Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

05 junho, 2012

E se no fim não souberes o caminho, ergue a taça, transforma a água em vinho


Escuta com atenção. És pequenina, tenho que te explicar tudo. Vai aqui sossegada ao meu lado. Não corras porque é perigoso, o rio está já ali e, se correres, podes cair e depois não tens pé. Aliás, és tão pequenina que não tens pé em lado nenhum.

Ouve. Não te distraias, presta atenção. Quando chegarmos lá ao fundo, vamos dar meia volta e vamos para casa. Primeiro entro eu e só passado algum tempo é que entras tu, não vá alguém pensar que estou a desviar uma menor. Percebeste? Ficas ali ao pé dos bilhetes. Não saias dali nem vás com ninguém, ouviste?

Tocas duas vezes e eu abro logo a porta. Depois, quando estiveres lá dentro, fazes tudo como eu te disser, está bem? Não vais refilar nem fazer perguntas patetas, ouviste? Vais ser uma boa menina, caladinha. Se te portares bem, depois, levo-te ali a comer caracóis. Percebeste? Prestaste bem atenção às instruções, pequenita?

&

Olha, agora escuta-me tu, ó meu grandão trinca-espinhas. Julgas que estás a falar com quem? Com alguma miúda de cinco anos? Que chatice, esta, hem. Ainda não percebeste que não sou eu que sou pequenina, palerma...? Não vês que és tu que és grande demais? Queres que eu comece a falar contigo como se falasse com o Cristo-Rei? Que maçada esta. E todos os dias isto, credo.

E agora presta, tu, muita atenção. Quando dermos meia volta e tu entrares em casa antes de mim, o que eu vou fazer antes de entrar é comprar uma garrafa de vinho, pão, queijo e presunto, que eu acho que isso que levas no saco não chega. Por isso, enquanto estiveres à minha espera, fazes favor e pões a mesa para, quando eu chegar, estar tudo já pronto. E mais. Escuta com atenção a ver se percebes. A casa está fechada há alguns dias. Por isso, mal entres, abre logo as janelas e limpa o pó. Como está muito calor, para não ficares todos transpirado, despe-te todo. Todo. Pronto, está bem: para ficares mais composto à mesa podes pôr um avental. E, quando eu chegar, quem vai dizer como é sou eu, ouviste? E vais fazer direitinho tudo o que eu disser. Se te portares bem talvez ganhes um presente mas como estiveste para aí com conversa de parvalhão, agora não vou dizer qual é. Percebeste bem as instruções, meu tira-linhas?



[Bem, depois destas instruções, só me resta sugerir-vos que leiam também as instruções segundo Nuno Júdice. Logo abaixo mais um fantástico momento de Mozart e mais um dueto, desta vez um inesperado dueto]



No Ginjal ao fim da tarde: as paredes gastas, o Tejo, a Ponte e, claro, a graça dos contrastes



                            Entra no quarto sem abrir a porta,
                            vira as costas a andar em frente,
                            faz força com a mão que está morta,
                            puxa pelo futuro até ao presente.

                            Dá uma volta para ires a direito.
                            Sobe sempre que estiveres a descer,
                            faz asneiras para seres perfeito,
                            mostra tudo o que tens de esconder.

                             Ouve bem o ruído mais silencioso,
                             fala mais alto que o mais calado,
                             fecha a luz do candeeiro apagado,

                             chora por ti ao sentires gozo:
                             e se no fim não souberes o caminho,
                             ergue a taça, transforma a água em vinho.


                             [Instruções de Nuno Júdice in 'Guia de Conceitos Básicos']

*


IMAGINANDO


Hoje
faria tudo ao contrário acredita
não se escolhe a vida quando se é pequena
pequena demais
quando os sonhos são em turbilhão e se tem pressa de ser mulher
e na cabeça muita confusão

mulher princesa
todas as sissis do mundo
avistando cavalos brancos
onde a beleza é tão grande como a boca dos sapos que os cavalgam
para o fundo

um pequeno erro mais outro e outro
e a teia vai crescendo e esmagando
e já só vês nevoeiro
a conversa do amor primeiro
constrói as tuas verdadeiras algemas

és tão pequeno quando não te quero
sem mim ficas sem brilho
faltam-te argumentos
e então
sobram desencantos
esqueço sentimentos
e sonhos do passado

mas como esta vida não passa de passagem
falta-me tempo... falta-me coragem...


['Imaginando' de Era uma Vez nos comentários aqui abaixo]


9 comentários:

  1. ERA UMA VEZ06 junho, 2012

    IMAGINANDO

    HOJE
    faria tudo ao contrário acredita
    não se escolhe a vida quando se é pequena
    pequena demais
    quando os sonhos são em turbilhão e se tem pressa de ser mulher
    e na cabeça muita confusão

    mulher princesa
    todas as sissis do mundo
    avistando cavalos brancos
    onde a beleza é tão grande como a boca dos sapos que os cavalgam
    para o fundo

    um pequeno erro mais outro e outro
    e a teia vai crescendo e esmagando
    e já só vês nevoeiro
    a conversa do amor primeiro
    constrói as tuas verdadeiras algemas

    és tão pequeno quando não te quero
    sem mim ficas sem brilho
    faltam-te argumentos
    e então
    sobram desencantos
    esqueço sentimentos
    e sonhos do passado

    mas como esta vida não passa de passagem
    falta-me tempo... falta-me coragem...

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  2. Olá Erinha,

    Que alegria sinto quando me aparece um poema seu aqui nos comentários. Faz-me lembrar a alegria que sentia, em pequena, quando me saía o brinde no bolo rei!

    Que belo poema. Como sempre não é apenas a musicalidade da poesia mas, também, a história que conta. Gostei imenso, como é claro e, portanto, já la está ao pé do poema do Nuno Júdice.

    Obrigada, Erinha.

    Um beijinho e bom feriado!

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  3. Caramba! Nuno Júdice merece melhor sorte que tal acompanhamento. Isto é estupidez ou ingenuidade?

    Maria Luísa de Álvares

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    1. Cara Maria Luísa de Álvares,

      O seu comentário está agora também associado a este espaço que contém o poema de Nuno Júdice e também não sei se a agressividade ou desdém das suas palavras serão a melhor companhia para ele.

      Do que conheço da poesia de Nuno Júdice intuo que seja poeta que não alimenta preconceitos.

      Sugiro que leia uma vez mais o poema a que se refere e verá, certamente, a qualidade em que não reparou.

      Um dia, estou certa, a autora vai ter obra publicada e reconhecida e, nessa altura, recorde-se deste seu comentário.

      Volte sempre mas já agora, de preferência, não para me chamar ingénua ou estúpida, está bem?

      Um bom feriado para si, Maria Luísa Álvares.

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    2. Tem razão a autora do poema: no seu nome esqueci-me do 'de'. Não foi intencional.

      Aqui fica, pois, reposta a integridade do seu nome, Maria Luísa de Álvares.

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  4. ERA UMA VEZ07 junho, 2012

    Querido Jeitinho

    CUIDADO: Olhe que se esqueceu do "DE"...no nome da senhora...
    Francamente...

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    1. Pois foi, Erinha: sem querer, tinha-o deixado cair. Mas já me redimi do erro.

      Obrigada pelo reparo e... venham daí mais poemas!

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  5. Velho livreiro07 junho, 2012

    Acompanho de perto este e outros blogues que publicam poemas.
    Fiquei espantado com o que li ao passar.
    Para Um jeito Manso a minha admiração pelo seu talento, sensibilidade e determinação.

    Para a comentadora em causa que aprecio muito e encontro também noutros blogues, os meus parabéns por tudo quanto escreve.
    Costumo ler os seus textos no Fio de Prumo de Helena Sacadura Cabral e no Tim tim no Tibete, embaixador e poeta, por acaso muito próximo de N.Júdice.

    Vá em frente. A sua poesia é excelente.

    Quanto ao nome da senhora, minhas caras, não se preocupem.Nunca ouvi falar mas podia chamar-se Manuel José ou Carlos Queiroz.
    São todos iguais.

    Receio que sejam estes pérfidos anticorpos que inquinem o nosso desenvolvimento como País.
    Pequenos e invejosos uns dos outros, ai de quem mostrar algum mérito.

    Felicidades para as duas.

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    1. Caro Velho Livreiro,

      Tocou-me o seu comentário. Muito obrigada.

      Escrevo sem saber quem me lê e quando do desconhecido me chega uma voz como a sua, fico sensibilizada.

      Fico agradecida por saber que costuma ler o que aqui vou deixando mas fico ainda mais pelas suas palavras de estímulo à Leitora Era uma Vez.

      E acho que tem razão: há uma qualquer coisa em grande parte de nós (nós, portugueses) que nos leva a querer destruir o que é novo, o que é diferente, o inesperado. Desvalorizamos os que ainda não são reconhecidos em vez de os apoiarmos e incentivarmos. Felizmente não somos todos assim.

      E por isso, agradavelmente surpreendida pelas suas palavras, uma vez mais lhe agradeço.

      Muitas felicidades também para si, Velho Livreiro.

      PS: Adoro esse nome, 'Velho Livreiro', pois adoro livros, adoro livrarias, acho que a profissão de livreiro deve ser maravilhosa e, ainda que não tivesse sido essa a sua profissão, mas tão só um amante de livros, só o facto de se auto nomear assim, já é um bom sinal.

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