Um dia houve em que nos abraçámos ao espelho. A tarde estava dourada e nós amávamo-nos cheios de ternura, aquela ternura dourada que acontece uma vez na vida. O momento era efémero e nós quisemos ver-nos, amantes banhados por um sol coado. Abraçados, sorrindo com uma ternura triste que era já despedida.
Nunca mais aquele espelho devolveu a nossa imagem.
Sabíamos que a imagem sorridente no espelho acontecia no instante seguinte ao do sorriso. O sorriso pertencia, pois, já ao passado.
Deixei de me olhar naquele espelho. Não te veria.
Agora procuro outras superfícies se quero saber como é o meu olhar.
Olho o céu, olho o rio, olho a sombra que me acompanha na parede esventrada enquanto eu passo sozinha ao lado.
Olho-me, sobretudo, nos gatos que se esquivam, animais subtis e sábios. Olho-me nos gatos que descem, silenciosos, até à beira do rio. Olho-me nos gatos que se escondem nas raízes frescas das árvores, que saltam inesperadamente dos muros, que se esgueiram pelos beirais e de lá contemplam a lonjura, olho-me nos gatos que estendem o corpo ao sol deixando a cabeça à sombra, olho-me nos gatos que me olham de frente, olho-me nos olhos verdes dos gatos que me desafiam, olho-me nos olhos ardentes de paixão dos gatos que me reconhecem como uma deles.
E sei que a imagem que vejo está sempre à minha frente, uns instantes à frente no meu tempo e que os passos que dou ficam no passado.
Deixei, pois, de procurar o passado nas vítreas superfícies, é frágil essa superfície, é longínquo esse passado. Agora procuro a minha imagem no futuro, no tempo que está por vir, no vento, na luz, nas águas que correm, no olhar límpido dos gatos que me enfrentam. Eu sou aquela que ainda há-de ser.
[Logo a seguir ao incrédulo gato de belos olhos verdes, poderão ler o algo inquietante poema de Frederico Lourenço e, logo abaixo, um Choro de Heitor Villa-Lobos]
Ver-me ao espelho neste momento é ter sido agora.
Ter sido em simultâneo com a imagem de eu ser,
ou ser na decalagem do reflexo de ter sido;
ver-me e saber que não sou quem eu vejo,
que a imagem de mim é vítrea miragem,
que o meu corpo reflectido é estilhaço de cristal
no passado ainda próximo onde o presente é vivido.
O reflectido já de si está perdido de antemão -
ou estaria se o nácar não brilhasse toda a tarde
na luz de madrepérola que cintila no espelho,
iluminando o instante em que já não sou eu.
['Poema III, No Espelho,1.2ª parte' de Frederico Lourenço in 'Clara Suspeita de Luz']
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