Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

18 junho, 2012

Este rochedo que me suga os anos e morde, devagar, a memória da vida


Dias houve em que eu vinha num veleiro branco, passava por aqui, deslizava sobre a água. Havia um silêncio reverente, uma respiração fresca e azul, e as aves de grandes asas brancas acompanhavam-me, nobre companhia eu tinha, então.

O veleiro avançava e era como se fosse eu a caminhar sobre as ondas que se esbatiam para melhor eu avançar. E, ao meu lado, caminhava o menino que eu fora, a mãe que me defendia dos seus medos sombrios, a irmã que me dava a mão e sorria, protegida e inocente. 

Até que um dia a minha mãe, a minha irmã e o menino que eu fora saíram voando e entraste tu, pássaro branco, gritos de princesa em chamas.

Passei, então, a atravessar estas águas deitado no fundo do veleiro, entrando vitorioso nas noites cúmplices, às vezes cantando e gritando nos épicos entardeceres que nos envolviam, outras vezes saciado, abraçado, aconchegado, respirando o ar dourado do sol, respirando a vida que voava fremente em nossa volta.

Mas esse tempo também passou. Um dia saíste voando. 

E depois saí eu também. Desapareci. Dizem que não sabem de mim. O veleiro voltou sozinho, encontrou o seu lugar e agora ali está, parado, sem dono.

Eu, prendi-me a este rochedo à beira deste rio que tantas vezes cruzei e vivo debaixo do mar. Ninguém me vê, não vejo ninguém. Quando a noite avança sedenta, sombria, arrastando os seus fantasmas, eu saio da água e sento-me, em silêncio, sobre este rochedo à beira da água, sempre preso por pesada corrente, sempre esperando que um cão vadio, uma mulher da noite, um pássaro perdido se chegue a mim e me faça companhia. E espero que a memória de outras vidas se afogue, em silêncio também.



[Abaixo do rochedo poderão ver um belo e silencioso poema do novíssimo livro de poemas de Armando Silva Carvalho. E, logo a seguir, uma música lindíssima. É Shotakovich que, por estes dias, aqui nos maravilha]



Na beira Tejo, junto a Belém



                           Quem ama o tempo como eu nesta manhã de ruídos
                           que se afastam de mim e me fazem sentir
                           vazio no meio do mar?
                           Quem devora este ar tão benfazejo à boca
                            e ao replicar das ondas
                            nos ouvidos como sinos de água?

                            Um tempo que se curva,
                            com o início nos joelhos dobrados da infância,
                            na mãe obsessiva,
                            e vem,
                            como de onda em onda,
                            transportando as dores, até este rochedo
                            que me suga os anos
                            e morde, devagar, a memória
                            da vida.


                            ['Vazio no meio do mar' de Armando Silva Carvalho in 'De Amore', Maio 2012]

     
                         

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