Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

18 março, 2012

Uma sintaxe que produz coisas aéreas como o vento e a luz



Limos, conchas, restos de cigarro - na beira do cais de pedra gasta do Ginjal, na beira do Tejo 


A manhã estava quase encoberta, o céu rendilhado, neblina, névoa, quase transparentes nuvens. E a humidade caía sobre o meu rosto e a aragem esfriava-me. Depois, um vento mais agreste, a maresia fresca, o ar molhado, e , logo, um frio agreste. 

Em momentos assim as gaivotas agitam-se, elevam-se, soltam gritos. Uma pena cai junto a mim. Um pescador puxa a linha, traz limos, traz bocados de mar que ele gentilmente deposita na beira do cais. E há pequenas cascas, antes eram organismos vivos, húmidos, agora apenas cascas que ainda cheiram a mar. O pescador está concentrado, prepara nova linha, atira-a ao rio. Uma gaivota pousa junto a um velho guindaste. Assim é a vida aqui.

Um peixe vê-se da superfície, não sei se está vivo, se não. E o rio hoje leva restos de canas, de ramos secos. 

E um cão, sobre um banco,  olha o horizonte. O céu abriu, quase fica limpo. Ainda está frio mas o horizonte abre-se, limpo. A paisagem deixa o cão deslumbrado. Não sente o vento frio, ignora os gritos das gaivotas, já conhece de cor os gestos dos pescadores, fica indiferente a quem passa. Apenas olha, com infinito espanto, a beleza da paisagem. E pensa nas admiráveis coisas aéreas que habitam este grande espaço, como o vento ou a luz. Se este cão soubesse escrever, escreveria um poema.




[A seguir ao cão deslumbrado, encontrará o poema de Carlos de Oliveira, cintilante, e logo abaixo o frémito do Bolero que, assim, abre a semana dedicada a Ravel]

O cão do Ginjal, deslumbrado com a paisagem, construindo intangíveis sintaxes

                             
                                 A tarde trabalhava
                                 sem rumor
                                 no âmbito feliz das suas nuvens,
                                 conjugava
                                 cintilações e frémitos,
                                 rimava
                                 as ténues vibrações
                                 do mundo,
                                 quando vi
                                 o poema organizado nas alturas
                                 reflectir-se aqui,
                                 em ritmos, desenhos, estruturas
                                 duma sintaxe que produz
                                 coisas aéreas como o vento e a luz.


['Tarde' de Carlos de Oliveira in 'Antologia pessoal de Poesia Portuguesa' de Eugénio de Andrade]

2 comentários:

  1. poema com ritmo e boa rima, com uma adequada sintaxe como diz o poeta, bom para ser recitado por alguem que recite bem

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  2. Gosto destes poemas, são fortes, exigem ser ditos em voz alta para que se sintam bem as palavras na boca. Poemas que se organizam sozinhos, coisas aéreas ou etéreas, vento, luz, palavras cheias de beleza e de força.

    Gostava de convidar vários diseurs para dizerem poesia escolhida por mim à beira do rio. (Mas depois levava-os ao Funchal para poder partilhar consigo e com os seus amigos madeirenses)

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