Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

14 março, 2012

Olhou a paisagem e seus infinitos

A relva está molhada, esteve a ser regada ou então é a humidade que sobe do rio. Ando por aqui, sinto o cheiro da maresia, acolho-me junto a esta árvore despida e bela, ando devagar, vejo os gatos que andam silentes e ágeis sobre as pedras da margem do rio, voo nas asas das gaivotas, vejo os pequenos pássaros pretos que por aqui andam a debicar sementes e que já não me estranham, pouso o olhar do rio amplo e tão belo, procuro veleiros, sempre tão elegantes.

E, do outro lado, Lisboa, suave, doce, feminina, curvas e requebros, tão luminosa, tão feliz. Daqui não vejo as vielas sinuosas, não vejo os becos fadistas, não vejo os recantos em que geme a saudade. Daqui apenas vejo a cor cheia de luz, o lado feliz da magnífica e bela cidade, as colinas que se enfeitam de casas e jardins como pregas floridas ou como folhos rendilhados. 

Por aqui ando, ave ou gata ou mulher, olhando a paisagem e os sues infinitos, respiro fundo, aspiro o ar fresco que sobe do rio, quero ter o mar dentro de mim. 

Neste ar silencioso e limpo, voam junto a mim transparentes palavras, voam as palavras dos poetas que eu transporto no meu coração. Não preciso, pois, de outra legenda para tão bela imagem.



[Inesperado o poema abaixo, de Mia Couto. Para ler com ternura e um sorriso, ouvindo a Rêverie de Debussy, logo a seguir]

Lisboa avistada do Jardim do Ginjal, bem junto ao Tejo


                  Olhou a paisagem
                  e seus infinitos.

                  Depois de inspirar fundo,
                  perguntou:

                  - A imagem está óptima.
                  Mas, não tem legendas?




                  ['O urbano visita a savana' de Mia Couto in 'idades cidades divindades']

2 comentários:

  1. Ave ou gata ou mulher, não importa ... o poema de Mia Couto permite estas definições ou indefinições. E as suas palavras, UJM, adaptam-se-lhe perfeitamente. Uma imagem sem legendas, encontra no seu texto a sua própria extensão e interpretação, nesse Ginjal infinito que olha a bela cidade de frente e nela encontra o seu destino e nela se cumpre.

    Minha querida, faz sentido algum sentido o que acabei de escrever? Não sei, não...
    O que sei dizer é que gosto de tudo o que se passa por aqui. :)

    Beijos

    Olinda

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  2. Olinda,

    Por estas bandas o que faz sentido é aquilo que nasce impensadamente, palavras que voam, pensamentos sem rumo, músicas belíssimas como as de Debussy e outros, olhares que se estendem por horizontes infinitos.

    Quem por aqui apareça muito aperaltado e com conversas muito acertadas, vai parecer um pouco deslocado, acho que os gatos e as gaivotas iriam ficar perplexos.

    Um beijinho, Olinda e, claro, muito obrigada. Para si guardarei lugar cativo, um lugar com boa vista e cheiro a maresia.

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