Quantas bocas beijei? Em quantas casas entrei? Em quantos corpos entrei?
Não interessa?
Eu acho que não, que não interessa.
Em cada um corpo procuro a minha casa. Cada homem tem uma única casa. Muitas outras pode frequentar mas, de entre todas, uma única será a sua casa.
Olho o rio e peço a verdade. Diz-me, diz-me que é esta a mulher que eu amo de verdade e que não preciso de procurar mais.
Sinto-te, agarras-me as pernas, ris, brincas. Mas não basta.
Deixa-me sentir no teu corpo o sol que entra pela janela e pousa na parede, deixa sentir na tua pele a aragem que sopra de mansinho como numa cortina que ondula com leveza, deixa, deixa sentir a tua pele como se sentisse a colcha da nossa cama. Quero sentir-te tão familiar como a casa à qual quero regressar.
Olho o rio, olho ao longe, olho a luz que se reflecte nas águas e peço a verdade. Diz-me que és a minha casa, o meu rio, o corpo que me acolhe. Deixa-me olhar os teus olhos que eu quero ver-me neles. Quero que sejas sempre o espelho que me reflecte, quero que o teu olhar me diga o que sou.
Diz que sim, que és a minha mulher, o meu amor, a minha casa. Quero ouvir a tua voz como se fosse o eco da minha entre as paredes da minha casa. Deixa-me ver-te, ouvir-te, sentir-te.
Despe-te como se estivesses a abrir a cama para eu me deitar, deixa que eu beba a água fresca do teu corpo, deixa que eu entre em ti e acenda as luzes do teu olhar, deixa, deixa.
Olho o rio e penso que te amo tanto, mas tanto que acredito que quem nunca amou assim não sabe, não pode saber, o que é viver. Olho o rio e quase peço que rebentem as águas, que venham, que venham as águas, que nos lavem, que nos abençoem, que cubram os nossos corpos para sempre unidos.
[Logo abaixo da imagem, um poema de grande beleza de Eugénio de Andrade. Ao contrário de um dos critérios secundários que costumo seguir, o de não serem muito longos, este é um poema longo. Mas a sua invulgar beleza leva-me a esquecer o tamanho. Logo a seguir um casamento segundo Wagner.]
À sombra rendilhada de uma árvore, no Jardim do Ginjal, bem rente às águas do Tejo |
Que rompam as águas:
é de um corpo que falo.
Nunca tive outra pátria, nem outro espelho,
nem outra casa.
É de um rio que falo, desta margem onde soam ainda,
leves,
umas sandálias de oiro e de ternura.
Aqui moram as palavras;
as mais antigas,
as mais recentes:
mãe, árvore,
adro, amigo.
Aqui conheci o desejo
mais sombrio,
mais luminoso,
a boca
onde nasce o sol,
onde nasce a lua.
E sempre um corpo,
sempre um rio;
corpos ou ecos de colunas,
rios ou súbitas janelas
sobre dunas;
corpos:
dóceis, doirados montes de feno;
rios:
frágeis, frias flores de cristal.
E tudo era água,
água,
desejo só
de um pequeno charco de luz.
De luz?
Que sabemos nós
dessas nuvens altas,
dessas agulhas
nuas
onde o silêncio se esconde?
Desses olhos redondos,
agudos de verão,
e tão azuis
como se fossem beijos?
Um corpo amei,
um corpo, um rio,
um pequeno tigre de inocência,
com lágrimas esquecidas nos ombros,
gritos
adormecidos nas pernas,
com extensas,
arrefecidas
primaveras nas mãos.
Quem não amou
assim? Quem não amou?
Quem?
Quem não amou
está morto.
Piedade,
também eu sou mortal.
Piedade
por um lenço de linho
debruado de feroz melancolia,
por uma haste de espinheiro
atirada contra o muro,
por uma voz que tropeça
e não alcança os ramos.
De um corpo falei:
que rompam as águas.
['Espelho' de Eugénio de Andrade' in 'Mar de Setembro']
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