Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

29 março, 2012

A dança vem do colorir da mente, e o amor de um toque invisível

 
Assim és tu, mulher que olhas de frente os pássaros azuis; e assim sou eu que desço até ao rio cujo azul se adensa com o cair da noite.

Estremeces, sentindo que todas as partículas luminosas que atravessam os ares, carregadas do azul do céu e dos mares, desde as luzes do cais, às luzes da cidade, à grande luz azul do farol, até às luzes felizes que dançam dentro dos teus olhos, são formas de te aproximar do teu amor longínquo. Assim estremeço eu também.

Não chove e o ar está seco, as árvores estão secas, as pétalas secas tombam junto aos nossos pés atordoados e, lá longe, o meu amigo tem os olhos secos de tanta solidão. 

Mas o ar transporta estas invisíveis partículas azuis que trazem e levam dentro de si indizíveis afagos. As que hoje de noite pousaram no meu rosto, depois de dançarem em lânguidos e quase fantasmagóricos movimentos, atravessaram continentes, cruzaram um oceano, voaram lá de bem longe e trazem ainda o calor terno e bom do olhar sem lágrimas de um secreto ser que habita bem longe, um amigo silencioso, alguém que gosta de olhar as montanhas, de sentir os ventos, alguém que tem um bom e triste coração.

Hoje, de noite, quando vi o rio, já não havia faluas no Tejo e as gaivotas já dormiam no fundo do mar. Mas hoje, repito, hoje senti que um secreto e longínquo lamento, solto no vento, fragmentado em miríades de pequenas e luminosas partículas azuis, vinha dançando no ar, vinha colorir a minha mente, beijava-me com uma suavidade quase dormente.

Por isso, não deixes, amigo, não deixes que a ternura seque dentro do teu coração, deixa, deixa, amigo, deixa que as minhas palavras para sempre povoem o teu olhar.



[A rapariga da pele carmim - que, acima, se transformou na rapariga de pele azul - começou aqui abaixo, nas mãos de Ana Marques Gastão. A seguir, hoje, uma música de invulgar harmonia. É Mendelssohn a despedir-se]

Painel pintado numa parede da cidade de Almada, no Largo Gil Vicente, ex-Largo do Repuxo


                          Estremeço, estrangeira.
                          Estranhas, rodo as maçãs
                          entranhadas no rosto;
                          sujeito-as ao pó de arroz,
                          sabendo que, ao toque,
                          são início e logo fim,
                          laboriosa dança.

                          A dança vem do repouso,
                          de luminosas partículas,
                          e também do movimento,
                          mas já sem lamento.
                          A dança vem do colorir
                          da mente, e o amor
                          de um toque invisível.


                          ['Pele de Carmim' de Ana Marques Gastão in Adornos]

                     

Mendelssohn - Os Quartetos Borodin e Fine Arts interpretam o Octeto em Ré maior


28 março, 2012

A solidão é nua

A matéria explode mansamente à nossa frente e, de dentro de todas as coisas, nascem penumbras, céus ofuscados, horizontes que se dissolvem, e os navios rompem os mares e deslizam com lenta majestade, e, aos poucos, muito ao de leve, a cidade ilumina-se, e tudo é tranquilo, antigo, e as luzes que avançam sobre nós vêm do início dos tempos, e as estrelas desenham-se, com mil pudores, e o azul tolda-se e o poente vem, voando com doçura, abraçando-nos com brandas melancolias.

Quem por aqui passa neste momento de suave desmoronamento, sustém as palavras, quase fecha os olhos, quase sustém a respiração, quase ajoelha, quase implora a bênção, quase chora de emoção, quase beija o chão ou o mar ou o céu. 

E as luzes deste navio que vem aquietar-se no nosso colo abrem caminhos no nosso peito e as aves de grandes asas brancas recolhem-se e, de longe, vigiam o pasmo das pessoas e, então, pouco depois, cai o pano. É a noite que chega, envolta num subtil assombro.



[Ah, não deixem de respirar o Adagio já aqui abaixo e, logo de seguida, não deixem, por favor, de ouvir a grande música de Mendelssohn]

Fim de tarde no Ginjal, o Tejo aos pés, Lisboa quase na penumbra



                    O ocaso compõe o seu adágio
                    de uma plácida melancolia majestosa.
                    As luzes acendem-se nos vidros
                    enquanto perdura o vermelho   rastro do poente.
                    Um ténue e total desmoronamento
                    abre-nos à antiguidade da matéria.
                    A solidão é nua. A atenção respira.
                    Ouve-se o longínquo latido de um insecto.
                    Caravanas de nuvens atravessam a água.
                    De tudo o que flui e quase imóvel perdura
                    nos vem a lenta protecção tranquila.
                    Dir-se-ia que o intacto sorri em nós e no mundo
                    enquanto uma frágil estrela se acende no azul.


                    [Adágio de António Ramos Rosa in Antologia Poética]

Mendelssohn - Alexander Shelley conduz a Simon Bolivar Youth Orchestra em Midsummer night's dream, scherzo

27 março, 2012

Então acordo e sinto a meu lado o esplendor tranquilo da amada que respira, adormecida sobre o flanco

 
Abres a janela e dizes que já é dia, que me chegue a ti, que me deite no teu ombro, que acorde. Protesto, quero dormir mais. Abraças-me e dizes que já é dia, que me chegue a ti. Protesto, quero dormir mais.

Tantas vezes isto, tantas.

Outras vezes acordo e estás a olhar para mim, dizes que já estás assim há muito tempo e eu olho pela janela aberta e vejo os pássaros pousados na varanda. Olham-me também. E eu protesto, não gosto de acordar a sentir-me observada. E tu dizes que já é dia, que acorde e que me chegue a ti. E eu protesto, não quero que me olhes, quero dormir mais.

Tantas vezes isto, tantas.

Mas, outras vezes, raras vezes, acordo e estou sozinha, ninguém me acorda, ninguém me olha, a janela está fechada, a luz não entra, os pássaros não olham. Fico, então, admirada, sem saber de ti, sem saber que dia vai ser aquele que começa assim, tão estranho, tão solitário. 

Penso, então, só para mim, em segredo, que o teu olhar e o teu abraço enchem de claridade o começo dos meus dias. Mas que ninguém me ouça...



[Em silêncio, rente à claridade do dia, sigamos até à lírica de Fernando Assis Pacheco que está já aí, a seguir à gaivota que hesita. Depois, sigamos um pouco mais porque o piano hoje é surpreendente.]


Numa manhã de doce claridade no Ginjal, gaivota caminha entre o gradeamento e a beira do cais,
 mesmo rente ao Tejo, hesitante entre voar e andar, meditando


                        Então acordo e sinto a meu lado
                        o esplendor tranquilo
                        da amada que respira
                        adormecida deitada sobre o flanco
                        vertendo a prata dum sorriso

                        nas ravinas da noite
                        esferas cantam a alegria
                        é um sítio de grama rociada

                        e passam horas
                        durante as que da rua
                        ouvindo vozes turvas
                        eu ficarei teimando
                        na claridade a todo o preço

                        de que me falam as aves


                       ['Lírica de Pardilhó' de Fernando Assis Pacheco in 'A Musa Irregular']

Mendelssohn - Dang Thai Son ao piano interpreta o Concerto para Piano


26 março, 2012

Que nome dar ao poeta, esse ser dos espantos medonhos?

 
Um homem vai e sente a terra húmida e mole sob os seus pés, pousa os pés com muito cuidado, quase como se andasse sobre um ventre fecundado, não vá magoar. E, um pouco mais à frente, sente o véu ainda por cumprir de uma árvore ainda quase nua. E, mais à frente, ouve um pássaro que murmura doces e quase inaudíveis palavras, e continua e vê um rio parado, suave, esperando que seu olhar se encontre saciado. E o homem assim vai.

Um homem anda, e vai carregado de palavras, de sons, de choros, de risos, de silêncios. Este homem caminha por caminhos ainda não percorridos e vai sozinho, nem o pai, nem a mãe o podem ajudar porque ele caminha num tempo que é só seu, de uma forma só sua. E o homem assim vai. 

Este homem que por aqui anda, quase árvore, quase rio, quase pedra, quase grito, transporta junto ao peito, dentro da camisa fechada (para que não voem), todas as palavras que vai apanhando por onde passa. Desenterra-as com as suas mãos gretadas, apanha-as nas árvores, pesca-a nas profundezas do mar, segura-as entre as mãos quando elas passam em bando, voando à sua volta. 

A este homem, os miúdos da rua e os da beira da praia, as mulheres escondidas atrás das janelas, os velhos dos bancos da praça, os pescadores da orla do rio, chamam José, o homem dos sonhos, o homem dos espantos medonhos. Eu, que o espreito de longe, com envergonhada veneração, chamo Poeta, sagrado Poeta. E bebo-lhe as tão amadas palavras.



[Ruy Belo, aqui em baixo, explica melhor que eu quem é este homem e, um pouco mais abaixo, a grande música de Mendelssohn invade este espaço tão amado]

No Jardim do Ginjal, com o Tejo e Lisboa em manhã de neblina


                              Que nome dar ao poeta
                              esse ser dos espantos medonhos?
                              Um só encontro próprio e justo:
                              o de josé o homem dos sonhos.

                              Eu canto os pássaros e as árvores
                              Mas uns e outros nos versos ponho-os
                              Quem é que canta sem condição?
                              É josé o homem dos sonhos

                              Deus põe e o homem dispõe
                              E aquele que ao longo da vereda vem
                              homem sem pai e sem mãe
                              homem a quem a própria dor não dói
                              bíblico no nome e a comer medronhos
                              só pode ser josé o homem dos sonhos


                              ['José o Homem dos Sonhos' de Ruy Belo in 'Homem de palavra(s)']

Mendelssohn - Ton Koopman conduz a Dutch Radio Chamber Orchestra na 5ª Sinfonia

Doce demência arrancada à monstruosa inocência da terra

  
Dizes laranja e olhas-me com o suco a escorrer-te na garganta, dizes lua e eu vejo os teus olhos a cerrarem-se de suave amor.

Dizes doçura e apalpas a laranja e eu vejo que adivinhas como é doce o sangue que corre dentro de mim, dizes leveza e eu vejo que olhas com carinho as minhas brancas asas.

Dizes delicadeza e afagas a casca dourada da laranja e eu vejo que os teus braços se enternecem esperando por mim.

E, então, eu digo matéria e olho as cordas que vieram do fundo do mar, e digo inocência e vejo a terra, as pedras, os fios que vieram do ventre do mundo, do fundo do mar, e digo frescura e sinto a demência profana de todas as coisas que jazem aos nossos pés e vieram do fundo do mar e digo assombro e pego com veneração nas cordas entrançadas, nos restos de limos, nas cores esvaídas e em tudo o que o sol dourou e o fundo do mar amaciou.

Abraçamo-nos os dois, então, e perguntamo-nos se será isto a doce demência que une os seres inocentes que por aqui vagueiam. Talvez seja, talvez. E, então, sorrindo, cortas a laranja ao meio e o doce sumo dourado ilumina as nossas palavras.



[Desça um pouco mais, por favor, prove a laranja doce de Herberto Helder e siga depois até à grande música de Mendelssohn cuja música, esta semana, vai povoar este nosso espaço.]


No Ginjal, despojos de pesca, despojos de vida 
     
      
                Laranja, peso, potência.
                Que se finca, se apoia, delicadeza, fria abundância.
                A matéria pensa. As madeiras
                incham, dão luz. Apuram tão leve açúcar,
                tal golpe na língua. Espaço lunado onde a laranja
                recebe soberania.
                E por anéis de carne artesiana o ouro sobe à cabeça.
                A ferida que a gente é: de mundo
                e invenção. Laranja
                assombrosamente. Doce demência, arrancada à
                         monstruosa
                inocência da terra.


               [Laranja, peso, potência' de Herberto Helder]

22 março, 2012

És, talvez, como eu uma alternadeira de palavras

 
Depois de um dia de trabalho numa torre de vidro transparente, venho para aqui, junto ao rio, e fico passeando, percorrendo os mesmos caminhos de outras como eu.

Passa um veleiro, voam as gaivotas e eu olho o rio, pensando em palavras que, mais tarde, sem pensar, aqui me ofereço (e vos ofereço). 

É por amor ao rio azul, aos veleiros brancos, às magníficas gaivotas que por aqui ando e é por amor às palavras que aqui escrevo. Não faço dinheiro com as palavras, não danço por dinheiro, não fotografo por dinheiro, não faço amor por dinheiro. Faço o trottoir tal como as outras, as gaivotas, seguem o seu rasto no céu, e também não é por dinheiro.Vigiamo-nos, transparentes e humanas, pensamos em devastados amores, em secretas traições, emoções proibidas, escondidas. Mas tudo por amor.

Somos também como tu, leitor(a), que por aqui andas, percorrendo os caminhos do meu pensamento, vigiando o que escrevo, o que penso, o que sinto. 

Vivemos os dois, eu e tu Leitor, em união de facto. Estimamo-nos, não passamos um sem o outro, inseparáveis, amigos, amantes de palavras. Mas, apesar da ligação profunda, intensa, que nos une, eu saio todos os dias para colher novas palavras, palavras que trago depois para a mesa, como se tivesse andado a ganhar dinheiro para o nosso sustento.

Alternadeira, sou uma alternadeira. Alternadeira de palavras, amante de palavras.



[Caro(a) Leitor(a), continuemos a fazer este nosso trottoir. Desçamos até à beira do Tejo, palmilhemos os caminhos de Inês Lourenço e, depois, para nos apaziguarmos, deslizemos até ao concerto de Ravel, belíssimo.]

Em Cacilhas, o Tejo, um veleiro, gaivotas - este é o ar que respiro


                     Contigo, leitor, celebro
                     esta união sem facto, abro
                     este habitáculo, algumas gavetas
                     secretas para demorar contigo emoções
                     e escárnios. És, talvez, como eu
                     uma alternadeira de palavras, destas
                     que vendem no papel, os objectos
                     trucidados pelo olhar em lençóis
                     de falsa transparência e ficção
                     furtiva. Outras, mais reais
                     e mais humanas, professam
                     uma devastada arte de amar
                     e nós um devastado amor
                     à arte dos versos que ninguém
                     lê. Só nós nos lemos
                     uns aos outros, tal como elas
                     se vigiam sobre o trottoir.


                     ['Alternadeiras' de Inês Lourenço in 'Câmara Escura']
 

Ravel - Hélène Grimaud interpreta Concerto em Sol maior (adagio)

21 março, 2012

Levo-a como uma deusa ao templo do mar e vejo-a despir-se como se fosse flutuar

 
Quando chego a casa assim cansada, deito-me e deixo que as pálpebras tombem, que o corpo descanse, e toda eu esqueço o dia que passei, toda a vida passada, tudo. Descanso apenas.

Tu aproximas-te então, encostas-te a mim, tiras-me a roupa com cuidados mil, e eu deixo que trates de mim. Sinto, então, que dos teus dedos nascem flores e as macias pétalas começam a tocar o meu corpo, e é uma doçura bondosa que eu sinto. Devagar, aproximas-te ainda mais e falas uma estranha língua, uma língua sem idade, e eu deixo que a tua língua me diga segredos murmurados e suaves.

Aproximas-te ainda mais, sinto o cheiro tépido e familiar do teu corpo, a tua boca beija-me com cuidada ternura e eu sinto o carinho com que tentas que o meu corpo descanse da intensidade do dia.

Então, quando eu estou totalmente tranquila e rendida, tu pegas-me ao colo e levas-me até à beira do mar. Aí chegados, tu, com gentileza e devoção, pousas-me como num templo e eu aceito, agradecida, que me tenhas levado à rendição.

Despida na beira do rio, dizes-me, então, baixinho, que pareço estar a flutuar e pedes, baixinho, que te leve comigo. Digo-te que sim, é o que eu quero e puxo-te: anda, põe-te aqui em cima de mim, vamos os dois

E, sob um céu que brilha como que iluminado por mil velas, envoltos em segredos e estrelas proibidas, entramos os dois no mais profundo recanto do mar, lá onde o céu e o mar se tocam, lá onde os corpos se desfazem do desejo que os consome.

Se alguém nos visse diria, olha como aquelas duas estrelas brilham ou, então, lá vão dois anjos. Mas somos apenas nós, felizes, flutuando sobre o sagrado templo do mar.


No Ginjal, gaivota pousada como uma deusa num altar. Ao fundo, Lisboa a bela, o mais sagrado templo.


             É um mistério esta claridade
             que nasce de um corpo sem passado,
             onde a leio numa língua sem idade,
             adivinhando o seu futuro neste fado.

             Caem pálpebras num cair de pano,
             abrem-se dedos num florir de mão,
             no seu jardim a primavera não é engano,
             no seu rosal o amor está em botão.

             Uma boca de pérolas envolve-a de segredo,
             e dela tiro um brilho de estrela.
             Respiro o seu perfume sem ter medo,

             acendo nos seus olhos a última vela.
             Levo-a como deusa ao templo do mar,
             e vejo-a despir-se como se fosse flutuar.


              ['Vénus aérea' de Nuno Júdice in 'Guia de conceitos básicos']

Maurice Ravel - O Hagen Quartet interpreta o String Quartet in F - Allegro moderato


20 março, 2012

Amarás o torpor que se seguirá a ti


Desço à beira do mar, hesito, olho o passado, olho o que fica para trás, olho a casa, o jardim, os sorrisos, os afectos macios, a porta que se fecha, íntima, as cortinas que velam a luz do exterior. O conforto morno, a segurança suave, o aconchego, o coração e as mãos.

Ah, este temor, o temor. 

Praias desabridas, solidão, desconhecido, mistério sem nome, e eu aqui, hesitante.

Penso em ti. Penso em ti, o torpor que se segue a ti. Temor. 

Mas, à frente, a liberdade, a liberdade. Que infinita vontade de partir.



[Na beira da praia, as palavras do poeta seguem, em liberdade, até à valsa de Ravel. Tamanha é a vontade de partir que iremos com ele.]

Gaivota na beira do Tejo, no Ginjal


                         Sei
                         Sei tu
                         Amarás o torpor que se seguirá a ti
                         Praias desabridas com o temor

                         Liberdade, liberdade
                         infinita vontade de partir



[Poema de 2009, pag 71, de José Alexandre Caldas Ribeiro in 'A água que nos move']
  

Ravel - Martha Argerich e Nelson Freire ao piano interpretam La Valse


19 março, 2012

A minha pátria é onde o vento passa, o meu desejo é o rastro que ficou das aves

 
Eu ia a passar na estrada que desce para o rio quando olhei para lá do muro e vi, lá em baixo, o meu amor que passava no seu barco.

De longe vi que ele olhava na minha direcção, procurava-me. E, então, pareceu-me vê-lo a acenar-me. Meu amor. Sem pensar subi ao muro, abri as minhas longas asas e voei.

Falo agora como se me estivesses ainda a ouvir, apetece-me falar contigo.

Passei sobre o casario, passei sobre o cais, cheguei ao rio e vi-te a sorrir. Olhavas para mim, não te espantavas, apenas sorrias, contente por eu querer estar junto a ti, my love.

Rodeado de bichos estranhos, homens vestidos com polos gant, barbeados e penteadinhos, lá estavas tu, barbudo, salgado, despenteado, tisnado. Lá estavas tu, meu homem do mar que não te importas de estar molhado, que gostas de mexer nas cordas, que te sujas com óleo, que gostas de ver o horizonte, que gritas o meu nome, que adornas o barco buscando os jardins onde sabes que me acolho, meu pirata maluco que atravessas mares, furas ondas, rasgas nuvens para me procurares, para me achares.

E eu, doida por ti, logo que te vejo passar no teu veleiro, voo e vou e sobrevoo e tu, doido, doido, my love, soltas francas gargalhadas, agarras nos teus amigos, atira-los ao mar, impiedoso, e ris, e uivas ao vento e, então, eu desço devagarinho, e tu agarras-me com doçura, despes-me  e enrolas-me nas velas, e o teu desejo é salgado e dizes que são as minhas penas que são salgadas e rimos e amamo-nos, meu pirata mais doido, e esquecemo-nos da nossa vida em terra porque o nosso desejo segue o rasto das aves e não segue nenhum outro mandamento.



[Pois. Mas nada como conhecer o verdadeiro pirata. Sophia e Ravel, o pirata e os jeux d'eau é já aqui a seguir.]

Lá vai o meu pirata, o único homem a bordo do seu barco (os outros não contam,
vão amarrados aos remos) - avistado no Tejo a partir da Boca do Vento


                                         Sou o único homem a bordo do meu barco.
                                         Os outros são monstros que não falam,
                                         tigres e ursos que amarrei aos remos,
                                         e o meu desprezo reina sobre o mar.

                                         Gosto de uivar no vento com os mastros
                                         e de me abrir na brisa com as velas,
                                         e há momentos que são quase esquecimento
                                         numa doçura imensa de regresso.

                                         A minha pátria é onde o vento passa,
                                         a minha amada é onde os roseirais dão flor,
                                         o meu desejo é o rastro que ficou das aves,
                                         e nunca acordo deste sonho e nunca durmo.


['Pirata' de Sophia de Mello Breyner Andresen in 'Mar - antologia', selecção e organização da filha Maria Andresen de Sousa Tavares]

Ravel - Martha Argerich ao piano interpreta Jeux d'eau

  

18 março, 2012

Uma sintaxe que produz coisas aéreas como o vento e a luz



Limos, conchas, restos de cigarro - na beira do cais de pedra gasta do Ginjal, na beira do Tejo 


A manhã estava quase encoberta, o céu rendilhado, neblina, névoa, quase transparentes nuvens. E a humidade caía sobre o meu rosto e a aragem esfriava-me. Depois, um vento mais agreste, a maresia fresca, o ar molhado, e , logo, um frio agreste. 

Em momentos assim as gaivotas agitam-se, elevam-se, soltam gritos. Uma pena cai junto a mim. Um pescador puxa a linha, traz limos, traz bocados de mar que ele gentilmente deposita na beira do cais. E há pequenas cascas, antes eram organismos vivos, húmidos, agora apenas cascas que ainda cheiram a mar. O pescador está concentrado, prepara nova linha, atira-a ao rio. Uma gaivota pousa junto a um velho guindaste. Assim é a vida aqui.

Um peixe vê-se da superfície, não sei se está vivo, se não. E o rio hoje leva restos de canas, de ramos secos. 

E um cão, sobre um banco,  olha o horizonte. O céu abriu, quase fica limpo. Ainda está frio mas o horizonte abre-se, limpo. A paisagem deixa o cão deslumbrado. Não sente o vento frio, ignora os gritos das gaivotas, já conhece de cor os gestos dos pescadores, fica indiferente a quem passa. Apenas olha, com infinito espanto, a beleza da paisagem. E pensa nas admiráveis coisas aéreas que habitam este grande espaço, como o vento ou a luz. Se este cão soubesse escrever, escreveria um poema.




[A seguir ao cão deslumbrado, encontrará o poema de Carlos de Oliveira, cintilante, e logo abaixo o frémito do Bolero que, assim, abre a semana dedicada a Ravel]

O cão do Ginjal, deslumbrado com a paisagem, construindo intangíveis sintaxes

                             
                                 A tarde trabalhava
                                 sem rumor
                                 no âmbito feliz das suas nuvens,
                                 conjugava
                                 cintilações e frémitos,
                                 rimava
                                 as ténues vibrações
                                 do mundo,
                                 quando vi
                                 o poema organizado nas alturas
                                 reflectir-se aqui,
                                 em ritmos, desenhos, estruturas
                                 duma sintaxe que produz
                                 coisas aéreas como o vento e a luz.


['Tarde' de Carlos de Oliveira in 'Antologia pessoal de Poesia Portuguesa' de Eugénio de Andrade]

Ravel - Andre Rieu dirige a orquestra que interpreta Bolero

 

15 março, 2012

Mas não te deixo: agora sê retrato, e o tempo à tua volta só moldura


No beiral desta janela há flores e as flores têm a cor do sol. Gosto de sol. Por isso esta casa não tem telhado.    Aqui o sol e o vento entram como querem, não há barreiras, nem vidros, nem cortinas, nem portas, nem telhas. Esta é a casa em que chamo por ti. Em silêncio chamo por ti. 

O meu rosto enxuto guarda a juventude dos nossos verdes anos e os meus seios são ainda os túmidos frutos que guardavas nas tuas mãos. A minha boca tem a cor dos morangos e sabe a sumo e ainda o podes vir beber.

Às vezes vens de longe e eu, aqui sentada, com gaivotas no colo e gatas aos pés, ouço, de longe, os teus passos exactos e sinto o teu corpo seco e masculino. As gaivotas começam logo a sacudir a plumagem, limpam o bico amarelo. Vaidosas, possessivas, vão querer-te só para elas e as gatas desprendem-se das minhas pernas e começam a roçar-se nas paredes, lúbricas vadias, e eu ajeito o cabelo, ajeito a saia e, adolescentes, esperamos que entres para fazermos uma festa.

Mas outros dias há que são apenas envoltos pelo silêncio molhado que sobe do rio, não há passos que agitem os nossos corações sedentos. E, então, apenas olho esta janela aberta. As gaivotas fecham os olhos e  as gatas enroscam-se desinteressadas, e eu, na maior solidão, imagino que te vejo ali, como num retrato. E imagino que a pedra à volta é uma moldura talhada no mais frio dos longínquos tempos.



[Debaixo desta janela Pedro Tamen deixou um poema e debaixo do poema, depois do meio dia,  há um fauno que, pela mão de Debussy, aparece para tocar. Os belos espíritos gostam de se juntar]

Janela a céu aberto no casario do Ginjal



                                 Ora me calo. Que o túmido fruto
                                 em que nos temos vire, e a face
                                 mude. Que o meu olhar te seja enxuto.
                                 Tu já pisavas chão que me calasse,
                                 anunciavas casas e paz dura,
                                 um vento masculino, seco, exacto.

                                 Mas não te deixo: agora sê retrato,
                                 e o tempo à tua volta só moldura.


                                 ['Aparição.VII' de Pedro Tamen in 'No cais da Poesia 2, Antologia']

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PROVOCAÇÃO FOTOGRÁFICA

"Janela a céu aberto"
lugar dantes proibido
onde o nosso encontro incerto
era o labirinto...
Hoje passo por lá silenciosa
já quase não lembro
as palavras, os gestos,
as promessas
em que
afinal 
nenhum de nós acreditou
às escondidas 
o meu sorriso lembra
que no último momento
me livrei das grades
e daquele espécie de tormento
(afinal
sempre esteve tudo mal) 
hoje sou livre
restam apenas as grades ferrugentas
de uma misteriosa janela do Ginjal 


[Belo poema da autoria de Era uma Vez - a quem agradeço e quem louvo a arte - publicado em comentário aqui abaixo]

Debussy: Leopold Stokowski conduz a London Symphony Orchestra que interpreta L'après-midi d'un faune

 

14 março, 2012

Olhou a paisagem e seus infinitos

A relva está molhada, esteve a ser regada ou então é a humidade que sobe do rio. Ando por aqui, sinto o cheiro da maresia, acolho-me junto a esta árvore despida e bela, ando devagar, vejo os gatos que andam silentes e ágeis sobre as pedras da margem do rio, voo nas asas das gaivotas, vejo os pequenos pássaros pretos que por aqui andam a debicar sementes e que já não me estranham, pouso o olhar do rio amplo e tão belo, procuro veleiros, sempre tão elegantes.

E, do outro lado, Lisboa, suave, doce, feminina, curvas e requebros, tão luminosa, tão feliz. Daqui não vejo as vielas sinuosas, não vejo os becos fadistas, não vejo os recantos em que geme a saudade. Daqui apenas vejo a cor cheia de luz, o lado feliz da magnífica e bela cidade, as colinas que se enfeitam de casas e jardins como pregas floridas ou como folhos rendilhados. 

Por aqui ando, ave ou gata ou mulher, olhando a paisagem e os sues infinitos, respiro fundo, aspiro o ar fresco que sobe do rio, quero ter o mar dentro de mim. 

Neste ar silencioso e limpo, voam junto a mim transparentes palavras, voam as palavras dos poetas que eu transporto no meu coração. Não preciso, pois, de outra legenda para tão bela imagem.



[Inesperado o poema abaixo, de Mia Couto. Para ler com ternura e um sorriso, ouvindo a Rêverie de Debussy, logo a seguir]

Lisboa avistada do Jardim do Ginjal, bem junto ao Tejo


                  Olhou a paisagem
                  e seus infinitos.

                  Depois de inspirar fundo,
                  perguntou:

                  - A imagem está óptima.
                  Mas, não tem legendas?




                  ['O urbano visita a savana' de Mia Couto in 'idades cidades divindades']

Claude Debussy - o Trio del Garda interpreta "Rêverie" para flauta, clarinete e guitarratar.

13 março, 2012

Aquele que o meu coração ama


Não sei escrever palavras de abandono. Aquele que o meu coração ama e todos os outros que anteriormente amei sempre me procuraram nas cidades, fora delas, nas ruas abandonadas ou no meio de multidões e sempre ao meu corpo ficaram presos. 

(De bons sentimentos não se escrevem grandes textos e é por isso que este é um texto tão curto.)

Mesmo quando me isolo no meio do rio, sozinha eu e o rio que aqui é mar, sozinha no meio deste silêncio líquido de tão azul, mesmo quando ele me vê de longe, me chama já cansado, e eu finjo que não o vejo, mesmo quando o ignoro e, mulher livre, ave louca, levanto voo e o abandono, mesmo assim ele espera que eu me canse, e, na volta, acolhe-me de braços abertos, um abraço morno e amante.

E, então, quando isso acontece, agradecida, eu peço-lhe que me dispa, que me tome, que percorra o meu corpo com os seus longos dedos, e que me retenha até que a manhã chegue não vá eu perder-me na ameaça da noite.



[É já aqui sabido que gosto bastante da poesia de Alice Vieira. Peço-vos portanto que, com muito carinho e disponibilidade, se deixem ficar um pouco na sua companhia. Logo abaixo La mer de Debussy.]

Avistada do ginjal, gaivota em pleno momento de levantar voo a partir de uma rocha no Trjo


                          Aquele que o meu coração ama
                          não encontra em lado algum
                          o incenso que de meus olhos rompe
                          para ensinar a prender o corpo das mulheres
                          abandonadas fora de horas
                          às portas da cidade

                          mas sabe que          para todas as distâncias
                          há uma ave enlouquecendo quem parte
                          antes do tempo
                          e a túnica que dispo entre os seus dedos
                          é a espada que os reis ungiram
                          para enfrentar a ameaça das manhãs
                          em que tudo acorda


                         ['Aquele que o meu coração ama, 2' de Alice Vieira in 'O que dói às aves']

&

Desesperando…

É a revolta que enlouquece 
Quem sabe que vai partir antes do seu tempo
Tendo lutado até ao sangramento 
Das vísceras,
Da boca, 
Da noite, 
Dos sentidos fechados, perdidos, 
Dos olhares longe parados,
Esperando…

Olhares,
Esperando,
De desesperança 
De quem nada pode fazer…


[Belo e sentido poema da autoria de J. Rodrigues Dias]

Debussy: a London Symphony Orchestra, conduzida por Valery Gergiev, interpreta La Mer

  

12 março, 2012

Diz-me com quantos traços se faz um rosto

 
Digo: olhos grandes que pousam como dóceis pássaros no meu rosto e logo voam, insubmissos, para o sulco que se abre sob o decote; boca vermelha, pequena e quente que se abre sobre a minha e mais não digo; sorriso malicioso e suave que me cativa, me doma, me provoca. Com estas palavras desenho o teu rosto?

Por aqui vou, passo rápido, aragem levantando o cabelo, rente aos pensamentos, rente ao rio que leva navios e eu, arisca, acompanhada pela tua voz, pela voz de todos quantos me segredam poemas de amor, vou sem ver quem me olha, apenas vejo o teu rosto desenhado com palavras. Existes ou inventei-te? Sabes que já nem sei?

Vou ter contigo, meu amor. Levo um saco, cheio de recordações, de promessas, de sonhos, e, quando chegar, vou dispor todas essas tão queridas peças sobre a mesa em que um ramo de flores secas, uma vela gasta, me acompanham há tanto tempo.

Se me visses, meu amor, tão rápida que vou, quase corro para ir ao teu encontro...! 

Em silêncio, sem palavras, apenas o teu rosto, as tuas mãos, o teu sorriso que me agasalha, apenas tu, meu amor e, enquanto aqui vou, ansiosa, já te pressinto, já sinto o teu calor amável. 

Depois entro em casa, chamo por ti, espero que lá estejas nem que seja por um breve instante, apenas um breve instante. Basta. Sentirei, nesse suave sopro, toda a respiração da eternidade.



[Sigamos, pois. O poema de Helga Moreira merece uma pausa demorada e, de seguida, uma música que me é muito querida, Clair de Lune. Continuamos, pois, com Debussy.]

No Ginjal, na rua rente ao Tejo, junto ao velho casario


                                Pouco depois volto a casa, fico quieta
                                e lembro
                                gestos, palavras, sem saber
                                se estou a dormir ou acordada
                                escuto vozes dos que passam
                                e levam sacos, artefactos, ruídos a mais
                                levam para casa

                                Eu sem qualificação para nada
                                cambaleante dia e noite

                                Aqui no agasalho da tua presença
                                entro no esquecimento de tudo isso
                                e redobro a eternidade
                                por um instante

                                diz-me com quantos traços se faz um rosto
                                já nãos sei o que disseste no outro dia
                                não lembro nem um som, nenhuma palavra


                                [Poema de Helga Moreira in Vozes e Olhares no Feminino]

Claude Debussy - Angela Hewitt no piano interpreta "Claire de lune"

  

11 março, 2012

Uma parte de ti ficava presa na noite naquelas ruas estreitas


Numa noite como a de hoje, quente, céu limpíssimo, iluminado, eu saio pela janela, olho o rio espelhado e saio a voar. O meu destino é inevitavelmente o lugar onde outras como eu se juntam sob os telhados abertos.

Ali chegada, aspiro a maresia, ouço o toada das ondas no musgo das paredes do cais, e depois, dançando, asas ao alto, feliz, esgueiro-me por entre os buracos das paredes e procuro as gatas de olhos verdes, as gaivotas de asas brancas e bico amarelo, as sombras dos poetas. Estou entre os meus.  Olho e vejo o céu, já não há telhas, espreito pelas janelas, abertas, e vejo o céu, e as gaivotas soltam gritos e as gatas roçam-se pelas paredes e soltam gemidos estranhamente humanos e não se ouve mais nada até que, logo a seguir, um a um, os poetas vão chegando e vão dizendo palavras como nuvem, névoa, silêncio, rio quase mar, amor, grito, rasgo, desejo, ave, asa, palavra, liberdade, e eu, em silêncio, escuto e sinto-me abençoada e olho o céu, e ouço este rio que tanto amo, enrolada no chão, no meio das redes dos pescadores, abraçada às gatas e gaivotas, mulheres da noite como eu.

Depois, quando saio, o luar mostra que nessa longa parede que vai rente ao mar alguém pintou um rosto, uns grandes olhos abertos, talvez os meus, talvez seja eu ali impressa, entranhada nestas paredes que me guiam. Uma parte de mim presa na noite, nesta rua estreita, nesta parede gasta.



[Aqui abaixo a parede com os grandes olhos que nos fitam, depois o poema de Tatiana Faia e depois o piano leva-nos até Debussy que esta semana nos acompanhará.]

Parede graffitada no Ginjaal, uma parede rente ao Tejo


                                 uma parte de ti ficava presa na noite
                                 naquelas ruas estreitas a subir e cor
                                 e areia um golpe de poeira nos olhos
                                 que te forçou a fechá-los por um instante
                                 cessar de ver é uma forma de silêncio
                                 mas depois terias sempre de regressar
                                 a estas casas onde a força do vento
                                 atravessa as telhas e em cheio no rosto
                                 te acerta onde a noite te rodeia
                                 um pouco mais que nos demais lugares


                                 ['Milão. II.' de Tatiana Faia in Lugano]

Claude Debussy - Nikolai Lugansky interpreta Arabesque

  
  

09 março, 2012

Contento-me com cópias como o escritor se contenta com a falta de palavras

 
A mulher caminhava sozinha, vacilante, olhava o rio sem se deter, olhava em frente sem nada ver. O andar hesitante, o rosto ausente. Na relva molhada um pequeno pássaro preto brincava e, no cais, dois pescadores conversavam, sem pressa, mas a mulher não lhes prestou atenção.

Depois, vagarosa, escolheu um banco no meio da vegetação e sentou-se. Olhava em frente sem se interessar. Depois olhou para baixo, para as suas próprias mãos vazias, e ali ficou em silêncio. Não reparou no verde intenso que a envolvia, não reparou no céu azul, no rio que levava veleiros, no gato de olhos verdes que por ali se insinuava. Era como se todas as coisas tivessem perdido o sentido.

Passei por ela e ela também não me viu, estava fechada no seu mundo desabitado. Ninguém caminhava na sua direcção. Talvez a mulher quisesse ouvir uns passos iguais aos que antes a procuravam, talvez quisesse ouvir alguém, de longe, chamar o seu nome, talvez quisesse que alguém chegasse e lhe dissesse palavras de amor. 

Então ouvi uma voz que vinha dali, uma voz em surdina, uma toada, quase um pranto. Aproximei-me. E ouvi um murmúrio: 'Já quase não sei o teu nome. Já quase não sabes o meu nome. Já quase não sei o nome que dávamos ao nosso amor, Chamo-te e não vens. Não me chamas, não vens.' E depois repetia 'Já quase não sei o teu nome. Já quase ...'



[Neste dia de coisas diferentes, passeemos até ao jardim onde a escritora se debate com a falta de alguém que responda ao seu chamamento. Depois sigamos até à bela música de Mahler.]

No Jardim do Ginjal


                             Repito o teu nome. Até lhe perder o sentido.
                             Nas coisas forma-se outro nome.
                             Quem me ouvirá agora ao chamar-te?
                             Percebo então que o som dos cacos é uma coisa diferente
                             do som dos teus passos.

                             Contento-me com cópias como o escritor se contenta
                             com a falta das palavras.


['As Coisas diferentes' de Inês Fonseca Santos in 'As coisas', livro com uma cuidada edição e uma bela capa negra e ilustrações  de João Fazenda]
  

Mahler - Simon Rattle conduzindo a National Youth Orchestra of Great Britain na interpretação da 8ª Sinfonia

  

08 março, 2012

E esta mulher de novo vencedora, destemida, ousada, florida, desfilou finalmente pelas praças e ruas da cidade como se fosse muito muito amada


E então a mulher abriu os braços, abraçou o céu e o mar, encheu o peito de ar, acariciou o veleiro branco, e deixou-se amar.

E então, seguindo as aves de grandes asas brancas, deixou-se ir, livre e, ao regressar, acompanhada, abriu o coração e deixou-se amar.

Outras vezes, sozinha, a mulher olha-se ao espelho nas águas íntimas do mar e sorri para si mesma, e deixa que o vento a afague e deixa que o sol a banhe e invada e, respirando o ar puro e azul, ama-se a si própria, mulher de si própria.

Olha os veleiros que passam, neles talvez vá o seu amor, ou talvez a sua alma guerreira ou talvez o seu coração à espera de ser aninhado, e sorri pensando que um dia voará até lá, mulher pássaro de grandes asas brancas, mulher pronta para o amor.

E sempre, mulher de si própria, orgulhosa e digna, peito forte, cabeça erguida, a mulher caminha em frente, percorrendo o caminho que se faz ao caminhar. Ela e muitas outras, tantas mulheres. Tantas mulheres caminhando de frente para o mundo, coração aberto, olhar doce. Mulheres que se levantam uma e outra vez, mulheres felizes que conquistam o seu mundo.



[É com muito orgulho e particular emoção que hoje aqui coloco o poema que a minha querida amiga Era uma Vez tão generosamente  me deixou nos comentários. Com toda a sinceridade lhe agradeço e aqui elogio a sua escrita poética, uma escrita tão natural, tão espontânea, tão sentida. Tomara que não demore a ser uma Poeta muito conhecida. Depois do poema, como sabem, encontrarão Mahler]

Rente ao Tejo de frente para o Cristo Rei com um veleiro de permeio,
uma mulher abre os braços, feliz, livre


                    Ela esperou o dia inteiro
                    as mãos frias e suadas
                    quem sabe hoje ele vai ligar
                    afinal há tanto tempo que ameaça
                    como se faltasse um pouco mais de nós
                    apenas um quase quase nada
                    pra voltar

                    Oito de março
                    é sempre nome de mulher
                    ele há-de ouvir na rádio
                    ele vai saber
                    e não...
                    não pode ter esquecido 
                    cada momento divertido
                    ardente
                    cada vez que a gente
                    se abraçou a ver o mar

                    e o dia foi andando devagar...

                    Seis da tarde
                    parece haver festa em cada florista
                    eles, formais, alguns muito aprumados
                    outros impacientes
                    (enjoados)
                    outros sem jeito arriscam uma graça

                   "Rosas vermelhas é o que sai mais
                    mas há narcisos, lírios do campo e tantas outras"
                    balbucia fatigada a rapariga
                    enquanto amarra mais um laço
                    e limpa as mãos ao avental

                   e ela espera
                   pacientemente...
                   em silêncio chega a sua vez
                   E a senhora? O que é que vai ser?
                   (até que enfim)
                   É só dizer

                   Quero aquela orquídea branca provocadora transparente
                   linda de morrer...
                   E é só?
                   Sim
                   É para oferta?, 
                   Claro! É para MIM

                   E esta mulher de novo vencedora, destemida, ousada, florida
                   desfilou finalmente pelas praças e ruas da cidade
                   como se fosse muito muito amada...



['Desamor' de Era uma Vez, publicado no comentário do post abaixo]




DESAMOR/ O CONTRADITÓRIO

Correu
tropeçou
passou sinais
ultrapassou
ensaiou desculpas promessas coisas mais...

Não está?
Já saiu?
E agora?
Sei lá?
O senhor é que sabe...
(há cada um!)

Então olhou a rua sofredor
desapontado
escondeu a flor rapidamente entre os jornais
quase envergonhado
Gente muita gente
Gente a mais
e de repente
entre dois passeios
Ali, a dois passos mal contados
passa ela radiante, ostentando uma flor branca e transparente

(Já não se lembra da gente)
Como pode ter acontecido
Então e cada momento
divertido e ardente
quando 
o nosso abraço ia ver o mar?

Demasiado tarde
aquele seu ar destemido,ousado,florido
é sinal que tudo está esquecido
e o seu requebrado na calçada
é de mulher(de novo) muito muito amada...




[Da mesma autora, Era uma Vez, a quem uma vez mais agradeço e elogio, 'repescado' de um comentário a este post]