Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

24 junho, 2012

Não te mexas. O futuro é perder o equilíbrio, cair até bater no fundo.


Olho-vos sem ser vista. 

Assim é habitualmente. Apenas uma vez, já o contei, alguém falou referindo-se a mim: eu ia a andar e a fotografar sem me dar conta da chuva e dois homens que passavam debaixo de um chapéu de chuva, comentaram 'de facto a chuva é uma coisa psicológica'. Nesse dia eles viram a chuva que os molhava a eles mas não a mulher que ali ia. Talvez isso acontecesse, não porque a chuva seja uma coisa psicológica mas porque sou transparente.

Passo pelo chão verde, sob as árvores macias, de renda verde, passo por vós, fotografo, páro, abeiro-me, debruço-me, fotografo, aspiro o ar fresco, e vocês não me vêem, e ninguém me vê. Se soubessem como é bom...

Agora aqui estou, livre, movendo-me no silêncio puro que habita este espaço mágico e fixo os efémeros momentos da vossa juventude, estes felizes momentos em que nenhum passado vos pesa nas almas.

Apontam o que está por vir, as águas que passam e que levam navios também de passagem, olham ao longe na mesma direcção e, se eu me aproximasse e vos perguntasse pelo futuro, vocês dir-me-iam que é luz, é música, é vida, é amor. Claro que eu não vos desmentiria, não vos falaria dos dias de insónia, nem das teias que se tecem para aprisionar os mais tristes, teias que pesam como pedras. Tentaria apenas, falar-vos de alguns hiatos escuros que se abrem sem aviso no caminho, deixando por vezes os mais incautos à margem da vida, no lado amargo da sombra. 

Mas nem isso vos digo. Para quê? A própria vida vos ensinará e é justo que assim seja.

Por isso, não vos digo nada. Sigo, transparente, imaterial, à vossa volta, pouso depois no vosso ombro  e, então, não resisto e, em silêncio, digo-vos ao ouvido, Não se mexam, não se mexam ainda. Depois, de novo, levanto voo, e fico a ver-vos assim, jovens, doces, olhando com inocente delícia os sonhos que se desenham no vosso horizonte.



[Já abaixo um belo poema de Inês Dias, um poema com um sugestivo nome e, logo a seguir, abrimos a semana com um novo compositor, um compositor de músicas de que vão, de certeza, gostar muito: Heitor Villa-Lobos]



Numa tarde de suave toque, na margem de um Tejo amavelmente azul, quase turquesa, no Jardim do Ginjal



                                 Não te mexas.

                                 O futuro é perder o equilíbrio,
                                 cair até bater no fundo
                                 de uma insónia hora a hora
                                 interrompida para respirar
                                 à superfície da luz.

                                 Não te mexas ainda.

                                 Não hesites, não assustes o sonho
                                 pousado em teia sobre ti,
                                 não agites as águas.
                                 E talvez a vida se deixe
                                 ficar à margem
                                 com os seus dias armados de pedras.





['Menina calçando a meia', (Estufa Fria, 1966), de Inês Dias in 'In Situ' com ilustrações de Daniela Gomes]

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