No beiral desta janela há flores e as flores têm a cor do sol. Gosto de sol. Por isso esta casa não tem telhado. Aqui o sol e o vento entram como querem, não há barreiras, nem vidros, nem cortinas, nem portas, nem telhas. Esta é a casa em que chamo por ti. Em silêncio chamo por ti.
O meu rosto enxuto guarda a juventude dos nossos verdes anos e os meus seios são ainda os túmidos frutos que guardavas nas tuas mãos. A minha boca tem a cor dos morangos e sabe a sumo e ainda o podes vir beber.
Às vezes vens de longe e eu, aqui sentada, com gaivotas no colo e gatas aos pés, ouço, de longe, os teus passos exactos e sinto o teu corpo seco e masculino. As gaivotas começam logo a sacudir a plumagem, limpam o bico amarelo. Vaidosas, possessivas, vão querer-te só para elas e as gatas desprendem-se das minhas pernas e começam a roçar-se nas paredes, lúbricas vadias, e eu ajeito o cabelo, ajeito a saia e, adolescentes, esperamos que entres para fazermos uma festa.
Mas outros dias há que são apenas envoltos pelo silêncio molhado que sobe do rio, não há passos que agitem os nossos corações sedentos. E, então, apenas olho esta janela aberta. As gaivotas fecham os olhos e as gatas enroscam-se desinteressadas, e eu, na maior solidão, imagino que te vejo ali, como num retrato. E imagino que a pedra à volta é uma moldura talhada no mais frio dos longínquos tempos.
[Debaixo desta janela Pedro Tamen deixou um poema e debaixo do poema, depois do meio dia, há um fauno que, pela mão de Debussy, aparece para tocar. Os belos espíritos gostam de se juntar]
Janela a céu aberto no casario do Ginjal |
Ora me calo. Que o túmido fruto
em que nos temos vire, e a face
mude. Que o meu olhar te seja enxuto.
Tu já pisavas chão que me calasse,
anunciavas casas e paz dura,
um vento masculino, seco, exacto.
Mas não te deixo: agora sê retrato,
e o tempo à tua volta só moldura.
['Aparição.VII' de Pedro Tamen in 'No cais da Poesia 2, Antologia']
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PROVOCAÇÃO FOTOGRÁFICA
"Janela a céu aberto"
lugar dantes proibido
onde o nosso encontro incerto
era o labirinto...
Hoje passo por lá silenciosa
já quase não lembro
as palavras, os gestos,
as promessas
em que
afinal
nenhum de nós acreditou
às escondidas
o meu sorriso lembra
que no último momento
me livrei das grades
e daquele espécie de tormento
(afinal
sempre esteve tudo mal)
hoje sou livre
restam apenas as grades ferrugentas
de uma misteriosa janela do Ginjal
[Belo poema da autoria de Era uma Vez - a quem agradeço e quem louvo a arte - publicado em comentário aqui abaixo]
Cara UJM:
ResponderEliminar“Janela a céu aberto”!
Interessante janela! Que feitiço encerrará esta janela?
Janela para namorar, para ver cair a chuva, ver um belo pôr do sol, ver raiar a madrugada, observar o voo das gaivotas , afagar os gatos, ou ouvir cantar rouxinóis?
Quem estará por detrás desta janela ?
Poeta ou mulher apaixonada?
Afortunados os
Emoldurados por janela a céu aberto!
E Debussy a exaltar.
Luísa sobe a calçada
Olá Luísa que aqui vem subindo a calçada,
EliminarEste fantástico casario, decadente, esventrado, é para mim um local mágico.
Racionalmente acho que todo o Ginjal deveria ser reconstruído, tem um potencial turístico e cultural ímpar; só um desmazelo imperdoável justifica este lamentável abandono - e, no entanto, é, ainda assim, um local que me permite todos os voos, todos os sonhos.
Já várias vezes me bati pela dignificação e manutenção do local - mas, no entanto, temo que, se algum dia, alguém meter mãos à obra, estrague tudo porque só alguém que muito ame este local poderá fazer qualquer coisa sem atentar contra a sua majestade.
E, sim, este é um local privilegiado para poetas e apaixonados.
Cara UJM:
ResponderEliminarUm retrato bonito, inteiro, enquadrado em bela moldura!
Gostei.
J. Rodrigues Dias
Caro J. Rodrigues Dias,
EliminarObrigada. Gostei de escrever, gosto do poema. E gosto daquela janela, passo a vida a fotografá-la (as estações passam por ela, agora tem flores, às vezes tem gotas a escorrer, outras vezes tem vento, e eu acho sempre bonita).
PROVOCAÇÃO FOTOGRÁFICA
ResponderEliminar"Janela a céu aberto"
lugar dantes proibido
onde o nosso encontro incerto
era o labirinto...
Hoje passo por lá silenciosa
já quase não lembro
as palavras, os gestos,
as promessas
em que
afinal
nenhum de nós acreditou
às escondidas
o meu sorriso lembra
que no último momento
me livrei das grades
e daquele espécie de tormento
(afinal
sempre esteve tudo mal)
hoje sou livre
restam apenas as grades ferrugentas
de uma misteriosa janela do Ginjal
Erinha dos poemas,
ResponderEliminarQue facilidade a sua, e como pega sempre tão bem nas ideias e as transforma desta maneira..! Que beleza. Vou ter que pegar outra vez no poema e levá-lo até mais perto da janela, está bem?
Acho que ali fica melhor.
PS: Não se esqueça de ir fazendo uma cópia para si, para o seu livro...!
de pedro tamen gosto dos titulos dos seus livros, há poetas assim, que sabem achar titulos que são já em si literatura,
ResponderEliminarna ficção lndissimos os titulos dos romances de lobo antunes p ex.
se gosto dos titulos dos livros de p tamen, já gosto menos dos seus poemas, talvez muito barrocos e de torturada liguagem. Mas pouco conheço dele, talvez mesmo por isso.
Eu gosto muito de Pedro Tamen, muito dos títulos também, mas também muito dos poemas em si. Este aqui acima não é o usual nele, nem sei se o compreendo exactamente mas também não me preocupo com isso porque me soa estranho, impalpável, belo. Aconselho-o a tentar o 'teatro às Escuras', belíssimo.
ResponderEliminarOs livros de António Lobo Antunes têm de facto óptimos títulos mas eu, há já algum tempo, que deixei de ter paciência para me obrigar a mim própria a chegar ao fim dos livros. É muita confusão e muito não sair do mesmo sítio para o meu gosto. Mas se calhar é problema meu.