Dias houve em que eu vinha num veleiro branco, passava por aqui, deslizava sobre a água. Havia um silêncio reverente, uma respiração fresca e azul, e as aves de grandes asas brancas acompanhavam-me, nobre companhia eu tinha, então.
O veleiro avançava e era como se fosse eu a caminhar sobre as ondas que se esbatiam para melhor eu avançar. E, ao meu lado, caminhava o menino que eu fora, a mãe que me defendia dos seus medos sombrios, a irmã que me dava a mão e sorria, protegida e inocente.
Até que um dia a minha mãe, a minha irmã e o menino que eu fora saíram voando e entraste tu, pássaro branco, gritos de princesa em chamas.
Passei, então, a atravessar estas águas deitado no fundo do veleiro, entrando vitorioso nas noites cúmplices, às vezes cantando e gritando nos épicos entardeceres que nos envolviam, outras vezes saciado, abraçado, aconchegado, respirando o ar dourado do sol, respirando a vida que voava fremente em nossa volta.
Mas esse tempo também passou. Um dia saíste voando.
E depois saí eu também. Desapareci. Dizem que não sabem de mim. O veleiro voltou sozinho, encontrou o seu lugar e agora ali está, parado, sem dono.
Eu, prendi-me a este rochedo à beira deste rio que tantas vezes cruzei e vivo debaixo do mar. Ninguém me vê, não vejo ninguém. Quando a noite avança sedenta, sombria, arrastando os seus fantasmas, eu saio da água e sento-me, em silêncio, sobre este rochedo à beira da água, sempre preso por pesada corrente, sempre esperando que um cão vadio, uma mulher da noite, um pássaro perdido se chegue a mim e me faça companhia. E espero que a memória de outras vidas se afogue, em silêncio também.
[Abaixo do rochedo poderão ver um belo e silencioso poema do novíssimo livro de poemas de Armando Silva Carvalho. E, logo a seguir, uma música lindíssima. É Shotakovich que, por estes dias, aqui nos maravilha]
Na beira Tejo, junto a Belém |
Quem ama o tempo como eu nesta manhã de ruídos
que se afastam de mim e me fazem sentir
vazio no meio do mar?
Quem devora este ar tão benfazejo à boca
e ao replicar das ondas
nos ouvidos como sinos de água?
Um tempo que se curva,
com o início nos joelhos dobrados da infância,
na mãe obsessiva,
e vem,
como de onda em onda,
transportando as dores, até este rochedo
que me suga os anos
e morde, devagar, a memória
da vida.
['Vazio no meio do mar' de Armando Silva Carvalho in 'De Amore', Maio 2012]
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