Outubro está a chegar ao fim, entre aguaceiros, relâmpagos que rasgam os céus, com um vento que arrasta as folhas mortas e ensopadas. Escrevo numa sala escura, com um pequeno foco de luz sobre as minhas palavras, rodeada de livros. E ouço, na janela ao meu lado, o som constante, o som líquido e fraternal da chuva. Sinto-me tão bem aqui, junto de vós.
Mas no outro dia o céu estava limpo, o rio estava quase artificialmente azul, um pequeno barco enfeitava a paisagem dando-lhe um toque inocente, um pequeno barco desenhado por uma criança.
Neste sítio há um restaurante que paira sobre as águas, que espreita Lisboa, a magnífica, que oferece aos felizes da vida a perfeita ocasião para justificarem a sua felicidade.
Mas, por aqui, pairam também os pescadores mais pobres, os que esperam um peixe para terem o que comer, e pairam os abandonados que olham o rio para disfarçar as lágrimas sofridas, e pairam os velhos saudosos que imaginam alegrias passadas e pairam os gatos vadios e pairam as gaivotas livres e belas.
E pairam também as mulheres como eu e como elas, gatas vadias, gaivotas sonhadoras, mulheres livres. Passam por aqui para respirar o dia que vivem, para guardarem dentro de si o azul, o grande espaço, a bela cidade, para esquecerem as tristezas, os enganos, os abandonos, para inventarem as palavras que, depois, à noite, nos dias de vento e chuva, colocam aqui, como oferendas - para vós, meus queridos amigos que nunca, nunca serão intrusos nesta minha casa feita de palavras.
[Abaixo do homem que anda sobre o Tejo, poderão conhecer o reflexo de José Alberto Oliveira e, logo a seguir, a bela música de Pergolesi. Talvez seja boa ideia ir já pôr a música a tocar para, então, voltar aqui e melhor saborear as palavras, que a poesia sabe melhor quando acompanhada com boa música]
Restaurante no Ginjal, mesmo sobre o Tejo, bem de frente para Lisboa |
Quando Outubro já desiste
e um dia parece desolado, como a terra
dos mortos, onde flores sem cheiro
acenam levemente às rajadas de vento,
a tua cara já perdida pelas ruas,
um intruso verifica com minúcia
a ementa do restaurante. Não tem
dinheiro, nem tem vontade, lamenta
apenas não poder adiar ou esquecer.
O quê? É quase certo que não saiba
e também isso gostaria de adiar. Ou esquecer.
['Reflexo' de José Alberto Oliveira in 'Tentativa e Erro']
As noites de chuva e temporal, têm um efeito estranho em mim. Por um lado, sinto-me bem, quente, ouvindo a chuva cair e embalar-me o sono. Por outro, penso naqueles que não têm calor, nem casa, apanham com aquela chuva em cima. Sinto uma espécie de dor, que me tira o sono e a paz.
ResponderEliminarAbraço
Mary
Acho que já uma vez contei que a minha mãe, quando dava aulas numa escola situada perto de um bairro de barracas, pediu aos meninos para fazerem uma redacção sobre o Natal.
ResponderEliminarUma menina escreveu que estava muito contente porque tinha recebido um plástico às flores para pôr por cima da cama para não entrar a água da chuva.
A minha mãe ficou arrasada de comoção e eu, quando ela me contou, e era eu ainda uma miúda, também. Nunca mais me esqueci.
E, por isso, também eu me divido. Por um lado, gosto e sinto-me protegida mas, por outro, penso naqueles que vivem em casas onde o vento e a chuva entra, especialmente quando há crianças a viver em tão precárias condições.
Um abraço, Mary.
Que belo e comovente texto (extensivo à resposta que deu à Mary).
ResponderEliminarQue bom ter entrada na sua casa feita de palavras!
Bem-haja!
Antonieta
Antonieta,
EliminarMuito obrigada. É uma casa, esta, em que gosto que se sinta a paz que as palavras têm dentro, mesmo quando são palavras mais desoladas.
CASA NA CHUVA
ResponderEliminarA chuva, outra vez a chuva sobre as oliveiras.
Não sei porque voltou esta tarde
se minha mãe já se foi embora,
já não vem à varanda para a ver cair,
já não levanta os olhos da costura
para perguntar: Ouves?
Oiço, mãe, é outra vez a chuva,
a chuva sobre o teu rosto.
Eugénio de Andrade, in Escrita da Terra
Antonieta
Antonieta,
EliminarMuito obrigada por esta poesia tão bela, como são muito belos os poemas de Eugénio.
O outro poema que me enviou, em vez de o publicar aqui, vou antes tomar a liberdade de o colocar no corpo da mensagem de hoje.
Agradeço-lhe.