A ver se não me interpretas mal. Mas vou dizer-te como era a ver se te lembras. Estás acordado? Estás mesmo? Não te vejo abrir os olhos... Vá lá, ao menos abre os olhos. Oh pá, eu sei que não ouves com os olhos mas chateia-me falar com uma pessoa que está estendida de olhos fechados.
Bom. Então vou recordar-te. Querias que fosse eu a deitar-me. E tu é que ficavas sentado a olhar para mim e eu deitada. E dizias que eu, deitada, era uma ilha. Querias que eu me deitasse com o sol a dar-me em cima e olhavas. E dizias que os meus seios eram já nem me lembro o quê, parece que era promontórios, ou seria colinas?, depois passavas-me a mão pelas pernas, e dizias... agora é que já não me lembro. E que a barriga era uma planície e mais não sei o quê e que o sexo era um bosque, vê tu bem.
E deitavas-te em cima de mim e dizias que ias navegar à volta dela, da ilha, dizias que ias entrar nos recantos, que ias descobrir os recantos da ilha. As coisas que tu dizias. E dizias para eu fechar os olhos, e eu deitada ao sol de olhos fechados, toda nua, ainda te lembras ou já nem isso...?
Estás a rir de quê...? Lembras-te, é? E falavas em madrugadas e em fulgores e em enseadas e o que eu gostava de te ouvir e o que eu gostava de sentir o sol a bater nas minhas enseadas...
E depois, por fim, gritavas e eu nem sabia se eras um marinheiro perdido no mar, se um marinheiro caído numa fundura da ilha e a gritar por socorro ou se estavas fora de ti, se eras um pássaro louco a gritar e a voar - ou se era eu que, no meio das estrelas, tinha deixado de perceber a tua voz.
Lembras-te?
Já vi que sim. Já vi...
Como é que vi que sim...? Ora, ora... Há coisas que não mudam, meu amigo, meu amor, meu amante. Além disso quem agora olha para ti deitado e vê uma ilha sou eu.
[Bom... deve ser mesmo do Sto António... Logo abaixo do casal poderão ver a belíssima Ilha de David Mourão-Ferreira e, a seguir, uma belo trecho do Siegfried de Wagner.]
No romântico jardinzinho do Ginjal |
Deitada és uma ilha E raramente
surgem ilhas no mar tão alongadas
com tão prometedoras enseadas
um só bosque no meio florescente
promontórios a pique e de repente
na luz de duas gémeas madrugadas
o fulgor das colinas acordadas
o pasmo da planície adolescente
Deitada és uma ilha Que percorro
descobrindo-lhe as zonas mais sombrias
Mas nem sabes se grito por socorro
ou se te mostro só que me inebrias
Amiga amor amante amada eu morro
da vida que me dás todos os dias
['Ilha' de David Mourão-Ferreira in 'Matura Idade']
*
Apenas um fio de intimidade nos une e nos separa
apenas a memória de uma vida inteira
um quase beijo
um quase gesto
um breve olhar
e o mar ansioso enlouquecido
invadindo o resto...
(vamos deixar?)
PENÍNSULA
ResponderEliminarApenas um fio de intimidade nos une e nos separa
apenas a memória de uma vida inteira
um quase beijo
um quase gesto
um breve olhar
e o mar ansioso enlouquecido
invadindo o resto...
(vamos deixar?)
Olá Erinha,
ResponderEliminarChegadinha aqui ao Ginjal na noite de Sto. António, em vez de arquinho e balão, veio com um belo poema na mão.
(quase versejei, viu...?)
Pois bem: já lá está em cima e, uma vez mais, muito bem acompanhada.
David Mourão-Ferreira disse 'Ilha'? Pois então, a Erinha responde-lhe: 'Península!'
E nós, leitores atentos, agradecemos porque nunca é de mais agradecer as belas palavras dos Poetas.
Um beijinho, Erinha, e, claro, muito obrigada!!!!!!
Amiga:
ResponderEliminarDavid, o grande David, aquele que tão bem sabia amar as mulheres! Como ele nos conhecia.
A "Península" da Erinha, deixou-me boquiaberta. Escreva mais, Erinha.
A sua prosa Amiga, trouxe-me lembranças, fez-me sorrir, coisa que pensei já não saber fazer.
Sabe? Faz hoje 46 anos, que eu e o meu marido, nos conhecemos. O que o seu belo texto me fez lembrar, desse tempo.
Obrigada, Amiga.
Abraço grande
Mary
Olá Mary,
EliminarDavid Mourão-Ferreira era O Grande Sedutor. Nas poesias que fazia, na forma como lia poesia (a dele e a dos outros), na forma como falava, tudo, era mesmo um sedutor.
Quando andava à procura de uma fotografia dei com a que escolhi e resolvi inverter os dizeres de uma forma que acompanhasse o avançar do tempo.
Mas o tempo quando avança com 'jeitinho', altera algumas coisas mas não altera os verdadeiros sentimentos e, por isso, com pitada de humor e pitada de amor, escrevi aquilo. Enquanto estava a escrever também me estava a rir.
Espero, Mary, que muitos mais anos viva ainda junto do seu amor, que vivam felizes, tranquilos, desfrutando em harmonia a companhia um do outro.
Quanto ao poema da Erinha, já sabemos que ela é 'aquela máquina': inspirada, festiva, com uma escrita luminosa. Um dia vai dar que falar, sei que vai.
Um beijinho, Mary!
Olá cara UJM:
ResponderEliminarBelíssima escolha para dia de Sto António.
Uma pérola de David Mourão Ferreira, o sedutor seduzido pela presença cálida e secreta do corpo feminino.
Esta “Ilha”, corpo transfigurado, a mais bela topografia do imaginário erótico.
E venham mais poetas com belas e sedutoras palavras!
Dia feliz!
Abraço amigo da
Luísa sobe a calçada
Olá Luísa que vem subindo a calçada,
EliminarSto António, na minha cabeça, é casório, festa, marchinhas populares.
Por isso me apeteceu ter o Grande Sedutor mas arranjar maneira de lhe dar a volta. Aquela fotografia foi o pretexto perfeito para dar a volta, louvando, de passagem, os amores longos e felizes.
O avanço do tempo muda as topografias do amor mas até essa mudança pode ser encarada com humor e ternura.
E, a propósito de poemas, se mal lhe pergunto... e para quando mais poemas? Ainda tenho na cabeça aquele navio chamado Poesia e, depois, renomeado Utopia.
Estamos à espera, Luísa...
Um abraço expectante.
Queridas amigas
ResponderEliminarComo é bom ler as vossas palavras...
Não imaginam o bem que me fazem.
Para si Erinha muito obrigada pela forma como sempre me recebe e para si Mary não deixe nunca que um amor tão bonito se transforme em península. Que que tenha a dimensão do mar e o calor do deserto.Sempre. Um abraço para ambas.
Olá Erinha,
ResponderEliminarEu sou a Jeitinho... Quem me dera ser igual à Erinha nos dotes poéticos mas, para minha pouca sorte, Erinha só há uma...
Claro que a recebo sempre de portas abertas. É uma honra para mim ter aqui uma Poeta (ou Poetisa, nunca sei bem como dizer) assim e um dia os estudiosos ainda haverão de andar por aqui à procura de poemas seus acabadinhos de fazer e logos aqui colocados.
Ponho-me também ao seu lado nos votos de amor para sempre à Mary, a ver se ela se anima!
Beijinhos às duas!