Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

27 março, 2012

Então acordo e sinto a meu lado o esplendor tranquilo da amada que respira, adormecida sobre o flanco

 
Abres a janela e dizes que já é dia, que me chegue a ti, que me deite no teu ombro, que acorde. Protesto, quero dormir mais. Abraças-me e dizes que já é dia, que me chegue a ti. Protesto, quero dormir mais.

Tantas vezes isto, tantas.

Outras vezes acordo e estás a olhar para mim, dizes que já estás assim há muito tempo e eu olho pela janela aberta e vejo os pássaros pousados na varanda. Olham-me também. E eu protesto, não gosto de acordar a sentir-me observada. E tu dizes que já é dia, que acorde e que me chegue a ti. E eu protesto, não quero que me olhes, quero dormir mais.

Tantas vezes isto, tantas.

Mas, outras vezes, raras vezes, acordo e estou sozinha, ninguém me acorda, ninguém me olha, a janela está fechada, a luz não entra, os pássaros não olham. Fico, então, admirada, sem saber de ti, sem saber que dia vai ser aquele que começa assim, tão estranho, tão solitário. 

Penso, então, só para mim, em segredo, que o teu olhar e o teu abraço enchem de claridade o começo dos meus dias. Mas que ninguém me ouça...



[Em silêncio, rente à claridade do dia, sigamos até à lírica de Fernando Assis Pacheco que está já aí, a seguir à gaivota que hesita. Depois, sigamos um pouco mais porque o piano hoje é surpreendente.]


Numa manhã de doce claridade no Ginjal, gaivota caminha entre o gradeamento e a beira do cais,
 mesmo rente ao Tejo, hesitante entre voar e andar, meditando


                        Então acordo e sinto a meu lado
                        o esplendor tranquilo
                        da amada que respira
                        adormecida deitada sobre o flanco
                        vertendo a prata dum sorriso

                        nas ravinas da noite
                        esferas cantam a alegria
                        é um sítio de grama rociada

                        e passam horas
                        durante as que da rua
                        ouvindo vozes turvas
                        eu ficarei teimando
                        na claridade a todo o preço

                        de que me falam as aves


                       ['Lírica de Pardilhó' de Fernando Assis Pacheco in 'A Musa Irregular']

4 comentários:

  1. Cara UJM:
    Hoje, noctívaga, para dormir o relógio ainda não avançou, depois de ver a fotografia e o poema que a ilustra um pensamento, uma ideia ... e desculpe o atrevimento, ou a minha pretensão e intromissão na sua privacidade, mas mesmo assim deixo a sugestão: Uma exposição - fotografia com poesia -

    Na fotografia , tão sugestiva ... a luz e a sombra, o claro e o escuro, e o esplendor tranquilo, das aves na claridade .. que apontam para o poema.
    Gostei muito
    E tenha um claro dia
    um abraço da
    Luísa sobe a calçada

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    1. Luísa que, pela noite, sobe a calçada,

      Tenho milhares, milhares de fotografias e não me canso de fotografar mas não me ocorre outra coisa que não isto que faço aqui, partilhar convosco. Tudo o que vá para além disso, acho que é dar-me importância de mais. Tenho recebido sugestões de publicações de livros e até também de expor fotografias mas não consigo levar a sério. Também gosto muito de cortar cabelos (ainda há bocado estive a cortar os cabelos dos dois rapazinhos pequenos e, por isso, hoje já estou a começar aqui no computador com um enorme atraso) e não me ocorreria abrir uma barbearia... Não sei explicar melhor. A minha vida profissional é tão nos antípodas que, isto aqui, é tudo e só prazer.

      Mas gosto de saber que o que faço é apreciado. Sinto-me recompensada.

      Obrigada e espero que ponha as horas de sono em dia (as minhas nunca andam, para mal dos meus pecados)

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  2. ERA UMA VEZ28 março, 2012

    Longas são as noites

    quando o sono emigra
    em busca de razões
    e demora a retornar

    impotente
    atravessas sozinha a escuridão
    ansiosa pela luz do dia
    como se ele trouxesse a solução

    e tu mulher ficas em espera
    sabendo apenas
    que quando um filho sofre
    o que dói é mesmo o útero
    mais que o coração...

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  3. Erinha,

    Quando um poeta escreve, quem lê não sabe bem se o poema é a expressão de um sentimento actual ou se é recordação de algo que se passo ou se imaginou.

    Ou seja, leio este seu belo poema e fico com o coração em suspenso, percebo muito bem, a mim também o que me desatina é quando os meus meninos (os grandes ou os pequeninos) estão doentes. Para eu estar descansada, tenho que os saber bem.

    Por isso, fiquei apreensiva: será que algum dos seus queridos meninos está doente? Ou com algum problema? Tomara que não, que estejam bem ou, então, que seja virose ou aborrecimento passageira.

    Mas o que espero mesmo é que o poema seja só inspiração em abstracto e que estejam todos bem dispostos, felizes, saudáveis.

    Um beijinho, Isabel.

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