Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

21 março, 2012

Levo-a como uma deusa ao templo do mar e vejo-a despir-se como se fosse flutuar

 
Quando chego a casa assim cansada, deito-me e deixo que as pálpebras tombem, que o corpo descanse, e toda eu esqueço o dia que passei, toda a vida passada, tudo. Descanso apenas.

Tu aproximas-te então, encostas-te a mim, tiras-me a roupa com cuidados mil, e eu deixo que trates de mim. Sinto, então, que dos teus dedos nascem flores e as macias pétalas começam a tocar o meu corpo, e é uma doçura bondosa que eu sinto. Devagar, aproximas-te ainda mais e falas uma estranha língua, uma língua sem idade, e eu deixo que a tua língua me diga segredos murmurados e suaves.

Aproximas-te ainda mais, sinto o cheiro tépido e familiar do teu corpo, a tua boca beija-me com cuidada ternura e eu sinto o carinho com que tentas que o meu corpo descanse da intensidade do dia.

Então, quando eu estou totalmente tranquila e rendida, tu pegas-me ao colo e levas-me até à beira do mar. Aí chegados, tu, com gentileza e devoção, pousas-me como num templo e eu aceito, agradecida, que me tenhas levado à rendição.

Despida na beira do rio, dizes-me, então, baixinho, que pareço estar a flutuar e pedes, baixinho, que te leve comigo. Digo-te que sim, é o que eu quero e puxo-te: anda, põe-te aqui em cima de mim, vamos os dois

E, sob um céu que brilha como que iluminado por mil velas, envoltos em segredos e estrelas proibidas, entramos os dois no mais profundo recanto do mar, lá onde o céu e o mar se tocam, lá onde os corpos se desfazem do desejo que os consome.

Se alguém nos visse diria, olha como aquelas duas estrelas brilham ou, então, lá vão dois anjos. Mas somos apenas nós, felizes, flutuando sobre o sagrado templo do mar.


No Ginjal, gaivota pousada como uma deusa num altar. Ao fundo, Lisboa a bela, o mais sagrado templo.


             É um mistério esta claridade
             que nasce de um corpo sem passado,
             onde a leio numa língua sem idade,
             adivinhando o seu futuro neste fado.

             Caem pálpebras num cair de pano,
             abrem-se dedos num florir de mão,
             no seu jardim a primavera não é engano,
             no seu rosal o amor está em botão.

             Uma boca de pérolas envolve-a de segredo,
             e dela tiro um brilho de estrela.
             Respiro o seu perfume sem ter medo,

             acendo nos seus olhos a última vela.
             Levo-a como deusa ao templo do mar,
             e vejo-a despir-se como se fosse flutuar.


              ['Vénus aérea' de Nuno Júdice in 'Guia de conceitos básicos']

8 comentários:

  1. bonito e delicado soneto, talvez com ele se pudesse compor um fado, como parece convidar o 4º verso.
    Penso que o sujeito do soneto, do principio ao fim, é esta claridade. Tem versos muito belos que se podem retirar do todo e isolar que continuam a ser belos: Respiro o seu perfume sem ter medo ou Caem pálpebras num cair de pano, p ex, são belos versos mesmo se retirados do seu contexto.
    Bela igualmente a glosa onde leio numa língua sem idade é uma estranha lingua e onde as palpebras que caem significam o cansaço.
    bom exercicio, a glosa duma poesia, que é tambem uma forma de a ler.

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    1. É muito bonito, é bordado fino, dos antigos, dos demorados, dos clássicos. Um pano branco, luminoso, no qual pousam delicados bordados.

      Muito bonito mesmo este poema, adorei.

      Gosto de escolher um poema, escrevê-lo aqui (como quem faz uma cópia) e depois, sem pensar, escrever o que me vem à cabeça. É o que fica na minha cabeça depois da leitura do poema. Eu gosto de fazer isso.

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  2. no dia mundial da poesia
    encontrei na estante
    uma que dizia
    algo raro mas que não
    provocou em mim
    especial reação.

    tinha sido escrita
    em tinta verde
    e o papel ruim
    mostrava o tempo
    que tinha decorrido.

    mas o raro era
    que falava
    de algum menino
    que com impuro
    pensamento contra
    a árvore pedras
    pensava arremessar.
    Que te fez essa árvore,
    para que a queiras
    tratar assim,
    perguntava.
    no hace nunca
    daño a nadie
    y no se merece
    tan mal trato
    ya sea sauce pensativo
    ya melancólico naranjo

    Continuava a poesia
    falando do caso
    da arvore
    e do menino
    por 82 versos mais.

    Estava o poema
    encontrado na estante
    assinado por um tal
    nicanor parra.
    fechei a gaveta.

    e assim foi
    no dia mundial
    da poesia.
    Isto li.

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    1. Caro Patrício Branco,

      Ontem não tive ocasião para lhe responder ou melhor, para lhe perguntar: é seu?! Diga-me... Achei tão engraçado pensar que tenha sido escrito por si, pensei que seria um estudioso atento, não um aventureiro poeta. diga-me. Gostei mas estou curiosa.

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  3. é por assim dizer a descrição duma leitura que fiz do poema
    defensa del arbol do poeta chileno nicanor parra, misturada com invenções e falsidades:

    http://www.nicanorparra.uchile.cl/antologia/poemasyantipoemas/index.html

    DEFENSA DEL ARBOL


    Por qué te entregas a esa piedra
    Niño de ojos almendrados
    Con el impuro pensamiento
    De derramarla contra el árbol.
    Quien no hace nunca daño a nadie
    No se merece tan mal trato.
    Ya sea sauce pensativo
    Ya melancólico naranjo
    Debe ser siempre por el hombre
    Bien distinguido y respetado:
    Niño perverso que lo hiera
    Hiere a su padre y a su hermano.
    Yo no comprendo, francamente,
    Cómo es posible que un muchacho
    Tenga este gesto tan indigno
    Siendo tan rubio y delicado.
    Seguramente que tu madre
    No sabe el cuervo que ha criado,
    Te cree un hombre verdadero,
    Yo pienso todo lo contrario:
    Creo que no hay en todo Chile
    Niño tan malintencionado.
    ¡Por qué te entregas a esa piedra
    Como a un puñal envenenado,
    Tú que comprendes claramente
    La gran persona que es el árbol!
    El da la fruta deleitosa
    Más que la leche, más que el nardo;
    Leña de oro en el invierno,
    Sombra de plata en el verano
    Y, lo que es más que todo junto,
    Crea los vientos y los pájaros.
    Piénsalo bien y reconoce
    Que no hay amigo como el árbol,
    Adonde quiera que te vuelvas
    Siempre lo encuentras a tu lado,
    Vayas pisando tierra firme
    O móvil mar alborotado,
    Estés meciéndote en la cuna
    O bien un día agonizando,
    Más fiel que el vidrio del espejo
    Y más sumiso que un esclavo.
    Medita un poco lo que haces
    Mira que Dios te está mirando,
    Ruega al Señor que te perdone
    De tan gravísimo pecado
    Y nunca más la piedra ingrata
    Salga silbando de tu mano.

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    1. É tão curioso o efeito que a poesia desperta em quem a gosta ou sabe ler. Por vezes, mais que as palavras em si, é a toada, é a própria música das palavras andando juntas - como talvez seja o caso. E é também curioso o efeito que a natureza, as árvores, tem sobre os poetas.

      Gostei muito de ler e de ler, depois, de novo, o seu poema, escrito após leitura. Se calhar costuma fazer isso e ainda não tinha contado...? Costuma escrever poesia?

      Deve ser uma coisa libertadora, imagino eu - eu que não consigo ser contida a escrever.

      Agradeço muito que, a mim e aos leitores aqui deste recanto, nos tenha dado a conhecer o seu poema/leitura e o poema que motivou a sa escrita.

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  4. bem, escrever escrevo, mas limitadamente. mantenho uma lista/registo de impressões de leituras, sobretudo de ficção mas tambem de teatro e poesia. Posso fazer uma critica formal, extensa, a um romance; ou um texto mais impressionista a um livro de poesia ou a um poema, como é o caso.
    Nas criticas mais estruturadas ponho inclusivamente a editora, o nº de paginas, o ano de publicação, o/a tradutora se é o caso, o preço, onde comprei ou li o livro, etc.
    Tambem faço ocasionalmente poesia ou diário, mas sou mais preguiçoso, posso estar semanas sem escrever, alem doutro defeito, que é quando componho uma poesia, se volto a ela, corrijo a, modifico a várias vezes, a ponto de já não saber como era o inicial. Prefiro portanto fazer a resenha um livro que li de maneira mais disciplinada.
    Enfim, tudo isto é uma maneira de passar o tempo, um exercicio intelectual.
    Na mesma linha vêm os comentários em 4 ou 5 blogues que são um prazer se o blogue me estimula, como é o caso dos seus 2. Agradeço por isso a possibilidade que me é dada de escrever (comentar).
    Mas a actividade mais regular que mantenho é de facto ler.

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    1. De facto ler é das melhores coisas da vida. Abre-nos portas, mostra-nos outros mundos, mostra-nos por dentro a cabeça de outras pessoas, transporta-nos para outras realidades. Tenho tanta falta de tempo para ler. Quando vou de férias, nem que seja por 3 ou 4 dias, vou carregada de livros e depois nunca leio nem metade. e estou cercada de livros que não arrumo para não lhes perder o destino e não consigo ter tempo. Um dia mais tarde.

      Acho interessante isso que faz, de escrever as suas opiniões, críticas, impressões, é intelectualmente interessante e deve ser um prazer. Falar ou escrever sobre livros é um prazer.

      Fico muito contente e orgulhosa que goste de ler e comentar o que escrevo. É tudo escrito à pressa, não tenho tempo para cuidar mas, enfim, talvez valha pela espontaneidade...

      Obrigada (com toda a sinceridade).

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