Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

29 fevereiro, 2012

Porém nada perdido, que este verde coração se arruma como louco sobre as ondas, e procura e procura


Sobre este rio cintilante cujas saias se desdobram e alargam para o mar há um veleiro que todos os dias abre as suas brancas velas e vai, incansável, a favor do vento, ou contra o vento.

Dia após dia, o veleiro rompe as águas, alarga as velas, enfrenta o sol ou a chuva, percorre os caminhos brancos do rio e sai gritando, gritando, gaivotas desesperadas em coro, e o veleiro desliza, rodopia, adorna, quase se vira. Mas continua sempre.

E vem a noite e o veleiro hesita em regressa; já todos os outros voltaram às docas e este veleiro, bravo, lutador, ainda aqui anda, e grita, grita e as gaivotas gritam em volta.

E as velas envelhecem e o branco tolda-se e as ondas batem na madeira gasta e os gritos tornam-se roucos, cansados.

O rio brilha, indiferente e orgulhoso e este veleiro aqui anda, em volta, procurando, procurando e, quem está na margem, é sempre o mesmo nome que ouve, um nome às vezes quase cantado, outras implorado, até chorado. E as gaivotas gritam os seus gritos desolados e o nome já quase não chega a terra. Mas todos os dias, com vento, sem vento, com sol, sem sol, este gasto veleiro, salta as ondas com a esperança dos pequenos barcos que ainda não experimentaram as decepções da vida e grita, grita sempre o mesmo nome e, na margem, as pessoas esperam ver, um dia, sair das águas o ser cujo nome há tanto tempo alguém grita. 

Lá dentro, naquele veleiro silente e belo, um coração louco, um coração que um dia se perdeu e que desliza com velas brancas sobre o mar.



[Meus amigos, deslizem com o veleiro pelo rio cintilante, vejam o belo poema de Assis Pacheco e depois, por favor, sigam até ao violino e piano na música perfeita de Brahms]

Belo veleiro cruza o Tejo num dia cintilante


                        O meu coração é um navio
                        que te procura nos sete mares,
                        que à flor das águas vai e vem
                        gritando, atirando o teu nome.

                        O meu coração é um navio
                        que te procura mas não te encontra.
                        A oeste, a Leste, a Sul, ao Norte
                        retesa as velas, mas não te encontra.

                        Envelheceram já muitas palavras.
                        Porém nada perdido, que este verde
                        coração se arruma como louco
                        sobre as ondas, e procura e procura.


                        ['Guiarás o Povo' de Fernando Assis Pacheco in 'A musa irregular']
 

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