Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

25 outubro, 2012

Quando Outubro já desiste e um dia parece desolado


Outubro está a chegar ao fim, entre aguaceiros, relâmpagos que rasgam os céus, com um vento que arrasta as folhas mortas e ensopadas. Escrevo numa sala escura, com um pequeno foco de luz sobre as minhas palavras, rodeada de livros. E ouço, na janela ao meu lado, o som constante, o som líquido e fraternal da chuva. Sinto-me tão bem aqui, junto de vós.

Mas no outro dia o céu estava limpo, o rio estava quase artificialmente azul, um pequeno barco enfeitava a paisagem dando-lhe um toque inocente, um pequeno barco desenhado por uma criança.

Neste sítio há um restaurante que paira sobre as águas, que espreita Lisboa, a magnífica, que oferece aos felizes da vida a perfeita ocasião para justificarem a sua felicidade.

Mas, por aqui, pairam também os pescadores mais pobres, os que esperam um peixe para terem o que comer, e pairam os abandonados que olham o rio para disfarçar as lágrimas sofridas, e pairam os velhos saudosos que imaginam alegrias passadas e pairam os gatos vadios e pairam as gaivotas livres e belas.

E pairam também as mulheres como eu e como elas, gatas vadias, gaivotas sonhadoras, mulheres livres. Passam por aqui para respirar o dia que vivem, para guardarem dentro de si o azul, o grande espaço, a bela cidade, para esquecerem as tristezas, os enganos, os abandonos, para inventarem as palavras que, depois, à noite, nos dias de vento e chuva, colocam aqui, como oferendas - para vós, meus queridos amigos que nunca, nunca serão intrusos nesta minha casa feita de palavras.



[Abaixo do homem que anda sobre o Tejo, poderão conhecer o reflexo de José Alberto Oliveira e, logo a seguir, a bela música de Pergolesi. Talvez seja boa ideia ir já pôr a música a tocar para, então, voltar aqui e melhor saborear as palavras, que a poesia sabe melhor quando acompanhada com boa música]



Restaurante no Ginjal, mesmo sobre o Tejo, bem de frente para Lisboa



                                            Quando Outubro já desiste
                                            e um dia parece desolado, como a terra
                                            dos mortos, onde flores sem cheiro
                                            acenam levemente às rajadas de vento,
                                            a tua cara já perdida pelas ruas,
                                            um intruso verifica com minúcia
                                            a ementa do restaurante. Não tem
                                            dinheiro, nem tem vontade, lamenta
                                            apenas não poder adiar ou esquecer.
                                            O quê? É quase certo que não saiba
                                            e também isso gostaria de adiar. Ou esquecer.



                                           ['Reflexo' de José Alberto Oliveira in 'Tentativa e Erro']

6 comentários:

  1. As noites de chuva e temporal, têm um efeito estranho em mim. Por um lado, sinto-me bem, quente, ouvindo a chuva cair e embalar-me o sono. Por outro, penso naqueles que não têm calor, nem casa, apanham com aquela chuva em cima. Sinto uma espécie de dor, que me tira o sono e a paz.
    Abraço
    Mary

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  2. Acho que já uma vez contei que a minha mãe, quando dava aulas numa escola situada perto de um bairro de barracas, pediu aos meninos para fazerem uma redacção sobre o Natal.

    Uma menina escreveu que estava muito contente porque tinha recebido um plástico às flores para pôr por cima da cama para não entrar a água da chuva.

    A minha mãe ficou arrasada de comoção e eu, quando ela me contou, e era eu ainda uma miúda, também. Nunca mais me esqueci.

    E, por isso, também eu me divido. Por um lado, gosto e sinto-me protegida mas, por outro, penso naqueles que vivem em casas onde o vento e a chuva entra, especialmente quando há crianças a viver em tão precárias condições.

    Um abraço, Mary.

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  3. Que belo e comovente texto (extensivo à resposta que deu à Mary).

    Que bom ter entrada na sua casa feita de palavras!

    Bem-haja!


    Antonieta

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    1. Antonieta,

      Muito obrigada. É uma casa, esta, em que gosto que se sinta a paz que as palavras têm dentro, mesmo quando são palavras mais desoladas.

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  4. CASA NA CHUVA

    A chuva, outra vez a chuva sobre as oliveiras.
    Não sei porque voltou esta tarde
    se minha mãe já se foi embora,
    já não vem à varanda para a ver cair,
    já não levanta os olhos da costura
    para perguntar: Ouves?
    Oiço, mãe, é outra vez a chuva,
    a chuva sobre o teu rosto.

    Eugénio de Andrade, in Escrita da Terra


    Antonieta

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    1. Antonieta,

      Muito obrigada por esta poesia tão bela, como são muito belos os poemas de Eugénio.

      O outro poema que me enviou, em vez de o publicar aqui, vou antes tomar a liberdade de o colocar no corpo da mensagem de hoje.

      Agradeço-lhe.

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