Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

09 fevereiro, 2012

Repara na súbita inocência de quem parte sem querer


Nunca alguém se despediu assim de mim mas eu sim. Tomara que nunca mais eu tenha que me despedir e tomara que nunca nenhum ser querido se separe de mim. Despedidas são coisas tristes, fica sempre um saco de lágrimas no peito, um saco pronto a romper-se, a alagar o coração, a afogar a alma.

Também já me despedi de mútuo acordo, gente crescida, é melhor assim, tem que ser, não aconteceu no momento certo - e nós, por dentro, crianças infelizes, uma saudade antecipada, um olhar triste incapaz de suportar um adeus, um último abraço que para sempre ficará por dar.

Mas quando eu me despedi assim, quase sem querer, quase sem poder enfrentar a dor causada, parti silenciosa, cansada (há tempo que queria fazê-lo e sempre me faltava a coragem), parti sem me despedir,    parti sem deixar uma esperança, sem responder a cartas nem telefonemas, ignorando a presença nas ruas que eu frequentava daquele que um dia tinha amado. Parti e deixei para trás o passado e nunca mais a ele voltei. Sou assim, vou virando páginas, abrindo novos livros, desvendando novos mundos com a inocência de uma criança.

Mas nas minhas veias para sempre correrá o nome daqueles que um dia amei, para sempre, para sempre.



[A semana de Prokofiev está a chegar ao fim e, sendo hoje um dia de despedidas, peço-lhe que se detenha no belo poema da Maria do Rosário e depois siga até mais abaixo, onde uma música exuberante espera por nós]




                                  Repara na súbita inocência de quem
                                  parte sem querer - um sono vago
                                  apoderou-se há instantes dos seus
                                  gestos, fez dos seus olhos azuis uma
                                  lagoa quente; e o cansaço que a dor

                                  arrastou tantas vezes pelo seu corpo
                                  tornou agora a sua voz de um veludo
                                  macio. Se chegares o seu pulso magro

                                  ao teu ouvido, pouco mais escutarás
                                  do que o breve esvoaçar de um lenço
                                  a despedir-se, o brilho de uma estrela
                                  a desmaiar no céu, o eco do teu nome
                                  a adormecer-lhe, cândido, nas veias.


[Poema, pag.72, de Maria do Rosário Pedreira in 'Nenhum nome depois']
  

6 comentários:

  1. tanta coisa linda a passar-se neste ginjal e eu sem poder aqui vir... 1º aquela actividade toda lá no xaile e 2º ontem de manhã quase cortei um dedo na cozinha. agr estou com este handicap nesta quinzena de todos os amores -risos-

    ...comigo ja aconteceram despedidas e penso que ficou alg coisa por dizer...coisas mal resolvidas. deixei passar o tempo, tanto, que se tornou irreversível. o mais interessante é q o passado volta sempre, nao nos livramos dele.

    minha querida isto hj ta virado po dramatico, deve ser pq tou a escrever so c um dedo da mao esquerda.

    adorei o texto, tanta inspiração, um manancial.

    bj

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  2. como uma despedida, um adormecimento, um ir-se da vida ou um desfalecimento, mas suave e gradual, lento e discreto.
    Ps. não concordo com a palavra candido aqui, não sei porquê.Podia ter sido outra.

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  3. Olá Olinda!

    Mas isso do dedo é que é pior... Como é que vai poder fazer festinhas no dia dos Namorados...?

    Eu, há pouco tempo, queimei-me com vapor quente do forno, uma queimadura profunda na mão direita. Andei com a mão 'entrapada' durante duas semanas, quase nem dá para acreditar. Por fim já escrevia com a ponta dos dedos como se sempre tivesse sido assim. A gente tem uma capacidade de adaptação...!

    Quanto a despedidas, eu quando fecho uma porta é para sempre, definitivo, parto para outra, até parece que sou uma pessoa insensível. Mas não sou, é uma defesa.

    E embora não seja saudosista, não me esqueço e gurado carinho pelas memórias.

    As melhoras... e cuidado com as facadinhas...!

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  4. Caro Patrício,

    Sempre as palavras certas, sempre uma forma de pensar que me deixa a pensar. Já li e voltei atrás a ler e é isso tal e qual.

    Sabe que eu, quando estou a escrever os meus textozitos, venho com a toada do poema e vou de boleia e tento sempre usar algumas palavras ou expressões do poema, para fazer a ligação.

    E ontem andei ali com a palavra 'cândido' que não encaixava, nem o sentido, nem a sonoridade. Achei graça que também tenha embirrado com essa palavra.

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  5. minha querida

    é bom mesmo que me ponha boa rapidamente. cá por casa por pessoal está desorientado, ninguém se entende com as tarefas domésticas q agora, 'inexplicavelmente', sobram...

    venho agradecer a sua generosidade. escreve tantos textos lindos que fico sem jeito. Indique-me um, sim? vou ter um gosto imenso em vê-la lá pelo xaile com pérolas.

    bjs

    olinda

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  6. Olá Querida Olinda,

    A falta que cada nossa pequena peça nos faz, não é? Pode ser um só dedo mas é o suficiente para desestabilizar todo um ambiente...!

    Já lá deixei no seu xaile com colar de pérolas, ou na arca das palavras em festa, no local da gentileza e sensibilidade, o texto que escrevi sobre o poema de António Ramos Rosa, um poema muito terno que escreveu para a mulher.

    Um beijinho e parabéns pela ideia que teve de abrir aos seus leitores um espaço dedicado ao amor.

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