Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

29 fevereiro, 2012

Porém nada perdido, que este verde coração se arruma como louco sobre as ondas, e procura e procura


Sobre este rio cintilante cujas saias se desdobram e alargam para o mar há um veleiro que todos os dias abre as suas brancas velas e vai, incansável, a favor do vento, ou contra o vento.

Dia após dia, o veleiro rompe as águas, alarga as velas, enfrenta o sol ou a chuva, percorre os caminhos brancos do rio e sai gritando, gritando, gaivotas desesperadas em coro, e o veleiro desliza, rodopia, adorna, quase se vira. Mas continua sempre.

E vem a noite e o veleiro hesita em regressa; já todos os outros voltaram às docas e este veleiro, bravo, lutador, ainda aqui anda, e grita, grita e as gaivotas gritam em volta.

E as velas envelhecem e o branco tolda-se e as ondas batem na madeira gasta e os gritos tornam-se roucos, cansados.

O rio brilha, indiferente e orgulhoso e este veleiro aqui anda, em volta, procurando, procurando e, quem está na margem, é sempre o mesmo nome que ouve, um nome às vezes quase cantado, outras implorado, até chorado. E as gaivotas gritam os seus gritos desolados e o nome já quase não chega a terra. Mas todos os dias, com vento, sem vento, com sol, sem sol, este gasto veleiro, salta as ondas com a esperança dos pequenos barcos que ainda não experimentaram as decepções da vida e grita, grita sempre o mesmo nome e, na margem, as pessoas esperam ver, um dia, sair das águas o ser cujo nome há tanto tempo alguém grita. 

Lá dentro, naquele veleiro silente e belo, um coração louco, um coração que um dia se perdeu e que desliza com velas brancas sobre o mar.



[Meus amigos, deslizem com o veleiro pelo rio cintilante, vejam o belo poema de Assis Pacheco e depois, por favor, sigam até ao violino e piano na música perfeita de Brahms]

Belo veleiro cruza o Tejo num dia cintilante


                        O meu coração é um navio
                        que te procura nos sete mares,
                        que à flor das águas vai e vem
                        gritando, atirando o teu nome.

                        O meu coração é um navio
                        que te procura mas não te encontra.
                        A oeste, a Leste, a Sul, ao Norte
                        retesa as velas, mas não te encontra.

                        Envelheceram já muitas palavras.
                        Porém nada perdido, que este verde
                        coração se arruma como louco
                        sobre as ondas, e procura e procura.


                        ['Guiarás o Povo' de Fernando Assis Pacheco in 'A musa irregular']
 

Brahms - Daniel Barenboim ao piano e Itzhak Perlman no violino interpretam a Sonata No.1 G Major - Allegro molto moderato

 

  

28 fevereiro, 2012

Calcorreando o nosso corpo chegamos a um limite que transposto significa o preço da coragem

Há um sopro longo que me percorre o corpo inquieto, há um sopro que me inquieta, há um sopro suave que me afasta da quietude morna destes dias tão iguais.

Corro os olhos pelas paredes gastas, percorro as janelas abertas, aspiro o vento solto, deixo-me levar.

Há um rio largo e suave, silencioso, cúmplice, e há os veleiros brancos que por lá deslizam, mastros ao alto, elegantes e suaves. E há este vento húmido, íntimo, que esconde as velas brancas entre as árvores, e esconde a gente que lá vai, e há as grandes aves brancas que gritam impacientes e há os gatos que olham com suspeição quem por aqui passa levado pelo vento.

Os telhados estão abertos, o céu entra dentro das casas, as paredes têm cores de outros tempos e não há ninguém; e então eu vejo uma porta aberta para a qual o vento me empurra.

Entro e misturo-me com as gaivotas, com as redes dos pescadores, com o cheiro do mar e tu vens atrás de mim, calcorreaste o mesmo caminho e agora calcorreias o meu corpo, e juntos transpomos um a um todos os limites, e juntos murmuramos os sons do mar e há amor e coragem e loucura nos nossos gestos lentos e há carinho no olhar manso das gaivotas.

A mesma loucura que nos leva depois a voar, abraçados, sobre o mar.



[Tocada pelo espírito de Chagall, voo sobre o mar - mas convido-vos a voar comigo. Passemos primeiro pelo belo poema aqui já a seguir e pousemos depois a tempo de ouvir Brahms, a bela música de Brahms]

No pequeno jardim do Ginjal, veleiro avistado entre as árvores

 
                          Há um murmúrio longo
                          a pôr-se do lado do vento
                          Vê-lo é difícil
                          talvez por entre as velas do mastro

                          Calcorreando o nosso corpo
                          chegamos a um limite que transposto
                          significa o preço da coragem

                          Assim estamos
                          com a dificuldade de entender
                          o que há para ver e o já visto

                          Então tapamos os olhos
                          e seguimos em frente
                          até ao mar


[Poema de 1986 de 'A água que nos move' de José Alexandre Caldas Ribeiro da editora Mariposa Azual]

Brahms - Rubinstein ao piano interpreta Piano Concerto No.1 - I Maestoso

 

  

27 fevereiro, 2012

Com sílabas de palavras caídas em desuso o teu nome volta a formar-se


Há um brilho no ar, no mar. Há gaivotas que voam livres e brancas (sempre estes grandes pássaros que habitam a minha vida), e há um cristo ao longe que nos protege num longo abraço, há um céu luminoso, há um sol quase quente e sinto que há, dentro de mim, dolorosos pequenos pedaços de seda, de sonho, plumas, penas, dores, lágrimas, pequenos nadas que eu gostaria de colar.

Mas fecho os olhos e vejo-te, distante, e eu de mãos vazias, olhos ocos, voz seca. E abro-os de novo e penso em pedras soltas, pequenas contas de um colar que se partiu, folhas rasgadas, folhas secas, pétalas num saco, sem cor, quase sem cheiro, e eu aqui sozinho, derrotado.

E então forço-me. Olho de novo o mar que brilha, sinto o sol que cintila sobre as águas e formo letra por letra, sílaba por sílaba, o teu nome, um nome que se perdeu no tempo, que se afastou na distância de um abraço que ficou por dar. Olho a gaivota que voa sobre mim e, finalmente, consigo dizer o teu nome, o teu nome dito baixinho, num sussurro, num receoso sopro. Depois fecho os olhos e acrescento: vem.


[Festejemos, pois, um nome que se voltou a dizer, um reencontro que se deseja. Detenhamo-nos no poema e, depois, sigamos até à dança de Brahms, dancemos, festejemos.]

Contemplação do horizonte, brilhante, tangível


                            Colo-as. Mesmo aos pedaços
                            demasiado pequenos. Com sílabas
                            de palavras caídas em desuso
                            o teu nome volta a formar-se.
                            As coisas recuperadas seguem-no. Partem-se de novo
                            por raramente resistir a pronunciá-lo.
                            Dizê-lo é uma espécie de vitória.


                            ['As coisas recuperadas' de Inês Fonseca Santos in 'As coisas']

Brahms - Tomomi Nishimoto conduz a Orquestra Sinfónica de Bolshoi na Dança Húngara No. 5


26 fevereiro, 2012

Vós que, de olhos suaves e , com justa causa a vida cativais, quero que saibais

   
Vens na minha direcção, sorris, queres ser perfeito, que nada macule a imagem que tenho de ti, tudo fazes para me agradar. E, no entanto, no último instante, tropeças, quase cais e, nesse inesperado desequilíbrio, és deselegante, mostras a tua fragilidade. Olho-te e onde, segundos antes, via um sorriso confiante, vejo agora um sorriso tímido, envergonhado, por pouco não caías, desprotegido, aos meus pés.

E, no entanto, mais do que a quase queda, o que me incomoda é que tenhas ficado envergonhado por tão pouca coisa.

Não sabes já que sei de ciência feita que não há coisas perfeitas, pessoas perfeitas, sentimentos perfeitos? 

Não há e felizmente que não há. Jamais eu me poderia interessar por alguém que fosse quase perfeito (totalmente perfeito é coisa que não existe em nenhum reino da natureza).

Conheço-te bem demais e não perdoo que não distingas a sálvia de uma qualquer erva pouco nobre, que não saibas o nome da esteva, que não te deslumbres com o alfazema em flor, que não te preocupes com a falta de chuva que pode não deixar vingar os pequenos cedros. E não perdoo tantas outras coisas igualmente graves. E, no entanto, o que eu não perdoaria mesmo é que não houvesse nada a perdoar.

Não é possível o amor sem manchas, sem erros, sem desmandos, sem acusações, sem perdões, sem afastamentos definitivos logo seguidos de amenas aproximações.

Assim é a vida, meu amor, assim é o amor, minha vida.



[Nem parece que fui eu que escrevi isto... deve ter sido o espírito de Camões que aqui repousou por um breve instante. Mas, depois de, com olhos suaves e serenos, lerem a sua palavra já aí abaixo, não deixem se seguir até ao post seguinte onde um belíssimo concerto para violino dá início à semana que dedico a Brahms.]

                       


                                 Vós que, de olhos suaves e serenos,
                                 com justa causa a vida cativais,
                                 e que os outros cuidados condenais
                                 por indevidos, baixos e pequenos;

                                 se ainda do Amor domésticos venenos
                                 nunca provastes, quero que saibais
                                 que é tanto mais o amor depois que amais,
                                 quanto são mais as causas de ser menos.

                                 E não cuide ninguém que algum defeito,
                                 quando na cousa amada se apresenta,
                                 possa diminuir o amor perfeito;

                                 antes o dobra mais; e se atormenta,
                                 pouco e pouco o desculpa o brando peito;
                                 que Amor com seus contrários se acrescenta.


                                 ['Vós que, de olhos suaves e serenos' de Luís Vaz de Camões]

Brahms - Gidon Kremer no violino com Leonard Bernstein a conduzir a orquestra interpretam o Concerto para Violino

 

  

23 fevereiro, 2012

Falei de ti com as palavras mais limpas

 
Tantas vezes aqui clamo o meu amor, grito-o ao vento, voo sobre o Tejo e grito-o aos barcos, às gaivotas, enrolo-me nas velas dos veleiros brancos e grito que te amo, deslizo e mergulho, e digo que te amo. Ou torno-me aragem, vento, pluma, pena e acaricio a tua face e beijo-te e abraço-te, ou corro pelos ares e sou como as folhas douradas e ando junto aos teus pés, enrolo-me nas tuas pernas, folha, flor, vento, pássaro, aragem, e sou eu sempre junto a ti.

Outras vezes sou transparente, silencioso, e encosto-me a ti enquanto vais sozinha, e falo contigo, sussurro ao teu ouvido e tu ris, e brinco com o teu corpo, mexo-te, puxo-te, enrosco-me e tu contas-me os teus segredos, contas-me os teus sonhos e eu ouço-te, minha amiga, meu amor, conta-me tudo, que eu estarei sempre a teu lado ou, então, dentro de ti.

E quando estás tensa, triste e cansada ou quando estás animada e feliz, estou eu sempre junto a ti, a minha mão a conchegar o teu coração, o teu sorriso na concha das minhas mãos, sempre a teu lado, sempre a sentir a tua respiração rente à minha.

Mas tu sabes isto, não sabes?



[Palavras em festa pedem uma música em forma de primavera - é já aí em baixo, depois do belo poema do Assis Pacheco]

Rente ao Tejo de frente para Lisboa, a Bela e Luminosa


                             Falei de ti com as palavras mais limpas,
                             viajei, sem que soubesses, no teu interior.
                             Fiz-me degrau para pisares, mesa para comeres,
                             tropeçavas em mim e eu era uma sombra
                             ali posta para não reparares em mim.

                             Andei pelas praças anunciando o teu nome,
                             chamei-te barco, flor, incêndio, madrugada.
                             Em tudo o mais usei da parcimónia
                             a que me forçava aquele ardor exclusivo.

                             Hoje os versos são para entenderes.
                             Reparto contigo um óleo inesgotável
                             que trouxe escondido aceso na minha lâmpada
                             brilhando, sem que soubesses, por tudo o que fazias.



                             ['Sem que soubesses' de Fernando Assis Pacheco in 'A Musa Irregular']
                       

Schumann - Leonard Bernstein à frente da orquestra que interpreta a Sinfonia No.1 "SPRING"

22 fevereiro, 2012

Já é tarde e quedamo-nos na violência do adeus


Disse-te adeus e saí. Pouco mais tinha a dizer, fiquei sem palavras. Não te beijei, não te abracei - seria doloroso demais, seriam os últimos gestos de carinho. Assim beijei-te e abracei-te um dia antes pensando que os últimos viriam depois. Não vieram. 

Talvez um dia metade do mundo desapareça e nós dois façamos parte da metade que fica. Foste tu que um dia o disseste. Mas nem sei já se o quero. Se isso acontecesse, seria quando? Daqui por muito tempo, quando já formos outros. Nós mudamos, meu amor.

Agora, aqui sozinho sobre o rio negro, ouvindo as gaivotas, pequenos pontos brancos que esvoaçam junto a mim como se fossem pontos de esperança sob um céu negro, eu aqui perdido no meio da noite silenciosa, olho um horizonte que não vejo, e penso que perdi uma parte de mim. 

Queria ter aqui, comigo, o teu rosto de menina, o teu sorriso feliz, queria a tua mão suave sobre o meu braço, queria sentir o desejo no teu olhar, queria espreitar-te o decote, queria sentir as tuas pernas, queria ouvir a tua voz, queria sentir o teu afago nos meus cabelos, queria que me chamasses 'meu menino', queria que me quisesses para sempre, queria que a vida não nos tivesse juntado para logo nos separar, queria tão pouca coisa, minha querida, e não tenho. Palavras que assim penso, coisas que vêm e não vêm ao caso, soluços mudos, neblinas densas afogando os meus sentimentos proibidos.

Já é tarde e não consigo recuperar da violência do adeus. 



[O piano de Schumann aqui já a seguir contam o resto da história]

Em Belém à noite, mesmo sobre o Tejo


                                  Vozes e azul claro o céu, vozes ao longe,
                                  o céu de breu
                                  a tua face de anjo ou demónio
                                  o sorriso
                                  demasiado perto do meu

                                  Estalidos secos na língua
                                  março com sol e neblina
                                  no meu e no teu corpo
                                  o desejo

                                  Dizes o que vem e não vem ao caso
                                  porta fora, porta dentro,
                                  imploras mais um beijo, um abraço,
                                  uma qualquer forma de entendimento

                                 Já é tarde e quedamo-nos na violência
                                 do adeus


                                [Poema de Helga Moreira in 'Vozes e Olhares no feminino']
                   

Schumann - Horowitz interpreta Traumereï (Kinderszenen)

 

  

21 fevereiro, 2012

Oh amor de todos os amores ácido como um banho quente


Pode amar-se um poema como se fosse gente? Pode uma pessoa imergir num poema como se fora um vagaroso banho quente? Podemos entrar por um poema como se entrássemos numa floresta cheirosa e húmida?

Pode, pode, pode. 

Pode gostar-se de palavras como se gosta de sorrisos, pode aceitar-se a nostalgia de algumas palavras como se aceita a doçura morna das lágrimas de amor. Quem muito ama a vida, muito ama as palavras.

Ando junto ao rio, e o ar está tão frio e azul, e os barcos passam silentes e dignos, e a grande cidade mostra-se nos espelhos das janelas e eu sinto que as palavras dos poetas andam por aqui, rondando as paredes gastas, murmurando sons inaudíveis, palavras soltas, palavras em busca de par, palavras que se misturam com os olhos límpidos dos gatos que se escondem nas casas desabitadas, palavras que chegam à praia trazidas pela corrente do rio.

Pode amar-se tudo isto? O ar tão puro, a aragem macia e o vento viril, o rio silencioso e belo, os grandes e indiferentes navios, os elegantes veleiros de suaves velas brancas, as paredes gastas, os gatos fugidios, os telhados partidos, as árvores que se vergam junto à margem, o homem que comigo percorre estes caminhos, e as palavras que esvoaçam à minha volta e as palavras que saem dos livros para aqui se aninharem junto a mim e os poemas que os poetas portugueses soltaram nos céus que nos protegem?

Pode. Assim é o meu amor.



[Deixe-se levar pela maresia doce, deguste o poema de Regina Guimarães e, depois, com vagar, deixe-se ir até a Carnaval de Schumann, belíssimo]

Janela no Ginjal, reflectindo o Tejo e Lisboa do outro lado


                               Oh amor de todos os amores
                               ácido como um banho quente
                               longo como um naufrágio
                               doce como um sumo de floresta.

                               Não se pode estar na poesia
                               como numa prisão
                               pobre contagem de cada dia
                               pelos dedos duma bela sem senão
                               e nenhuma parede onde riscar
                               o par do número par.

                               Nenhum espelho
                               nem a vontade de o quebrar.


                               [Poema de Regina Guimarães in 'Vozes e Olhares no feminino']

Schumann - Gabriele Baldocci interpreta Carnaval

  

20 fevereiro, 2012

A ti eu voltarei após o incerto calor de tantos gestos recebidos

 
Habito a minha casa como habito o meu corpo. Gosto de me deslocar às escuras percorrendo os corredores, os quartos, como se percorresse as minhas veias, as minhas vísceras. 

Enfeito a casa como me enfeito a mim, eu e a minha casa, eu e a minha pele. Passo e vejo-me num espelho: esta sou eu, este é um bocado da minha casa. 

Ali naquela cama estiveram os meus filhos deitados sobre mim, deitados no meio de nós, brincando, rindo, e eu feliz e quente por baixo dos seus risos macios.

Ali, junto à janela, naquela cadeira de madeira com uma almofada amarela, me sento eu tantas vezes a falar com os que estão longe e que, naquele momento, se sentam à minha volta. 

Aqui nesta mesa estão tantos livros carregados de poemas. Alguém um dia os escreveu e eu, guardadora de vozes, aqui os tenho, irreverentes, meus amigos que saltam das estantes para se virem aninhar aqui junto ao meu colo. Nesta mesa em que escrevo está uma grande parte de mim.

Quando eu me for, ah quando me for, porque um dia eu irei, não vou poder levar nada comigo, nem estas molduras cheias de sorrisos felizes, nem esta luz dourada aqui sobre mim, nem a cadeira que era da minha avó e na qual agora me sento.

Mas eu acho que muito de mim vai aqui ficar. Nestas almofadas grandes e macias que estou agora a olhar, nesta bailarina colorida que, suspensa, rodopia à minha passagem, na ampulheta de vidro que marca o escorrer do tempo, num leque antigo, nos meus queridos livros, em tudo isto está tanto de mim.

Sou eu, silenciosa, intangível, eu já renascida, eu na minha casa.



[Sigamos agora, meus amigos, até à Casa Branca de Sophia e, logo a seguir, o piano de Schumann espera por nós]

Harmonia e um suave colorido nesta composição que se encontra
à porta de um dos restaurantes da ponta do Ginjal


                                              Casa branca em frente ao mar enorme,
                                              com o teu jardim de areia e flores marinhas
                                              e o teu silêncio intacto em que dorme
                                              o milagre das coisas que eram minhas.

                                              A ti eu voltarei após o incerto
                                              calor de tantos gestos recebidos
                                              passados os tumultos e o deserto
                                              beijados os fantasmas, percorridos
                                              os murmúrios da terra indefinida.

                                              Em ti renascerei num mundo meu
                                              e a redenção virá nas tuas linhas
                                              onde nenhuma coisa se perdeu
                                              do milagre das coisas que eram minhas.


['Casa branca' de Sophia de Mello Breyner Andresen in 'Vozes e Olhares no feminino']
  

Schumann - Khatia Buniatishvili interpreta Fantasia in C major op.17


  
  

19 fevereiro, 2012

Onde mora a memória obscura, onde esse cavalo persiste como um relâmpago de pedra


No mais fundo de mim sei que há muito esqueci o que me move. 

Lembro-me, mas muito remotamente, que, em tempos, eu tinha pernas fortes, músculos desenhados, tendões elásticos, tinha braços que sabiam abraçar, um rosto que gostava de se ver nos olhar das mulheres, sei que tinha uma voz que diziam poderosa e quente. Sei que isto é verdade.

Agora fecho os olhos, tentando ver dentro da minha obscura memória um homem que por aqui corria, passada larga, coração ardente, como um cavalo impaciente, como um conquistador. Era eu a caminho do mar. Outras vezes era eu a caminho da mulher que comigo se escondia no fundo do barco, rente à ondulação nocturna deste tão amado rio.

Agora estou velho, cansado e tu já não existes, minha mulher de pele salgada, agora és apenas um corpo que se desfez na terra. E eu agacho-me aqui, sem forças, aspirando o ar do mar, mal sentindo estes meus membros silenciosos, este rosto fechado onde o olhar há muito escureceu, estas mãos vazias, tão vazias, e espero que um cavalo correndo neste chão de pedra, rente a estas casas pobres e vazias, passe, voando, e me leve para o fundo do mar.



[Não me apeteceu retomar Liszt que foi tão tristemente interrompido. Hoje começo a semana dedicada a Schumann e o som do piano faz-me falta neste momento. Convido-vos, pois, a acompanharem-me. É logo a seguir ao belo poema de António Ramos Rosa.]

Velho pescador rente ao Tejo, no Ginjal


                               Onde mora a memória obscura, onde
                               esse cavalo persiste como um relâmpago de pedra,
                               onde o corpo se nega, onde a noite ensurdece,
                               caminho sobre pedras na minha casa pobre.

                               Não conheço esse lago, não fui a esse país.
                               Mas aqui é um termo ou um princípio novo.
                               Com a baba do cavalo, com os seus nervos mais finos
                               reconstruí o corpo, silenciei os membros.

                               Não se estancou a sede, no mesmo caos de agora,
                               mas a língua rebenta, as vértebras estalam
                               por uma nova língua, por um cavalo que una

                               a terra à tua boca, e a tua boca à água.


['|Onde mora a memória obscura...|' de António Ramos Rosa in Antologia pessoal da Poesia Portuguesa de Eugénio de Andrade]

Schumann - Martha Argerich interpreta Concerto para Piano

  
  

13 fevereiro, 2012

(...) como se ouvisse enfim a língua mais oculta


Nesta manhã fria, afasto-me da gente que avança ruidosa. Desço até à praia, piso a areia molhada, e vou em total solidão, vencendo o silêncio que me rodeia, a caminho do mar.

Comigo vão os meus pensamentos, ideias que se desenham e se esvaem, e eu caminho, lentamente, sem vozes à minha volta, apenas o mar revolto, as ondas que se debatem vigorosamente. Olho o ar azul, tão límpido, sinto o ar frio, aspiro as gotas que vêm da água batida, da espuma que se evola no ar .

Depois dirijo-me até às rochas, procuro o perfume dos limos de veludo verde, a maresia presa às algas macias e cheirosas. 

E então um bando de gaivotas desce dos ares e começa a voar à minha volta e eu pasmo, dançam, dançam, leves, elevam-se e deslizam no ar, rodeiam-me, amparam-me. São anjos, senhor!

Com as suas longas asas brancas, soltando os seus gritos, brincam, pousam, esvoaçam, e eu sinto que me convidam e, olhando-as assim, livres, belas, sinto-me integrada no seu modo de vida e quase percebo o que dizem quando falam a sua língua mais oculta, a língua da liberdade total que eu tanto gostaria de falar, a língua na qual os sons se misturam de forma encantatória formando palavras aladas.



[Não é a voz das minhas amigas gaivotas mas é o som da música de Liszt - a seguir ao poema, encontrará o piano de La campanella, um som tão leve como um voo branco]



                                     Canta-me ave
                                     arcanjo
                                     com o bico puxa
                                     a farpa que desponta
                                     do meu cérebro

                                     Por montes e vales
                                     transmigre o canto
                                     e quem o escute
                                     se sinta
                                     recompensado
                                     revulsionado
                                     como se ouvisse enfim
                                     a língua mais oculta


                                     [A lume. II. de Luiza Neto Jorge in poesia]

Franz Liszt - Evgeny Kissin interpreta La Campanella

  
  

12 fevereiro, 2012

Para além da curva da estrada talvez haja um poço, e talvez um castello


Vou andando na vida, um dia após o outro. Sem pressa, sem vagar, sem inquietação, sem acomodação. 

A cada momento vou descobrindo o momento seguinte, abençoando cada bocado de vida que me vai sendo oferecido. Não me pre-ocupo, resguardo-me para o momento em que, de facto, tenha que me ocupar.

Não sei nem tento antecipar o que vem a seguir. A cada dia se dobra uma nova curva e eu não sei o que está para lá da curva. Alçapões, armadilhas, ameaças? Ou castelos, fantasias, magias, delíquios? Ou um caloroso abraço, mil beijos, carinhosos sorrisos? Não sei, não penso nisso, não me inibo, não me atemorizo, não me iludo. A cada momento estou totalmente disponível para viver com intensidade e total entrega o presente, a oferta, o momento que nos está a ser tão gentilmente oferecido. 

Apenas desejo ter ainda muito caminho para percorrer e tempo e energia para continuar a caminhar, a dobrar curvas, a descobrir o que há depois de cada curva.


[Abre-se hoje a semana que dedico a Franz Liszt. Por isso, permita que lhe dê o braço. Vamos descer um pouco mais, ver o poema de Caeiro (escrito na elegante grafia original) e, logo a seguir, ouvir o 1º concerto para piano? Vamos lá.]



                         Para além da curva da estrada
                         talvez haja um poço, e talvez um castello,
                         e talvez apenas a continuação da estrada.
                         Não sei nem pergunto.
                         Em quanto vou na estrada antes da curva
                         só olho para a estrada antes da curva,
                         porque não posso ver senão a estrada antes da curva.
                         De nada me serviria estar olhando para outro lado
                         e para quillo que não vejo.
                         Importemo-nos apenas com o logar onde estamos.
                         Ha beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer.
                         Se ha alguem para além da curva da estrada,
                         esses que se preoccupem com o que ha para além da curva da estrada.
                         Essa é que é a estrada para elles.
                         Se nós tivermos que chegar lá, quando lá chegarmos saberemos.
                         Por ora só sabemos que lá não estamos.
                         Aqui ha só a estrada antes da curva, e antes da curva
                         ha a estrada sem curva nenhuma.


[Poema inédito de Alberto Caeiro in nº 3 da revista Cultura ENTRE Culturas, pag. 126, transcrito na grafia original]
  

Franz Liszt - Annette DiMedio no piano interpreta Concerto No. 1 para Piano


  

09 fevereiro, 2012

Repara na súbita inocência de quem parte sem querer


Nunca alguém se despediu assim de mim mas eu sim. Tomara que nunca mais eu tenha que me despedir e tomara que nunca nenhum ser querido se separe de mim. Despedidas são coisas tristes, fica sempre um saco de lágrimas no peito, um saco pronto a romper-se, a alagar o coração, a afogar a alma.

Também já me despedi de mútuo acordo, gente crescida, é melhor assim, tem que ser, não aconteceu no momento certo - e nós, por dentro, crianças infelizes, uma saudade antecipada, um olhar triste incapaz de suportar um adeus, um último abraço que para sempre ficará por dar.

Mas quando eu me despedi assim, quase sem querer, quase sem poder enfrentar a dor causada, parti silenciosa, cansada (há tempo que queria fazê-lo e sempre me faltava a coragem), parti sem me despedir,    parti sem deixar uma esperança, sem responder a cartas nem telefonemas, ignorando a presença nas ruas que eu frequentava daquele que um dia tinha amado. Parti e deixei para trás o passado e nunca mais a ele voltei. Sou assim, vou virando páginas, abrindo novos livros, desvendando novos mundos com a inocência de uma criança.

Mas nas minhas veias para sempre correrá o nome daqueles que um dia amei, para sempre, para sempre.



[A semana de Prokofiev está a chegar ao fim e, sendo hoje um dia de despedidas, peço-lhe que se detenha no belo poema da Maria do Rosário e depois siga até mais abaixo, onde uma música exuberante espera por nós]




                                  Repara na súbita inocência de quem
                                  parte sem querer - um sono vago
                                  apoderou-se há instantes dos seus
                                  gestos, fez dos seus olhos azuis uma
                                  lagoa quente; e o cansaço que a dor

                                  arrastou tantas vezes pelo seu corpo
                                  tornou agora a sua voz de um veludo
                                  macio. Se chegares o seu pulso magro

                                  ao teu ouvido, pouco mais escutarás
                                  do que o breve esvoaçar de um lenço
                                  a despedir-se, o brilho de uma estrela
                                  a desmaiar no céu, o eco do teu nome
                                  a adormecer-lhe, cândido, nas veias.


[Poema, pag.72, de Maria do Rosário Pedreira in 'Nenhum nome depois']
  

Prokofiev - Marta Argerich ao piano com a Orquestra Sinfónica Nacional da RAI interpretam o Concerto nº 3 para piano e orquestra



08 fevereiro, 2012

E é porque existes que se levanta o mundo em quotidianos prodígios

   
Era uma vez um homem magro de cabelos brancos. Era uma vez um homem magro de cabelos brancos, barba branca e olhos doces de menino.

Era uma vez um homem doce de sorriso de menino, sem idade, um homem quase transparente, um homem que era poeta.

Os homens bons que são poetas encontram palavras exactas e belas para descrever as coisas e, melhor ainda, para descrever os sentimentos.

Era uma vez um homem que encontrou uma mulher bonita, com olhar meigo de menina. Essa mulher que  o poeta encontrou sabia também o efeito lúdico e curativo das palavras. E, então, ela sentava-se, tranquila, rosto doce apoiado numa mão, ouvindo as palavras pausadas e sentidas do poeta.

E o poeta, sorrindo, apaixonado, dizia-lhe amanheceu a minha vida no teu rosto e ela sorria, um sol a nascer no olhar e o poeta continuava foste sonhada por meus olhos e minhas mãos por minha pele e por meu sangue e ela, lábios entreabertos, sorria, sentindo a pele beijada pelo olhar do poeta, sentindo a pele percorrida pelas mãos macias e quentes do poeta. E o poeta ajoelhava-se aos pés da mulher sobre a qual a luz incidia e dizia-lhe baixinho e é porque existes que se levanta o mundo em quotidianos prodígios

E então a mulher do poeta ajoelhava-se ao lado dele, passava-lhe os braços em volta do pescoço, sorria e dizia-lhe se o dia tem todo este fulgor é porque existes.

O que acontecia a seguir não sabemos nem nos diz respeito.



[A seguir, descendo, encontraremos um belo poema de amor e logo abaixo, Romeu e Julieta de Prokofiev - que outra música poderia eu escolher para acompanhar este apaixonado poema de António Ramos Rosa dedicado á sua mulher, Agripina Costa Marques.]



                          Amanheceu a minha vida no teu rosto
                          de uma doçura intensa e tão suave
                          como se um divino fundo nele brilhasse
                          Eu era o que nascia soberanamente leve
                          e encontrava na limpidez o centro do equilíbrio
                          Só em ti cheguei amanhecendo na minha madurez
                          Entrei no templo em que a luz latente era a secreta sombra
                          Foste sonhada por meus olhos e minhas mãos
                          por minha pele e por meu sangue
                          Se o o dia tem este fulgor inteiro é porque existes
                          E é porque existes que se levanta o mundo
                          em quotidianos prodígios
                          em que ao fundo brilha o horizonte certo


['Para Agripina' de António Ramos Rosa in 'O teu rosto' mas transcrito de 'cultura ENTRE cultura']
  

Prokofiev: a London Symphony Orchestra interpreta Romeu e Julieta

  
  

07 fevereiro, 2012

Sobram poesia e inconclusão a quem sempre se refugiou no futuro

 
Saio do trabalho exausto, desgastado, seco, vazio. E há dias em que de tal forma o vácuo inundou todo o meu inteiro ser que não consigo ir para casa. Se fosse, correria o risco de ficar colado à cama, uma pele seca sem nenhum homem dentro. Então, nesses dias, caminho junto ao rio e vagueio como turista, aspiro o ar frio e azul, deslizo como um gato vadio, silente e subtil, vou rente ao cais, olhos carentes, mãos vazias. Sou, nesses dias, um exigente executivo que, ao fim da tarde, caminha solitário rente ao rio.

Caminho, pois, sem destino, sem companhia, sem objectivos, nada. Apenas respiro, sou um ser vivo no limiar da sobrevivência.

Depois, quando o ar limpo do rio começa a fazer efeito, começo a ter pena de mim, penso que tenho tanta falta de um gentil afago, de um qualquer gesto de carinho, ou, apenas, um simples olhar pousado em mim. Começo, então, a procurar um qualquer corpo de ocasião ou nem isso: já me bastaria um qualquer olhar de ocasião.

Até que, um dia, inesperadamente te vejo. Primeiro um olhar incrédulo, depois um olhar de espanto, de alegria - reconheço-te, tanto tempo sem te ver e logo agora tu. Tanto tempo a fugir de ti, tanto tempo a viver no futuro, na ambição, sempre a querer subir, sempre a querer mais e, afinal, o que consegui foi apenas mais solidão, mais distanciamento da vida, o que consegui foi só inconclusão, distanciamento, dividendos.

Olhas-me também incrédula, tanto que me quiseste, tanto que te evitei e agora estou aqui parado, nu, o meu olhar pedindo-te que me tomes nos teus braços, sem condições. 

Olhas-me, hesitas, nada dizes, braços caídos, viras-me as costas e olhas o rio. E então, como um gato aflito, encosto-me a ti, nada digo, olho também o rio, espero que percebas que, neste momento, a única coisa que quero é que me deixes ficar aqui, calado, sentindo o calor que vem do teu corpo.



[Continue o meu Caro Leitor o seu passeio, detenha-se no poema e, a seguir, no concerto para violino de Prokofiev]




                          Por aqui,
                          sim, trabalhando no sentido de adquirir
                          um lavado olhar de turista
                          ou um gentil afago de ocasião
                          até que chegue um dia propício
                          a pilhagem e dividendos

                         Por aqui,
                         e trocamos o nosso melhor olhar incrédulo
                         Protocolar mas pertinente interrogação, aqui
                         onde me encontro
                         e reconheço que, há mais tempo do que o certo,
                         encontro em ti a medida   o recorte   o meu reflexo

                         Por aqui,
                         repetes, porque sobram em boa verdade
                         poesia e inconclusão
                         a quem sempre se refugiou no futuro
                         ou que se entregou sem condições a esta perseguição
                         e a mais alguns olhares incrédulos


                         ['Carrie-Ann Moss' de Luís Pedroso in criatura]
 

Prokofiev - Irina Muresanu no violino interpreta o Concerto Nº 2 para Violino

  
   

06 fevereiro, 2012

Carrego entre os dentes um alfinete com a espessura dos teus cabelos

 
Amigos comuns vieram dizer-me que, quando a noite cai, tu sais de casa e vais, rente ao Tejo, percorrer os caminhos que, durante tanto tempo, foram os nossos. 

Dizem que estás velho, magro, curvado e que te vêm a carregar sacos, livros, pequenas peças que terão sido minhas. Dizem que caminhas lentamente ao longo das paredes gastas das quais, à noitinha, saem vultos esguios e sombrios, dizem que os cães ladram à tua passagem e que tu segues, silenciosamente, nem dás por eles, nem dás pelos amigos com quem te cruzas.

Dizem que, quando a noite cai, e apenas as luzes dos navios que cruzam o rio ou a luar em noites de lua cheia ilumina esta rua desolada, tu passas como um fantasma, e, dizem, parece que, por vezes, te ouvem a cantar.

Amigos comuns contam-me, com tristeza, que nem pareces tu, que quase não falas, quase não sais, quase não te arranjas. Dizem que por vezes te abeiras do rio e ali ficas olhando o rio negro quase como se tentasses ver a tua imagem nas águas espelhadas. Dizem que, por vezes, te sentas, livros e sacos e demais recordações aos teus pés, acendes um cigarro e ali ficas, distante, vendo o fumo elevar-se no ar. Dizem que, no fim, apagas o cigarro nas mãos, como se fosse natural, como se nem sentisses dor.

Dizem-me isso e eu não reconheço nesse homem o homem que tu foste.

Dizem que, se te quiser ver, é ir ali ao cair da tarde, quando os gatos recolhem às ruínas mágicas, quando os pescadores abandonam os cais, quando o rio bate nas muralhas e esse é o único som que  se ouve, que, nessa altura, tu passas por ali e já não se sabe se vais vivo, se vais morto. E dizem que, por vezes, se alguma gaivota, por acaso, por ali passa, te ouvem a gritar o meu nome.

Mas eu peço que não me contem, não quero ouvir, prefiro nem saber. Nem quero pensar nisso. 

É que, sabes, se eu lá for é para te trazer para casa porque eu não passo sem ti, porque te amo como uma louca, porque já nem me lembro porque me zanguei contigo, porque me quero esquecer do dia em que jurei que te ia esquecer, porque quero esquecer o dia, tão longínquo, em que te vi e virei a cara para o outro lado, porque quero esquecer o dia em que bateste aqui à porta e me viste, sorridente, com um outro homem. Sei que um dia, antes que seja tarde demais, vou lá ter contigo, vou dizer-te que tu, só tu, és o meu amor e que a tua casa, meu amor, sou eu.



[Logo abaixo do belo poema de Luís Pedroso, poderão encontrar uma belíssima interpretação ao piano de uma inesperada intérprete de Prokofiev - venha comigo, vamos ouvir.]

No Ginjal, mesmo rente ao Tejo, homem ao cair da noite


                         Carrego entre os dentes um alfinete
                         com a espessura dos teus cabelos
                         e passo tranquilo entre os pingos da chuva.

                         Dispo-me em frente ao espelho
                         e com a ponta dos dedos em chamas
                         toco ao de leve no vidro as minhas mãos.

                        Toco o meu avesso.
                        O meu vulto caminhando e cantando
                        através de um espelho liquefeito.

                        Estou de partida para lugares inacabados.
                        Pressiono com a mão direita intensamente
                        o peito esquerdo e sinto a máquina.
                        Funciona.

                        Viva.


                        ['Declaração académica' de Luís Pedroso in criatura]                  

Prokofiev - Maíra Freitas no piano com a Varna Philarmonik Orchestra interpreta Concerto no.1 para piano e orquestra

  

  

05 fevereiro, 2012

A tarde cúmplice deixou um nó de pedra

 
Avançavas no passeio, distraído, mãos nos bolsos, talvez fosses por exercício físico, talvez para passar o tempo, ou então, sem o saberes, para ver se me encontravas. 

Eu estava cá em baixo, como sempre tirando fotografias, e via-te recortado contra a grande falésia, que andar fantástico - pensava. Um homem viril e solitário percorrendo, sem pressa, os caminhos que te acabariam por levar até mim.

Eu observava-te e disparava, uma, duas, três vezes, só o rosto, menos zoom para apanhar o tronco, menos zoom para te apanhar de corpo inteiro. Eras, pois, uma bela cabeça recortada num fundo ocre e dourado, um torso descontraído e um corpo inteiro que caminhava junto à praia - e que eu guardava dentro da minha máquina

Quase junto ao fim do caminho vi-te hesitar, ou prosseguias e descias para a areia ou davas meia volta e continuavas a andar, agora em sentido contrário. Enquanto te focava pensava: desce, anda.

E então desceste. Passaste pelas rochas, desceste a escada, atravessaste o areal e puseste-te de frente para o mar. Sempre na minha mira. Focava-te e disparava. Eu caçadora furtiva, tu, pequeno, dentro da minha máquina.

E não saías dali, absorto, olhando o mar, e eu a pensar: vem, anda, quero ver a cor dos teus olhos. Mas não, não te mexias. 

Então, já impaciente, avancei eu. Baixei a máquina e avancei. Uma caçadora que abandona a sua arma e que avança para outra forma de caça, agora à mão. Via-me a avançar, os pés enfiados na areia, pausada, convicta, a pegada bem vincada, uma fêmea que avança, determinada, pronta a agarrar a sua presa. E só pensava - tomara que não te vás embora antes de eu te alcançar, queria ver-te de perto, queria ver o teu olhar, queria ver como pousavam os teus olhos em mim, a caçadora.

Quando estava a chegar perto, tornei-me silenciosa, passada leve, e, então, agora com o coração a bater forte, pus-me ao teu lado. Olhaste-me surpreso. Um olhar longo e infantil.

Mostrei-te a máquina, disse-te que te tinha fotografado, pedi-te que me deixasses fotografar-te de perto. Sorriste e disseste que sim. Apontei a objectiva, foquei, disparei, andei à tua volta, disparava sem parar, quase numa vertigem. Por fim já sorrias mas mantiveste-te imóvel. Entregaste-te e eu possui-te, agora já tinha o teu olhar para o poder decifrar.

E então a brincadeira fez com que o mundo desaparecesse, puxei-te pela mão e fomos para um recanto na praia, ficámos só nós, abraçámo-nos, beijámo-nos, despi-te a camisola, despi a minha. E a maré ia e vinha e tu ias e vinhas e eu recolhia-me e entregava-me, e a tarde baixava as cortinas, e a luz abrandava e nós nada dizíamos, o que haveríamos de dizer?, metáforas?, e o teu abraço era quente, e a tua boca era doce, e a tua pele era macia. E eu pensava - era de ti que eu estava à espera, há tanto tempo à tua espera. Mas não disse nada e tu também nada dizias. 

Depois levantaste-te, vestiste-te e eu fiz o mesmo. Estavas embaraçado, não sabias que seguimento dar à história. Até que eu te disse - e se ficasses? Olhaste-me, admirado. Expliquei-te - para estarmos, para o sexo, para um filho, para nada.

Ficaste. 



[Meus amigos, uma história de amor à beira mar requer uma música especial - começa hoje a minha semana dedicada a Prokofiev e não podia ter melhor inauguração, com o jovem Domingos António*, um talento. ]

* - Obrigada, Cara Amiga Era uma Vez!



                                    Foi o céu que conseguiu este caminho
                                    Errante sem aviso prévio até à falésia rara
                                    Desnudo encontrei um corpo branco de linho
                                    Um sinal um gesto com Barthes e câmara clara

                                    Sobre a areia o mundo emudeceu quase encanto
                                    Num caminho falso de rápido desejoso e cru
                                    Caímos sobre as pedras o mar branco
                                    Despimos sentimentos palavras roupas até ao nu

                                    Tocámos ao de leve uma metáfora na palavra além
                                    Nadando nos braços abraços bocas faces
                                    Olhando peixes na marginal daquela maré de vai e vem

                                    A tarde cúmplice deixou um nó de pedra numa escada
                                    Quando disseste sem hesitar ... e se ficasses?
                                    Para estarmos, para o sexo, para um filho, para nada


['A tarde cúmplice deixou um nó de pedra' de José-Alberto Marques in British Barthes]
  

Prokofiev - Domingos António interpreta o final da 7ª Sonata

  
  

02 fevereiro, 2012

Se disser a verdade mais triste que não quero dizer

  
In heaven eu planto árvores. Pego nelas ainda pequeninas, crianças indefesas, e com infindos cuidados, faço um pequeno buraco na terra inóspita e coloco-as como se as deitasse num berço, aconchego a terra à sua volta, deito-lhes água como se as alimentasse a leite. Quando há frio ou vento já eu ando em cuidados, com receio que tombem, que se partam, que sequem; se faz muito sol, tento que tenham sombra e, se por uma qualquer infelicidade alguma adoece ou morre, já eu sinto uma dor no peito, minha pequenina. Nesses tristes casos, é com desolação que as retiro, pequena morte que não pude evitar.

Mas quando vingam, alegro-me e vigio-as como se fossem crianças, passo por elas e faço-lhes ternas festas, amparo-as, e encho-me de orgulho. Quando se tornam adultas, é com alegria de mãe realizada que as sinto independentes, que as vejo a dar sombra, a acolherem pássaros, crianças.

Uma árvore é um bocado de vida, uma vida digna, bela, um ser que busca o céu, um ser alado que gosta de se cercar de azul, um ser que acolhe aves livres, aves que se amam, que têm filhos, uma árvore é uma casa, é um sonho. Uma árvore é a elegância em liberdade, é um ser verde e sábio, que encerra em si o mistério da renovação da vida.

E, à noite, uma árvore é um pássaro de grandes plumas verdes, é um arca sagrada plena de vida, é um caminho para o céu.


Árvores minhas cheias de vida, gosto eu de dizer baixinho, como se rezasse, com a vossa infinita bondade acolhei-me sob o vosso manto de sombra.

Árvores nossas cheias de beleza, árvores nossas cheias de vida.



[Passeemos, pois, sob este misterioso arvoredo e vamos até ali mais abaixo, que a música no parque vai animada, com Um Americano em Paris, quase a acabar a semana Gershwin ]

Árvores à noite em Belém, rente ao Tejo,
o Cristo-Rei ao fundo, um pequeno traço branco


                       Se disser a verdade mais triste que não quero dizer
                       Se a disser
                                        Como poderei dizê-la?

                       Eu já soube dizer azul
                       e é o verde que respiro agora
                       no arvoredo de um jardim
                       vendo as grandes árvores que nada dizem aos passageiros apressados
                       árvores de labaredas sombrias
                       não dizem sonhos     ascendem entre a terra e o céu
                       não prometem glória        mistério verde
                       árvores       amantes desconhecidas



['Contemplação das árvores' de António Ramos Rosa in Cultura ENTRE Cultura nº 4, belíssima revista]
  

Gershwin - a New York Philharmonic Orchestra interpreta An American in Paris

   
  

01 fevereiro, 2012

Penso no exíguo espaço em que temos vivido

 
Combinamos encontrar-nos na minha aldeia para depois irmos juntos para outro local mais urbano. Saio do trabalho e venho a correr para aqui. Quero apanhar ainda a luz da tarde. Mas apanho um céu em carne viva e um sol dormente a afundar-se no rio. Fotografo, rendida, mil vezes rendida, tantas quantas assisto a este feérico espectáculo. 

E vou andando, a luz do dia esvai-se num instante e eu vou andando enquanto a noite vai estendendo os seus véus de veludo. Quase ninguém e eu ainda sozinha, uma aldeia à beira rio e quase toda só para mim.

Um ou outro vulto, alguns que passam correndo, já sei que vou ser censurada pela minha imprudência mas não consigo ter medo de nada, aqui sinto-me em segurança, estou na minha aldeia. Ali mais à frente há árvores e eu fotografo-as, mágicas, contra um céu escuro, junto a um rio com reflexos de prata. Logo a seguir, andando eu bem rente à água vejo uma gaivota lá em baixo, sozinha, solitária, olha o mar, sente a maresia e eu sou ela, ali, sozinha aspirando o fresco da noite que, entretanto, desceu. Um  silêncio escuro, fresco, dourado pela memória.

E então chegas, que um dia ainda me acontece alguma, mas eu explico que não, gosto de andar por ali, rente ao rio, rente a estes monumentos belíssimos cheios de História, estes locais que tanto representam o meu País. Eu teimosamente sozinha na noite no coração do meu País, enternecida, agradecida. Pertenço a duas ou três aldeias e esta é uma delas - a ela estou presa por laços de devoção.



[Meus amigos, nesta noite fresca e mágica, desçam um pouco mais, que logo a seguir ao poema encontrarão uma bela interpretação de uma conhecidíssima música de Gershwin.]

Hoje, já noite, na Torre de Belém - uma beleza mágica


                         penso no exíguo espaço em que temos vivido
                         cidades que conheci em todas as suas horas
                         e mesmo nas mais amargas concedi que
                         poderia seguir tendo-lhes ainda amor
                         sobra este sentimento de pertença a insistente
                         impressão de estar ao chão costurada a nossa
                         sombra de no mais escuro silêncio
                         podermos apenas evocar a memória de alguns lugares
                         cuja imagem guardamos com teimosia quase terna


                         ['Lisboa IX de Tatiana Faia in Lugano]