Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

28 junho, 2012

Amei-te nas fotografias obscenas


Olha para mim. Regista agora a minha imagem. Repara na cor do céu e na cor do rio, ajusta a entrada de luz. Estou bem assim?

Devo endireitar as costas? Devo deixar descair um pouco o ombro da camisola? Vê lá. Queres que me chegue mais para trás? 

Ou queres, antes, que me deite aqui em cima do muro? Ouve, vê lá como achas que fica melhor. Se quiseres tiro a blusa, não me custa nada. Sabes bem que estou habituada. Não foi assim que me conheceste? E então? Não estamos agora aqui? Tu mesmo dizias que me amavas quando me vias naquelas fotografias obscenas.

Sim, vou despir a blusa e deitar-me sobre o estreito muro e apanhas-me contra o rio como se este fosse fosse uma vasta colcha azul bordada a pontos de luz; e o céu vai parecer a cor dourada das cortinas de veludo de um dossel inventado, que nos ocultará do olhar do mundo.

O que achas? Olha, posso até tirar também as calças, e deito-me assim, não como se estivesse desmaiada mas, sim, bem viva, estátua incompleta que tu virás completar.

Olha, imagina, a minha nudez apenas coberta pelo meu cabelo, como se o meu cabelo fossem algas macias saídas destas águas. Mas coberta também pelo teu olhar. E tu enquadras o meu corpo arqueado, quase vénus ao espelho, e a torre será a parede que me ampara e a luz rosada do entardecer será a cor que dourará a minha pele ainda branca.

Depois, tu disparas e, se ficar bem, a seguir, vens com a tua espátula e começas a moldar o meu corpo, devagar. Eu sou gesso, e tu vens moldar as minhas coxas, as minhas ancas, os meios seios, o meu pescoço dobrado, o meu sexo que te espera.

Diz. Queres? Ou estou melhor assim, sentada de costas, vestida, joelhos abertos, uma mão elegantemente apoiada? Como é que preferes? Diz.

Faço como quiseres, já sabes que, perante uma paisagem assim, fico rendida.




[Bem. Logo abaixo da jovem escultura, poderão ver um belíssimo poema do mais recente livro de Nuno Júdice. Logo abaixo mais um momento de festejo da música com Heitor Villa-Lobos]



Junto à Torre de Belém, num fim de tarde ameno, com o Tejo muito azul, o céu muito limpo e suave 



                                 Amei-te nas fotografias obscenas de
                                 um limiar de acasos, quando a tua voz
                                 desmaiava numa eclosão de ecos. E uma
                                 colcha de silêncios tapou a tua nudez; o inútil
                                 flash da madrugada iluminou os teus olhos; e,
                                 de repente, o sol nasceu de uma enseada
                                 de cabelos, e subiu pelas cortinas do quarto;
                                 lentamente, encostaste a curva do teu joelho
                                 à sombra da parede como se ali ficasse,
                                 no vazio do gesso, a cor da tua pele.



['Escultura' de Nuno Júdice in 'Fórmulas de uma luz inexplicável', edição Maio 2012]

Heitor Villa-Lobos - Choro Nº10, 'Rasga o Coração'



Nota: Não descobri a cargo de quem está esta interpretação

27 junho, 2012

Ver-me ao espelho neste momento é ter sido agora


Um dia houve em que nos abraçámos ao espelho. A tarde estava dourada e nós amávamo-nos cheios de ternura, aquela ternura dourada que acontece uma vez na vida. O momento era efémero e nós quisemos ver-nos, amantes banhados por um sol coado. Abraçados, sorrindo com uma ternura triste que era já despedida.

Nunca mais aquele espelho devolveu a nossa imagem. 

Sabíamos que a imagem sorridente no espelho acontecia no instante seguinte ao do sorriso. O sorriso pertencia, pois, já ao passado.

Deixei de me olhar naquele espelho. Não te veria. 

Agora procuro outras superfícies se quero saber como é o meu olhar.

Olho o céu, olho o rio, olho a sombra que me acompanha na parede esventrada enquanto eu passo sozinha ao lado. 

Olho-me, sobretudo, nos gatos que se esquivam, animais subtis e sábios. Olho-me nos gatos que descem, silenciosos, até à beira do rio. Olho-me nos gatos que se escondem nas raízes frescas das árvores, que saltam inesperadamente dos muros, que se esgueiram pelos beirais e de lá contemplam a lonjura, olho-me nos gatos que estendem o corpo ao sol deixando a cabeça à sombra, olho-me nos gatos que me olham de frente, olho-me nos olhos verdes dos gatos que me desafiam, olho-me nos olhos ardentes de paixão dos gatos que me reconhecem como uma deles.

E sei que a imagem que vejo está sempre à minha frente, uns instantes à frente no meu tempo e que os passos que dou ficam no passado. 

Deixei, pois, de procurar o passado nas vítreas superfícies, é frágil essa superfície, é longínquo esse passado. Agora procuro a minha imagem no futuro, no tempo que está por vir, no vento, na luz, nas águas que correm, no olhar límpido dos gatos que me enfrentam. Eu sou aquela que ainda há-de ser.



[Logo a seguir ao incrédulo gato de belos olhos verdes, poderão ler o algo inquietante poema de Frederico Lourenço e, logo abaixo, um Choro de Heitor Villa-Lobos]



No Jardim do Ginjal
(Depois de andar desconfiado, olhando-me com muita suspeição enquanto eu o fotografava, o gato parou e enfrentou-me mas, tão atento e intrigado estava, que revirou as orelhas desta forma subversiva)





                    Ver-me ao espelho neste momento é ter sido agora.

                    Ter sido em simultâneo com a imagem de eu ser,
                    ou ser na decalagem do reflexo de ter sido;

                    ver-me e saber que não sou quem eu vejo,
                    que a imagem de mim é vítrea miragem,

                    que o meu corpo reflectido é estilhaço de cristal
                    no passado ainda próximo onde o presente é vivido.

                    O reflectido já de si está perdido de antemão -
                    ou estaria se o nácar não brilhasse toda a tarde

                    na luz de madrepérola que cintila no espelho,
                    iluminando o instante em que já não sou eu.

                   
                 
 ['Poema III, No Espelho,1.2ª parte' de Frederico Lourenço in 'Clara Suspeita de Luz']

Heitor Villa-Lobos - David Russell interpreta Choro Nº1


26 junho, 2012

Ninguém sabe onde ela mora


Eu sei, eu sei. Não sabem quem eu sou, não sabem como sou, não sabem onde moro. Eu sei, eu sei dessas dúvidas.

Sabem que moro num sítio alto. Mas onde? Numa torre, num monte, no alto de um farol?

Querem saber se escondo algum segredo... E escondo. Tantos segredos. Impossível contá-los, muitas vidas inteiras não iam chegar. 

Dizem que olham as águas querendo ver se elas trazem segredos, imagens, palavras daquela que se cobre, se disfarça, se cala. Mas as águas nada trazem.

Quando passo transparente vejo, à passagem, recados escritos nas paredes, mensagens deixadas nas pedras do cais. Quem és? De onde vens? Para onde vais? Que segredos escondes?, leio. E sigo.

E sigo. E sigo em silêncio, sorrindo. Respiro a maresia, voo como os pássaros, solto palavras ao vento, olho o sol de frente, confundo-me com as nuvens.

Depois, junto-me aos gatos, entro nas paredes, salto sobre as pedras da margem do rio, divirto-me olhando com os meus grandes olhos verdes aqueles que passam e não me vêem. 

Quando a noite cai desço, então, até à beira da água. Entro devagar, gosto de sentir os panos que me cobrem subindo, acariciando-me a pele, e depois nado até ao outro lado. Antes de chegar, mergulho, vou até ao fundo, lá bem ao fundo, onde se esconde o monte que um dia se afogou. É lá que vivo, é lá que escondo os meus segredos, é de lá que vos envio todos os dias as palavras que depois chegam até vós, palavras silenciosas como estas que acabam de ler.



[Já a seguir à misteriosa mulher, poderão ver mais um poema de João Miguel Henriques. Logo abaixo mais uma música ´de Heitor Villa-Lobos]



Na beira do Tejo, no caminho do Ginjal


                            ninguém sabe onde ela mora
                            ninguém sabe
                            onde pára não há quem
                            quem disso saiba
                            e se o rio aqui corre não nos mostra
                            não nos conta os segredos do outro lado...
                            ninguém sabe
                            todos crêem
                            o seu monte está nas águas afogado

                            ninguém sabe onde ela mora
                            ninguém sabe
                            todos dizem que é nas águas do outro lado


                            ['Morada' de João Miguel Henriques in 'Isso passa']

Heitor Villa-Lobos - Gian Luigi Zampieri dirige a Orquestra do Teatro San Carlo di Napoli na interpretação da Bachiana Brasileira Nº4


24 junho, 2012

Não te mexas. O futuro é perder o equilíbrio, cair até bater no fundo.


Olho-vos sem ser vista. 

Assim é habitualmente. Apenas uma vez, já o contei, alguém falou referindo-se a mim: eu ia a andar e a fotografar sem me dar conta da chuva e dois homens que passavam debaixo de um chapéu de chuva, comentaram 'de facto a chuva é uma coisa psicológica'. Nesse dia eles viram a chuva que os molhava a eles mas não a mulher que ali ia. Talvez isso acontecesse, não porque a chuva seja uma coisa psicológica mas porque sou transparente.

Passo pelo chão verde, sob as árvores macias, de renda verde, passo por vós, fotografo, páro, abeiro-me, debruço-me, fotografo, aspiro o ar fresco, e vocês não me vêem, e ninguém me vê. Se soubessem como é bom...

Agora aqui estou, livre, movendo-me no silêncio puro que habita este espaço mágico e fixo os efémeros momentos da vossa juventude, estes felizes momentos em que nenhum passado vos pesa nas almas.

Apontam o que está por vir, as águas que passam e que levam navios também de passagem, olham ao longe na mesma direcção e, se eu me aproximasse e vos perguntasse pelo futuro, vocês dir-me-iam que é luz, é música, é vida, é amor. Claro que eu não vos desmentiria, não vos falaria dos dias de insónia, nem das teias que se tecem para aprisionar os mais tristes, teias que pesam como pedras. Tentaria apenas, falar-vos de alguns hiatos escuros que se abrem sem aviso no caminho, deixando por vezes os mais incautos à margem da vida, no lado amargo da sombra. 

Mas nem isso vos digo. Para quê? A própria vida vos ensinará e é justo que assim seja.

Por isso, não vos digo nada. Sigo, transparente, imaterial, à vossa volta, pouso depois no vosso ombro  e, então, não resisto e, em silêncio, digo-vos ao ouvido, Não se mexam, não se mexam ainda. Depois, de novo, levanto voo, e fico a ver-vos assim, jovens, doces, olhando com inocente delícia os sonhos que se desenham no vosso horizonte.



[Já abaixo um belo poema de Inês Dias, um poema com um sugestivo nome e, logo a seguir, abrimos a semana com um novo compositor, um compositor de músicas de que vão, de certeza, gostar muito: Heitor Villa-Lobos]



Numa tarde de suave toque, na margem de um Tejo amavelmente azul, quase turquesa, no Jardim do Ginjal



                                 Não te mexas.

                                 O futuro é perder o equilíbrio,
                                 cair até bater no fundo
                                 de uma insónia hora a hora
                                 interrompida para respirar
                                 à superfície da luz.

                                 Não te mexas ainda.

                                 Não hesites, não assustes o sonho
                                 pousado em teia sobre ti,
                                 não agites as águas.
                                 E talvez a vida se deixe
                                 ficar à margem
                                 com os seus dias armados de pedras.





['Menina calçando a meia', (Estufa Fria, 1966), de Inês Dias in 'In Situ' com ilustrações de Daniela Gomes]

Heitor Villa-Lobos - Mischa Maisky interpreta Bachianas Brasileiras Nº. 1 - Prelúdio (Modinha)


22 junho, 2012

Teus olhos imorais, mulher, que me dissecas, teus olhos dizem mais que muitas bibliotecas!


Vadia, crazy girl... Deixa-me chamar-te assim, devagarinho, baixinho, ao ouvido, nomes destes. Gostosa, boazona. Deixa-me olhar esses olhos gulosos, esses olhos que me levam à perdição.

Não olhes agora o rio, esquece os veleiros e os marinheiros que vão neles. Deixa-me ver bem os teus olhos. Sua maluca, que palavras eram aqueles na mensagem que me mandaste...? Deixaste-me em brasa, sabias? Que querias, que fazias... e então, quando é?, estou à espera.

Quero ver se é verdade, se gostas mesmo, se sabes mesmo, sempre quero ver, sua doida. Aquilo são lá coisas que se escrevam, oh sua grande tarada. Estás a rir-te, sua gozona, estás a rir-te.

Olha para mim, esquece o rio, esquece o navio, esquece quem lá vai. Olha para mim, quero ler os teus olhos loucos, roucos, que eles, sim, falam verdade.

Que olhos tão húmidos, que olhos tão quentes, tão lindos. Brilham tanto os teus olhos, Marta, brilham tanto, há tanta comoção no teu olhar. Dizes que não é comoção...? Não? Tentação...? Dizes que é tentação, Marta? Que é paixão? Que é atracção?  E com que voz me dizes isso, oh libidinosa Marta, quanta sensualidade nessa voz...

Olhas-me agora assim, entras assim devagar dentro de mim, Marta, com esse olhar imoral. Oh Marta que me matas com a tua indecência, com a chama perversa do teu olhar.



[Abaixo da imagem de um casal apaixonado, um poema de um Poeta que por cá tem aparecido pouco e apenas por indelicadeza minha, Cesário Verde. A seguir, o som maravilhoso do violino e da orquestra ao serviço da grande música de Shostakovich.]



Rente ao Tejo, no pequeno e romântico jardim do Ginjal
           

Mandaste-me dizer,
no teu bilhete ardente,
que hás de por mim morrer,
morrer muito contente.

Lançastes, no papel
as mais lascivas frases;
a carta era um painel
de cenas de rapazes!

Ó cálida mulher,
teus dedos delicados
traçaram do prazer
os quadros depravados!

Contudo, um teu olhar
é muito mais fogoso,
que a febre epistolar
do teu bilhete ansioso:

Do teu rostinho oval
os olhos tão nefandos
traduzem menos mal
os vícios execrandos.

Teus olhos sensuais,
libidinosa Marta,
teus olhos dizem mais
que a tua própria carta.

As grandes comoções
tu neles, sempre, espelhas;
são lúbricas paixões
as vívidas centelhas...

Teus olhos imorais,
mulher, que me dissecas,
teus olhos dizem mais
que muitas bibliotecas!



['Lúbrica' de Cesário Verde in Antologia Poética, na bela edição ilustrada por José Manuel Saraiva, da editora K, Faktoria de Livros]

Shostakovich - Vadim Repin ao violino com a Orquestra de Paris conduzida por Paavo Järvi interpretam o Concerto nº 1 para Violino e Orquestra


18 junho, 2012

Este rochedo que me suga os anos e morde, devagar, a memória da vida


Dias houve em que eu vinha num veleiro branco, passava por aqui, deslizava sobre a água. Havia um silêncio reverente, uma respiração fresca e azul, e as aves de grandes asas brancas acompanhavam-me, nobre companhia eu tinha, então.

O veleiro avançava e era como se fosse eu a caminhar sobre as ondas que se esbatiam para melhor eu avançar. E, ao meu lado, caminhava o menino que eu fora, a mãe que me defendia dos seus medos sombrios, a irmã que me dava a mão e sorria, protegida e inocente. 

Até que um dia a minha mãe, a minha irmã e o menino que eu fora saíram voando e entraste tu, pássaro branco, gritos de princesa em chamas.

Passei, então, a atravessar estas águas deitado no fundo do veleiro, entrando vitorioso nas noites cúmplices, às vezes cantando e gritando nos épicos entardeceres que nos envolviam, outras vezes saciado, abraçado, aconchegado, respirando o ar dourado do sol, respirando a vida que voava fremente em nossa volta.

Mas esse tempo também passou. Um dia saíste voando. 

E depois saí eu também. Desapareci. Dizem que não sabem de mim. O veleiro voltou sozinho, encontrou o seu lugar e agora ali está, parado, sem dono.

Eu, prendi-me a este rochedo à beira deste rio que tantas vezes cruzei e vivo debaixo do mar. Ninguém me vê, não vejo ninguém. Quando a noite avança sedenta, sombria, arrastando os seus fantasmas, eu saio da água e sento-me, em silêncio, sobre este rochedo à beira da água, sempre preso por pesada corrente, sempre esperando que um cão vadio, uma mulher da noite, um pássaro perdido se chegue a mim e me faça companhia. E espero que a memória de outras vidas se afogue, em silêncio também.



[Abaixo do rochedo poderão ver um belo e silencioso poema do novíssimo livro de poemas de Armando Silva Carvalho. E, logo a seguir, uma música lindíssima. É Shotakovich que, por estes dias, aqui nos maravilha]



Na beira Tejo, junto a Belém



                           Quem ama o tempo como eu nesta manhã de ruídos
                           que se afastam de mim e me fazem sentir
                           vazio no meio do mar?
                           Quem devora este ar tão benfazejo à boca
                            e ao replicar das ondas
                            nos ouvidos como sinos de água?

                            Um tempo que se curva,
                            com o início nos joelhos dobrados da infância,
                            na mãe obsessiva,
                            e vem,
                            como de onda em onda,
                            transportando as dores, até este rochedo
                            que me suga os anos
                            e morde, devagar, a memória
                            da vida.


                            ['Vazio no meio do mar' de Armando Silva Carvalho in 'De Amore', Maio 2012]

     
                         

Shostakovich - Andrei Korobeinkov com a Lahti Symphony Orchestra interpreta o Concerto nº 2 para Piano e Orquestra


(Ainda preciso de desculpas para tudo o que não fiz)


Como cheguei aqui? Quem me trouxe? Ou vim sozinha?

Levantei-me nesta manhã cinzenta, abri a janela e senti um peso, uma tristeza.

Espreitei-me, num breve relance, ao espelho. Esta sou eu? Estas rugas, esta pele caída, este cabelo sem vida... Esta sou eu? Onde está o meu olhar curioso, onde está o meu olhar expectante? Onde está o meu sorriso de carinho?

Desapareci. Esta já não sou eu. Aquela que o espelho, de longe, me mostra é outra, é outra que parou de viver, que deixou a vida para trás.

Fugi de casa, fugi dessa outra mulher que veio não sei de onde para se instalar num corpo que parece ser o meu.

Caminhei, então, e dirigi-me ao local onde o rio é espelho, um grande espelho de prata clara. Quero ver-me no espelho do rio. Quero ver se me descubro.

Deixei tantas coisas para trás, tantas coisas que não fiz. Tantas vezes optei por não arriscar, por não me dar, por me reservar e agora, que o tempo passou, não sei para que é que me estava a reservar. Olho o espelho mas não é um espelho, é um rio que corre, é um rio que leva a minha imagem para longe. E que eu não consigo agarrar.

Ó vida, espera por mim, que agora quero viver.



[Abaixo da imagem da mulher que olha, mais um belo poema de um Poeta que tem aqui um lugar muito especial, Luís Filipe de Castro Mendes, Poeta e Embaixador. Logo a seguir, uma música maravilhosa: abre-se a semana que vou dedicar a Shostakovich]



Este domingo de manhã no Jardim do Ginjal, sobre o Tejo, de frente para Lisboa, a Bela



                      Quem eu fui há vinte anos
                      veio hoje tomar-me pelo braço e perguntou:
                      o que fizeste de mim?

                      Respondi-lhe: fiz tudo quanto deixaste
                      que eu pudesse fazer.

                      A sombra sorriu de troça.
                      E desapareceu.

                      (Ainda preciso de desculpas
                      para tudo o que não fiz)



                ['A sombra' de Luís Filipe Castro Mendes in 'Lendas da Índia']
          

14 junho, 2012

Quem não amou assim? Quem não amou? Quem? Quem não amou está morto.


Quantas bocas beijei? Em quantas casas entrei? Em quantos corpos entrei?

Não interessa?

Eu acho que não, que não interessa.

Em cada um corpo procuro a minha casa. Cada homem tem uma única casa. Muitas outras pode frequentar mas, de entre todas, uma única será a sua casa.

Olho o rio e peço a verdade. Diz-me, diz-me que é esta a mulher que eu amo de verdade e que não preciso de procurar mais. 

Sinto-te, agarras-me as pernas, ris, brincas. Mas não basta.

Deixa-me sentir no teu corpo o sol que entra pela janela e pousa na parede, deixa sentir na tua pele a aragem que sopra de mansinho como numa cortina que ondula com leveza, deixa, deixa sentir a tua pele como se sentisse a colcha da nossa cama. Quero sentir-te tão familiar como a casa à qual quero regressar.

Olho o rio, olho ao longe, olho a luz que se reflecte nas águas e peço a verdade. Diz-me que és a minha casa, o meu rio, o corpo que me acolhe. Deixa-me olhar os teus olhos que eu quero ver-me neles. Quero que sejas sempre o espelho que me reflecte, quero que o teu olhar me diga o que sou.

Diz que sim, que és a minha mulher, o meu amor, a minha casa. Quero ouvir a tua voz como se fosse o eco da minha entre as paredes da minha casa. Deixa-me ver-te, ouvir-te, sentir-te.

Despe-te como se estivesses a abrir a cama para eu me deitar, deixa que eu beba a água fresca do teu corpo, deixa que eu entre em ti e acenda as luzes do teu olhar, deixa, deixa.

Olho o rio e penso que te amo tanto, mas tanto que acredito que quem nunca amou assim não sabe, não pode saber, o que é viver. Olho o rio e quase peço que rebentem as águas, que venham, que venham as águas, que nos lavem, que nos abençoem, que cubram os nossos corpos para sempre unidos. 




[Logo abaixo da imagem, um poema de grande beleza de Eugénio de Andrade. Ao contrário de um dos critérios secundários que costumo seguir, o de não serem muito longos, este é um poema longo. Mas a sua invulgar beleza leva-me a esquecer o tamanho. Logo a seguir um casamento segundo Wagner.]



À sombra rendilhada de uma árvore, no Jardim do Ginjal,  bem rente às águas do Tejo


                                        Que rompam as águas:
                                        é de um corpo que falo.
                                        Nunca tive outra pátria, nem outro espelho,
                                        nem outra casa.

                                        É de um rio que falo, desta margem onde soam ainda,
                                        leves,
                                        umas sandálias de oiro e de ternura.

                                        Aqui moram as palavras;
                                        as mais antigas,
                                        as mais recentes:
                                        mãe, árvore,
                                        adro, amigo.

                                        Aqui conheci o desejo
                                        mais sombrio,
                                        mais luminoso,
                                        a boca
                                        onde nasce o sol,
                                        onde nasce a lua.

                                        E sempre um corpo,
                                        sempre um rio;
                                        corpos ou ecos de colunas,
                                        rios ou súbitas janelas
                                        sobre dunas;
                                        corpos:
                                        dóceis, doirados montes de feno;
                                        rios:
                                        frágeis, frias flores de cristal.

                                        E tudo era água,
                                        água,
                                        desejo só
                                        de um pequeno charco de luz.

                                        De luz?
                                        Que sabemos nós
                                        dessas nuvens altas,
                                        dessas agulhas
                                        nuas
                                        onde o silêncio se esconde?
                                        Desses olhos redondos,
                                        agudos de verão,
                                        e tão azuis
                                        como se fossem beijos?

                                        Um corpo amei,
                                        um corpo, um rio,
                                        um pequeno tigre de inocência,
                                        com lágrimas esquecidas nos ombros,
                                        gritos
                                        adormecidos nas pernas,
                                        com extensas,
                                        arrefecidas
                                        primaveras nas mãos.

                                        Quem não amou
                                        assim? Quem não amou?
                                        Quem?
                                        Quem não amou
                                        está morto.

                                        Piedade,
                                        também eu sou mortal.
                                        Piedade
                                        por um lenço de linho
                                        debruado de feroz melancolia,
                                        por uma haste de espinheiro
                                        atirada contra o muro,
                                        por uma voz que tropeça
                                        e não alcança os ramos.

                                        De um corpo falei:
                                        que rompam as águas.


                                        ['Espelho' de Eugénio de Andrade' in 'Mar de Setembro']

Wagner - Eva Marton, Leonie Rysanek, Peter Hofmann e Leif Roar interpretam a Cena do Casamento da Ópera Lohengrin


12 junho, 2012

Nem sabes se grito por socorro ou se te mostro só que me inebrias


A ver se não me interpretas mal. Mas vou dizer-te como era a ver se te lembras. Estás acordado? Estás mesmo? Não te vejo abrir os olhos... Vá lá, ao menos abre os olhos. Oh pá, eu sei que não ouves com os olhos mas chateia-me falar com uma pessoa que está estendida de olhos fechados.

Bom. Então vou recordar-te. Querias que fosse eu a deitar-me. E tu é que ficavas sentado a olhar para mim e eu deitada. E dizias que eu, deitada, era uma ilha. Querias que eu me deitasse com o sol a dar-me em cima e olhavas. E dizias que os meus seios eram já nem me lembro o quê, parece que era promontórios,  ou seria colinas?, depois passavas-me a mão pelas pernas, e dizias... agora é que já não me lembro. E que a barriga era uma planície e mais não sei o quê e que o sexo era um bosque, vê tu bem.

E deitavas-te em cima de mim e dizias que ias navegar à volta dela, da ilha, dizias que ias entrar nos recantos, que ias descobrir os recantos da ilha. As coisas que tu dizias. E dizias para eu fechar os olhos, e eu deitada ao sol de olhos fechados, toda nua, ainda te lembras ou já nem isso...?

Estás a rir de quê...? Lembras-te, é? E falavas em madrugadas e em fulgores e em enseadas e o que eu gostava de te ouvir e o que eu gostava de sentir o sol a bater nas minhas enseadas...

E depois, por fim, gritavas e eu nem sabia se eras um marinheiro perdido no mar, se um marinheiro caído numa fundura da ilha e a gritar por socorro ou se estavas fora de ti, se eras um pássaro louco a gritar e a voar - ou se era eu que, no meio das estrelas, tinha deixado de perceber a tua voz. 

Lembras-te?

Já vi que sim. Já vi...

Como é que vi que sim...? Ora, ora... Há coisas que não mudam, meu amigo, meu amor, meu amante. Além disso quem agora olha para ti deitado e vê uma ilha sou eu.




[Bom... deve ser mesmo do Sto António... Logo abaixo do casal poderão ver a belíssima Ilha de David Mourão-Ferreira e, a seguir, uma belo trecho do Siegfried de Wagner.]



No romântico jardinzinho do Ginjal

                                     

                                     Deitada és uma ilha E raramente
                                     surgem ilhas no mar tão alongadas
                                     com tão prometedoras enseadas
                                     um só bosque no meio florescente

                                     promontórios a pique e de repente
                                     na luz de duas gémeas madrugadas
                                     o fulgor das colinas acordadas
                                     o pasmo da planície adolescente

                                     Deitada és uma ilha Que percorro

                                     descobrindo-lhe as zonas mais sombrias
                                     Mas nem sabes se grito por socorro

                                     ou se te mostro só que me inebrias
                                     Amiga amor amante amada eu morro
                                     da vida que me dás todos os dias



                                     ['Ilha' de David Mourão-Ferreira in 'Matura Idade']

*



Apenas um fio de intimidade nos une e nos separa
apenas a memória de uma vida inteira
um quase beijo
um quase gesto
um breve olhar
e o mar ansioso enlouquecido
invadindo o resto...

(vamos deixar?)



['Península' da Leitora 'Era uma Vez' nos Comentários aqui abaixo]

Wagner - Anne Evans e Siegfried Jerusalem interpretam a Ópera Siegfried


11 junho, 2012

Quando o tempo vier cingir-te o corpo quero que me conheças


Vem e vem e vem, todas e tantas vezes que o queiras, vem, vem, vem. Debruça-te sobre mim, cinge-me, cinge-me bem; que interessam os segredos que amordaçam o desejo? 

Vem, debruça-te sobre mim, banha-me com o teu olhar, com a tua saliva e, depois, seca-me, assim, com cuidado e macieza, com o perfume do teu cabelo. Arrepia-me com o deslizar lento do teu cabelo na minha pele, roça-me a pele devagar, devagar, devagar.

Vem sempre que te apeteça, vem e cinge-te a mim, cinge-te ao teu calor, cinge-te à tua vontade, cinge-me assim, abraça-me, cobre-me, cinge-me com força, com esperança, beija-me com toda a tua infantil liberdade. Vem, anda descobrir o meu corpo.

Vem antes que seja tarde. E mesmo que seja tarde, vem na mesma. Vem agora que o tempo ainda é breve, mas vem também quando muito tempo tiver passado e o cansaço nos cobrir o corpo - vem sempre.

O sol está quente, o rio brilha, a relva é macia e a terra está húmida, macia. Não esperes pela noite, que a noite vem rodeada de sigilos e sombras. Vem já. O teu corpo é ágil, flexível, quente, aromático, saboroso, debruça-te assim sobre mim, cinge-te a mim, afoga-me na tua carne e deixa-me morder-te, vem, deixa-me viver contigo uma grande aventura.



[Bem, ficamos por aqui. Logo abaixo do casal que se cinge ao essencial à beira do rio, encontraremos um belo poema de Gastão Cruz. Logo abaixo a grande voz de Placido Domingo adoça a grande música de Richard Wagner.]



'Esplendor na relva' - no idílico e pequeno Jardim do Ginjal, rente, rente a um Tejo brilhante



                         Quando o tempo cingindo esse
                         sigilo cingir-te te cingir a carne
                         toda se eu te cingir com ele
                         é porque a esperança
                         alterou o segredo
                         do mundo

                         Das noites quem esse abismo
                         todo já conhece quem de todo o espera
                         quando o tempo vier cingir-te o corpo
                         quero que me conheças
                         alteres e libertes
                         sobre o mundo

                         Quando o tempo cingindo-te
                         cingir esse cansaço esse rumor
                         da carne do amor da liberdade
                         é porque sobre o medo
                         a esperança altera
                         a aventura


                         ['Alteração - Quando o tempo cingindo esse' de Gastão Cruz in 'A doença']

                 

Wagner - Placido Domingo interpreta 'Winterstürme wichen dem Wonnemond' da ópera Die Walküre (A Valquíria)


10 junho, 2012

Confia. Eu sou romântica. Não falto.


Estávamos deitados ao sol, tu olhando-me e eu aflita, em silêncio amargo, pensando se calhar estás a ver as rugas que começam a desenhar-se junto aos meus olhos. A medo, tento perceber no que atentas. Mas olhas-me o olhar, não os olhos, e sorris, inocente.

Beijas-me ao sol, tu lagarto de sangue quente e eu, pequena ave insegura, perceberás a pele que vai perdendo a firmeza inicial? Enquanto me beijas, penso que o sol me é desfavorável, prefiro a sombra que oculta os traços da vida que passa por mim. Mas tu queres estar aqui, assim, ao sol, langoroso e rapaz viril.

Depois passas-me a mão lenta pelas ancas que adornam junto às margens do rio, e, quase indecente, chegas-te ainda a mais a mim. Aqui ao sol, a maresia a subir, quase quente, quase íntima. E eu a pensar que já não tem a firmeza de outros tempos este navio onde sempre embarcaste. Em silêncio, cheia de pudor, penso não quero que me vejas assim, não olhes para mim com tanto desejo, não me faças sentir tão adolescente, olha que já não o sou, não te iludas, amor. Anda para a sombra, deixa que me cubra com os ramos desta árvore, deixa. Mas nada digo, envergonhada, quase humilhada.

E então, enquanto por um instante olhas um navio que parte, levanto-me, rápida, fujo. Não mais me verás assim, frágil, perecível.

Mas voltarei, claro que voltarei, voltarei para ti. 

Por isso, espera por mim, amor, espera por mim aqui, neste sítio de grandes navios, de aves livres, que partem mas que, também, sempre chegam. Um dia voltarei, eterna, eterna, para sempre a menina dos teus sonhos, para sempre a tua mulher fértil e navegável. 




[A seguir à imagem da mulher que parte, poderão ver um belíssimo poema de Natália Correia e, logo abaixo, a abrir a semana dedicada a Wagner, dou passagem às Valquírias]



No Jardim do Ginjal, um pequeno jardim sobre o Tejo, de frente para Lisboa



                         Nada a fazer amor, eu sou do bando
                         impermanente das aves friorentas;
                         e nos galhos dos anos desbotando
                         já as folhas me ofuscam macilentas;

                         E vou com as andorinhas. Até quando?
                         À vida breve não perguntes: cruentas
                         rugas me humilham. Não mais em estilo brando
                         ave estroina serei em mãos sedentas.

                         Pensa-me eterna que o eterno gera
                         quem na amada o conjura. Além, mais alto,
                         em ileso beiral, aí espera:

                         andorinha indemne ao sobressalto
                         do tempo, núncia de perene primavera.                 
                         Confia. Eu sou romântica. Não falto.


                         ['O espírito' de Natália Correia in Poesia Completa]

Wagner - The Royal Danish Opera interpreta The Ride of the Valkyries


07 junho, 2012

Um amor como este não pede mar ou praia


- Olha o rio, amor, olha como hoje está tão calmo. Olha aquele barco tão bonito, já viste as velas? Olha como mudam de figura enquanto desliza. Parecem asas brancas. Repara, que lindo. E aquela gaivota ali, olha as asas, vê como vai ao sabor da aragem, repara, tão elegante. Já viste? Ah e este cheiro que vem da água, gosto tanto do aroma da maresia, amor, que bom, que fresco tão bom. Não estás a prestar atenção, não estás a ver como é tão bonito tudo isto. Amor, olha lá. E Lisboa ali, já viste? Há lá vista mais linda neste mundo? Gosto tanto, amor, gosto tanto de aqui estar contigo, amor, era capaz de aqui estar até ao fim da vida. 

Olha lá: para onde é que estás a olhar...?!

*

- Já vi o rio. É bonito, sim. Estou farto de ver, está igual ao que estava ontem e antes de ontem e antes de antes de ontem. Olha, bebe mas é aqui um gole, que está fresquinha. 

Em vez de aragem devia estar vento de leste para ver se te levantava ainda mais a saia... O que está por baixo é que nunca me canso de ver, aí é que está o meu futuro.

E estás com as pernas com boa cor, pareces um fruto doce e maduro. Vamos mas é indo antes que se faça tarde, que acho que está na hora de o colher.

*

[Abaixo do Tejo encontrarão um poema de que, há muito tempo, gosto muito. Daniel Filipe chega tarde ao Ginjal mas chega bem, é muito bem vindo. Logo a seguir, mais uma maravilhoso momento com grandes vozes, brilhantes interpretações. Continuamos com as óperas de Mozart.]


No Ginjal, sobre o Tejo de frente para Lisboa


                                   Um amor como este
                                   não pede mar ou praia:
                                   somente o vento leste
                                   erguendo a tua saia.

                                   O resto é futuro
                                   além, à nossa espreita:
                                   doce fruto maduro
                                   na hora da colheita.



['Balada para a trégua possível - 4' de Daniel Filipe in 'A invenção do amor e outros poemas']

Mozart - Cecilia Bartoli e Liliana Nikiteanu interpretam Cosi Fan Tuttem


05 junho, 2012

E se no fim não souberes o caminho, ergue a taça, transforma a água em vinho


Escuta com atenção. És pequenina, tenho que te explicar tudo. Vai aqui sossegada ao meu lado. Não corras porque é perigoso, o rio está já ali e, se correres, podes cair e depois não tens pé. Aliás, és tão pequenina que não tens pé em lado nenhum.

Ouve. Não te distraias, presta atenção. Quando chegarmos lá ao fundo, vamos dar meia volta e vamos para casa. Primeiro entro eu e só passado algum tempo é que entras tu, não vá alguém pensar que estou a desviar uma menor. Percebeste? Ficas ali ao pé dos bilhetes. Não saias dali nem vás com ninguém, ouviste?

Tocas duas vezes e eu abro logo a porta. Depois, quando estiveres lá dentro, fazes tudo como eu te disser, está bem? Não vais refilar nem fazer perguntas patetas, ouviste? Vais ser uma boa menina, caladinha. Se te portares bem, depois, levo-te ali a comer caracóis. Percebeste? Prestaste bem atenção às instruções, pequenita?

&

Olha, agora escuta-me tu, ó meu grandão trinca-espinhas. Julgas que estás a falar com quem? Com alguma miúda de cinco anos? Que chatice, esta, hem. Ainda não percebeste que não sou eu que sou pequenina, palerma...? Não vês que és tu que és grande demais? Queres que eu comece a falar contigo como se falasse com o Cristo-Rei? Que maçada esta. E todos os dias isto, credo.

E agora presta, tu, muita atenção. Quando dermos meia volta e tu entrares em casa antes de mim, o que eu vou fazer antes de entrar é comprar uma garrafa de vinho, pão, queijo e presunto, que eu acho que isso que levas no saco não chega. Por isso, enquanto estiveres à minha espera, fazes favor e pões a mesa para, quando eu chegar, estar tudo já pronto. E mais. Escuta com atenção a ver se percebes. A casa está fechada há alguns dias. Por isso, mal entres, abre logo as janelas e limpa o pó. Como está muito calor, para não ficares todos transpirado, despe-te todo. Todo. Pronto, está bem: para ficares mais composto à mesa podes pôr um avental. E, quando eu chegar, quem vai dizer como é sou eu, ouviste? E vais fazer direitinho tudo o que eu disser. Se te portares bem talvez ganhes um presente mas como estiveste para aí com conversa de parvalhão, agora não vou dizer qual é. Percebeste bem as instruções, meu tira-linhas?



[Bem, depois destas instruções, só me resta sugerir-vos que leiam também as instruções segundo Nuno Júdice. Logo abaixo mais um fantástico momento de Mozart e mais um dueto, desta vez um inesperado dueto]



No Ginjal ao fim da tarde: as paredes gastas, o Tejo, a Ponte e, claro, a graça dos contrastes



                            Entra no quarto sem abrir a porta,
                            vira as costas a andar em frente,
                            faz força com a mão que está morta,
                            puxa pelo futuro até ao presente.

                            Dá uma volta para ires a direito.
                            Sobe sempre que estiveres a descer,
                            faz asneiras para seres perfeito,
                            mostra tudo o que tens de esconder.

                             Ouve bem o ruído mais silencioso,
                             fala mais alto que o mais calado,
                             fecha a luz do candeeiro apagado,

                             chora por ti ao sentires gozo:
                             e se no fim não souberes o caminho,
                             ergue a taça, transforma a água em vinho.


                             [Instruções de Nuno Júdice in 'Guia de Conceitos Básicos']

*


IMAGINANDO


Hoje
faria tudo ao contrário acredita
não se escolhe a vida quando se é pequena
pequena demais
quando os sonhos são em turbilhão e se tem pressa de ser mulher
e na cabeça muita confusão

mulher princesa
todas as sissis do mundo
avistando cavalos brancos
onde a beleza é tão grande como a boca dos sapos que os cavalgam
para o fundo

um pequeno erro mais outro e outro
e a teia vai crescendo e esmagando
e já só vês nevoeiro
a conversa do amor primeiro
constrói as tuas verdadeiras algemas

és tão pequeno quando não te quero
sem mim ficas sem brilho
faltam-te argumentos
e então
sobram desencantos
esqueço sentimentos
e sonhos do passado

mas como esta vida não passa de passagem
falta-me tempo... falta-me coragem...


['Imaginando' de Era uma Vez nos comentários aqui abaixo]


Mozart - Vitellia Carol Neblett e Tatiana Troyanos interpretam 'Ah, perdona al primo affetto' da Ópera 'La Clemenza di Tito'


04 junho, 2012

Quando o cientista quase cego encontrou os binóculos...


Vem, meu velho, anda comigo neste barco, ajuda-me a levá-lo até ao mar. Alimentar-nos-emos de peixes. Observarei as espécies com estes binóculos, que os meus olhos já de pouco me servem. E, o que os meus olhos não virem, nem com binóculos, contas-me tu, meu velho. Dir-me-ás de que cor são os peixes, com a luz, ou com a sombra, se andam à superfície ou na fundura, dir-me-ás se andam em grupo ou solitários. Não te preocupes por não saberes de biologia marítima, meu velho, eu não sei levar o barco e eu mal vejo, ser-me-ás muito útil, está descansado. Estou a contratar-te tal como aluguei o barco. 

...

Tantos dias já passaram, meu velho, ou talvez meses, tantas voltas já demos aqui neste rio. Já me disseste que o vias azul, depois verde, outras vezes chumbo, outras prata, outras dizes-me que são de cobre estas águas. Gosto de te ouvir descrever este rio. E gosto das palavras que usas para me descreveres os peixes, os polvos, as algas, usas palavras que nunca li nos meus compêndios, tens a fala dos poetas. Pergunto-te pelo formato, pelo tamanho, pela cor e tu falas-me em dança, falas-me em brilho azul, em ondulações que transportam cores, falas-me num sol dourado que enleia peixes que deslizam levados pela música das marés. E quase vejo o que tu me descreves. Gostas que eu te conte dos meus livros, dos meus estudos. Mas eu sei tão pouco ao pé do que tu sabes, meu velho amigo. Que posso eu contar que verdadeiramente interesse?

...

Tantos meses já passaram, meu amigo, ou talvez anos, tantas e tantas voltas já demos aqui neste rio. Nunca vivi tempos tão felizes, meu amigo. Contigo tenho aprendido a liberdade, a amizade, o gosto pelas palavras. Olha, tenho uma novidade: hoje descobri os meus velhos óculos. Vou pô-los e vou também usar os binóculos. E hoje és tu, meu amigo, que te vais sentar porque hoje sou eu que vou descrever para ti aquilo que vejo.

Escuta, meu amigo. Já consigo ver. Fecha os teus olhos que hoje vais tu tentar ver através das minhas palavras. Estou deslumbrado, até me custa a acreditar, parece um sonho. Vejo as gaivotas brancas, de longas asas, que nos acompanham. Vejo, lá ao fundo os flamingos rosados, vejo abetardas e sisões, vejo tantos pássaros, meu amigo, tantos, de tantas cores. E olha, meu amigo, nas águas que hoje estão de todas as cores, vejo não peixes, meu amigo, mas sereias, tantas sereias, meu amigo, tantas, tantas, cardumes de sereias. Estão de seios descobertos, luzem ao sol e riem-se para nós. Escuta como cantam, escuta meu amigo, escuta como nos chamam. Ah meu amigo, tantas, tantas sereias. Ah meu amigo, ah meu amigo. Anda, abre os olhos, anda, anda... Ajuda-me a apanhá-las que elas saíram do mar e andam pelos ares a voar.



[Abaixo do veleiro poderão, meus Amigos, ler o poema de José-Alberto Marques que me inspirou. Logo abaixo um fantástico dueto: duas vozes maravilhosas ao serviço da maravilhosa música de Mozart]



Elegante veleiro, todo ele apenas mastros, atravessa o Tejo paralelamente à Ponte Vasco da Gama



                            Quando o cientista quase cego encontrou os binóculos
                            alugou um barco e um barqueiro
                            fizeram-se ao mar
                            andaram à deriva os anos que contaram felizes

                            alimentavam-se de estórias

                            até que um dia o cientista colou os binóculos aos óculos

                            foi quando viu cardumes de sereias
                            abetardas
                            sisões
                            sobrevoando o mar
                           


[6º Poema das Autografias de José-Alberto Marques in British Barthes]