Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

28 março, 2012

A solidão é nua

A matéria explode mansamente à nossa frente e, de dentro de todas as coisas, nascem penumbras, céus ofuscados, horizontes que se dissolvem, e os navios rompem os mares e deslizam com lenta majestade, e, aos poucos, muito ao de leve, a cidade ilumina-se, e tudo é tranquilo, antigo, e as luzes que avançam sobre nós vêm do início dos tempos, e as estrelas desenham-se, com mil pudores, e o azul tolda-se e o poente vem, voando com doçura, abraçando-nos com brandas melancolias.

Quem por aqui passa neste momento de suave desmoronamento, sustém as palavras, quase fecha os olhos, quase sustém a respiração, quase ajoelha, quase implora a bênção, quase chora de emoção, quase beija o chão ou o mar ou o céu. 

E as luzes deste navio que vem aquietar-se no nosso colo abrem caminhos no nosso peito e as aves de grandes asas brancas recolhem-se e, de longe, vigiam o pasmo das pessoas e, então, pouco depois, cai o pano. É a noite que chega, envolta num subtil assombro.



[Ah, não deixem de respirar o Adagio já aqui abaixo e, logo de seguida, não deixem, por favor, de ouvir a grande música de Mendelssohn]

Fim de tarde no Ginjal, o Tejo aos pés, Lisboa quase na penumbra



                    O ocaso compõe o seu adágio
                    de uma plácida melancolia majestosa.
                    As luzes acendem-se nos vidros
                    enquanto perdura o vermelho   rastro do poente.
                    Um ténue e total desmoronamento
                    abre-nos à antiguidade da matéria.
                    A solidão é nua. A atenção respira.
                    Ouve-se o longínquo latido de um insecto.
                    Caravanas de nuvens atravessam a água.
                    De tudo o que flui e quase imóvel perdura
                    nos vem a lenta protecção tranquila.
                    Dir-se-ia que o intacto sorri em nós e no mundo
                    enquanto uma frágil estrela se acende no azul.


                    [Adágio de António Ramos Rosa in Antologia Poética]

2 comentários:

  1. um poema impressionista, visual, pintando o ocaso, mas tambem muito classico, não sei bem dizer onde, muito latino, na contençao, no tema e imagens, ex: ouve se o longinquo insecto, a lenta protecção tranquila, e subitamente o anoitecer com a estrela que se acende no azul. Conheço muito mal ARR, talvez tempo para o conhecer melhor depois de provar as 2 amostras que nos dá hoje dele.

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    1. Ah estes seus comentários com que tanto aprendo...! Que bela descrição a sua. Foi professor de literatura ou coisa do género? É que, se foi, devia ter deixado os seus alunos a amar a poesia (e a escrita, em geral)

      Acho que já nem preciso de dizer que lhe agradeço, não é?

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