Dizes laranja e olhas-me com o suco a escorrer-te na garganta, dizes lua e eu vejo os teus olhos a cerrarem-se de suave amor.
Dizes doçura e apalpas a laranja e eu vejo que adivinhas como é doce o sangue que corre dentro de mim, dizes leveza e eu vejo que olhas com carinho as minhas brancas asas.
Dizes delicadeza e afagas a casca dourada da laranja e eu vejo que os teus braços se enternecem esperando por mim.
E, então, eu digo matéria e olho as cordas que vieram do fundo do mar, e digo inocência e vejo a terra, as pedras, os fios que vieram do ventre do mundo, do fundo do mar, e digo frescura e sinto a demência profana de todas as coisas que jazem aos nossos pés e vieram do fundo do mar e digo assombro e pego com veneração nas cordas entrançadas, nos restos de limos, nas cores esvaídas e em tudo o que o sol dourou e o fundo do mar amaciou.
Abraçamo-nos os dois, então, e perguntamo-nos se será isto a doce demência que une os seres inocentes que por aqui vagueiam. Talvez seja, talvez. E, então, sorrindo, cortas a laranja ao meio e o doce sumo dourado ilumina as nossas palavras.
[Desça um pouco mais, por favor, prove a laranja doce de Herberto Helder e siga depois até à grande música de Mendelssohn cuja música, esta semana, vai povoar este nosso espaço.]
No Ginjal, despojos de pesca, despojos de vida |
Laranja, peso, potência.
Que se finca, se apoia, delicadeza, fria abundância.
A matéria pensa. As madeiras
incham, dão luz. Apuram tão leve açúcar,
tal golpe na língua. Espaço lunado onde a laranja
recebe soberania.
E por anéis de carne artesiana o ouro sobe à cabeça.
A ferida que a gente é: de mundo
e invenção. Laranja
assombrosamente. Doce demência, arrancada à
monstruosa
inocência da terra.
[Laranja, peso, potência' de Herberto Helder]
cordas maritimas gastas pelo uso e esforço de segurar os barcos. esforço que as faz gemer nesse som tão caracteristico.
ResponderEliminarquanto ao poema, lendo e relendo, vejo algo talvez simples: que a laranja fascina o poeta pelo seu gosto (leve açucar, golpe na lingua), pelo seu aspecto (peso, potencia), pelo processo de formação e parto do fruto (as madeiras incham, dão luz, apuram). É afinal um poema de sensualidade sobre algo inebriante que vem da terra.
claro que os poemas não são literais e uma interpretação ou explicação é muito falivel.
ps. deve haver um lapso de transcrição em sobre que será mais sobe. ou talvez no acento grave do à.
Havia um lapso seguramente mas agora não tenho aqui comigo o livro para poder validar mas acho que é 'sobe à cabeça'. Emendei e, quando puder, valido.
EliminarEu leio como a natureza ser mãe, prenha, dar filhos, frutos. E é um homem a falar, mostrando que quem ama a natureza, gosta de sentir nas suas mãos os frutos, a madeira, com a sensualidade de quem ama gente.
Ou seja, no fundo, sinto o poema da mesma forma que refere.
Mas tem razão: será que ele pensou isto ou apeteceu-lhe apenas brincar com as palavras à volta de uma laranja sumarenta?