainda alguns velhos caídos nos cantos de casas arruinadas, há ainda alguns gatos perdidos nas escarpas, mas já são poucos e estão esfaimados. E ainda estamos também nós, calados, parecendo mortos, aguardando a fria e horrenda calamidade.

A cada dia que passa, a escarpa de pedra desolada vai caindo, empurrada pelo monstro maldito, sobre as poucas casas que restam. 

Tempos houve em que o vento acalmava os nossos corações que corriam como cavalos soltos, alegres. Agora, aqui deitados, ouvimos o vento sombrio, escuro, e é um silvo que anuncia novos horrores e que ouvimos petreficados.

Mas eis que, inesperadamente, uma pequena mão afasta a porta e chama por nós. Abrimos os olhos, soerguemo-nos. Um rosto de criança sorri, olhos inocentes, voz inocente. Levantamo-nos, então, e uma estranha força toma conta de nós. Pela criança que nos despertou iremos travar a escarpa que nos quer esmagar, pela criança que resistiu aos tempos de desespero iremos lutar contra o monstro, iremos lutar nem que essa seja a nossa última luta, nem que morramos a lutar.


[Abaixo da fotografia do Ginjal, temos um poema do novíssimo livro de José Tolentino Mendonça, o Padre Poeta e, logo a seguir mais um trecho de Saint-Saëns, e, de novo, violoncelo]


Escarpa do Ginjal tombando sobre o casario, até ao Tejo



                                 Cruzámos os dias de Verão
                                 o destino perseguia-nos com um ímpeto relutante
                                 a listar calamidades
                                 numa ascensão
                                 por escarpas que tínhamos julgado a salvo

                                 Corríamos o litoral com a nossa turbulenta forma
                                 ou deixávamo-nos imóveis a ponto de parecer mortos
                                 entre beleza, sobreposição e perigo
                                 sem grande esclarecimento
                                 a noite despenhava-se
                                 no silêncio da corrente

                                 O vento do mar já conseguiu acalmar muitos corações
                                 mas os nossos não



                                 ['Escarpas' de José Tolentino Mendonça in 'Estação Central']

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